Litigância de má-fé

Aplicação de litigância de má-fé deve ser precedida de ampla defesa

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17 de novembro de 2001, 20h51

A origem da advocacia nos reporta à idéia do profissional liberal, isto é, do profissional que vivia exclusivamente dos honorários pagos por seus clientes. A profissão evoluiu e, com o passar dos anos, o advogado, como os demais profissionais, se tornou empregado.

Esta evolução em nada prejudicou o reconhecimento da sociedade do nobre mister exercido por estes profissionais (advogado-empregado e advogado-profissional liberal).

A Constituição Federal de 1988 (art. 133, caput) concebeu a advocacia como verdadeiro munus público, ao reconhecer que o advogado é indispensável à administração da Justiça.

Inúmeras atividades, embora exercidas por particulares, possuem inegável caráter público pela relevância social dos serviços prestados: hospitais, escolas, faculdades e concessionárias de serviços públicos (energia elétrica, rodovia, etc). Todos exercem atividades públicas de significado social e sujeitas à severa fiscalização do Estado.

Inobstante a função seja pública, não são os advogados funcionários públicos, ao contrário, são profissionais liberais de carteirinha, embora se encontrem sujeitos à fiscalização pelo órgão de classe (OAB), por delegação estatal.

Esta relevância dada à advocacia pelo legislador constituinte foi reforçada pela Lei n. 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) que conferiu ao advogado, independência funcional, ao dispor que o advogado é inviolável por seus atos, no exercício da profissão (art. 2º e 31). Esta independência funcional, no nosso entender, funcionaria como verdadeira imunidade profissional, colocando lado a lado, em pé de igualdade, advogados, juízes, promotores, como principais atores da arena forense.

Apesar de todas estas garantias funcionais, o nobre mister deve ser exercido com responsabilidade e as sanções legais são bastante severas para os maus profissionais.

Neste trabalho procuraremos analisar o tema da responsabilidade profissional dos advogados à luz dos princípios constitucionais e legais inseridos no nosso ordenamento jurídico.

Imunidade profissional

Prescreve o art. 133 da Constituição Federal:

Art.133 ? O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. (grifou-se)

Por sua vez, os artigos 2º e 31 da Lei nº 8.906/94 regularam a questão da inviolabilidade funcional da seguinte maneira:

Art. 2º – O advogado é indispensável à administração da justiça.

Parágrafo 1º – No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.

Parágrafo 2º – No processo judicial, o advogado contribui, na postulação de decisão favorável ao seu constituinte, ao convencimento do julgador, e seus atos constituem múnus público.

Parágrafo 3º – No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei. (grifou-se)

(…)

Art. 31. O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia.

Parágrafo 1º O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.

Parágrafo 2º – Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão.

O legislador confiou ao advogado a mais absoluta independência, para que dentro do Estado Democrático de Direito exerça, da forma mais ampla possível, o direito de defesa do interesse a ele confiado, sem nenhum temor por represália contra qualquer ato por ele praticado que venha a desagradar alguém.

Aliás, o advogado temeroso não é advogado, mas mero elemento decorativo, que só causará danos à imagem da classe.

Dissemos acima que a inviolabilidade do advogado constitui verdadeira imunidade funcional para os atos que disserem respeito ao exercício profissional. Isto significa que o advogado responde por infrações comuns praticadas fora do ambiente forense como qualquer cidadão.

No calor da discussão da causa, eventual ofensa irrogada pela parte ou seu procurador não é considerada crime (art. 142, inciso I do Código Penal), embora todas as recomendações da Ordem dos Advogados sejam para que o advogado se comporte com moderação e respeito às autoridades e à parte contrária.

Desta forma, entendemos que a Constituição Federal conferiu aos advogados verdadeira imunidade funcional que no exercício profissional visa garantir à parte a mais ampla defesa.

Da arena judiciária

O termo “arena judiciária” reflete de forma um tanto quanto exagerada o clima tenso vivido pelas partes e seus procuradores quando levam ao Poder Judiciário uma disputa de interesses, mas nem de longe se compara aos espetáculos romanos apresentados pelo cinema.


Na medida em que o Estado assumiu o monopólio da Jurisdição (definir entre “A” e “B” quem está com a razão), forma-se todo um clima saudável de disputa pela formação do convencimento do magistrado, que é quem se encontra investido de poder para proferir a decisão para o caso concreto.

Não obstante deva o magistrado comportar-se com o máximo de imparcialidade, é muito comum que dentro da lide assuma a defesa de uma das posições em litígio. Ao dizermos isto, estamos colocando de forma mais transparente possível que a imparcialidade constitui um mito.

Por tudo isso, é possível dizermos que ao juiz da causa não é lícito aferir através de manifestações a conduta profissional do advogado da causa, sob pena de infringir a inviolabilidade funcional prevista na Constituição Federal. Há que se considerar que ambos foram colocados em patamar de igualdade, logo, não é o magistrado da própria causa quem deve julgar e valorar o comportamento de advogados.

Qualquer avaliação profissional sobre a conduta do advogado deverá ocorrer em processo próprio, perante o Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, ou então, na esfera judiciária, em processo próprio para averiguar a conduta culposa e lesiva do profissional, mas jamais perante o juízo por onde tramitou a causa originária.

São estas considerações preliminares que julgo absolutamente necessárias para análise da questão propriamente colocada.

Da responsabilidade profissional do advogado

De maneira nenhuma defendemos que o advogado não tenha responsabilidades para com a sociedade no exercício da profissão. Exige-se dos profissionais ponderação na emissão de opiniões e respeito no trato com seus pares, clientes e autoridades, embora respeito e moderação não signifiquem temor reverencial e tampouco, subserviência.

Ademais, defender a total irresponsabilidade do advogado pelos seus atos frente à sociedade seria dar terreno fértil aos maus profissionais que transitam pelo meio forense. Com efeito, hão de ser fincados alguns pressupostos para que a responsabilidade profissional não seja causa para a disseminação do terror e do medo, em prejuízo do princípio constitucional da ampla defesa.

No caso específico dos profissionais liberais, há possibilidade de responsabilização do advogado perante o seu cliente, desde que, agindo culposamente, o advogado provoque danos ao cliente. Neste sentido, o Código de Defesa do Consumidor prevê a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais extensível ao advogado-empregado. Veja-se o art. 14, Lei n. 8.078/90:

Art. 14 – O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Parágrafo 1º – O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

I – o modo de seu fornecimento;

II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

III – a época em que foi fornecido.

Parágrafo 2º – O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

Parágrafo 3º – O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Parágrafo 4º – A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa. (grifou-se)

Admite a lei à responsabilização mediante todas as formas de culpa: imprudência, imperícia e negligência, cuja apuração dependerá de prova específica a ser produzida pelo cliente/contratante, que assume o ônus da prova na sua integralidade (art. 333, inciso I do CPC), inclusive no que tange aos danos sofridos.

Há que se levar em conta ainda que a responsabilidade profissional do advogado não é de fim, mas de meio. Isto significa que deve o advogado ser diligente com os interesses do seu cliente, apresentar as manifestações e recursos dentro dos prazos legais, comparecer às audiências, enfim, procurar resguardar os interesses do seu cliente dentro da melhor técnica, entretanto, não tem nenhuma responsabilidade sobre o desfecho da causa.

No caso da responsabilidade subjetiva do advogado perante seu cliente, esta deverá ser apurada em processo próprio instaurado para tal fim, independentemente das responsabilidades funcionais perante a Ordem dos Advogados do Brasil.

Há também a possibilidade de responsabilidade do advogado perante a parte contrária. Neste caso, responderá o advogado quando agindo de modo temerário mediante ardis e meios fraudulentos, vier a causar danos à parte contrária. A previsão encontra-se estampada no parágrafo único do art. 32 da Lei n. 8.906/94, senão vejamos:


Art. 32. O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa.

Parágrafo único. Em caso de lide temerária, o advogado será solidariamente responsável com seu cliente, desde que coligado com este para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria. (grifou-se)

Examinando o texto legal em comento, verifica-se que a aplicação da penalidade por litigância de má-fé aos advogados ficou restrita aos casos em que agir de forma temerária.

Também aqui não se dispensa o ônus da prova da culpa ou do dolo, a ser apurada em processo próprio. Logo, não cabe ao Juiz da causa emitir qualquer juízo de valor acerca da conduta dos advogados, tampouco aplicar as penalidades por litigância de má-fé ao advogado de ofício, sem que seja dada oportunidade de defesa, pois, a princípio, sempre o advogado estará agindo como representante da parte. Além disso, a aplicação sumária de tais penalidades ao advogado significaria ingerência indevida nas funções da advocacia, afligindo não só o profissional da causa, mas toda a classe.

Tem-se observado recentemente que alguns magistrados mais afoitos vêm aplicando indistintamente as penalidades por litigância de má-fé a advogados, sem respaldo de nossos tribunais superiores, que vêm de forma sábia e reiterada reformando estas decisões, tal como se vê nos julgados abaixo colacionados:

1. Litigância de Má-Fé – Multa Indenizatória Atribuída aos Patronos – Impossibilidade.

O dever de indenizar decorrente da litigância de má-fé é inerente à qualidade de parte da relação jurídica processual, não se aplicando, pois, aos patronos da causa. Ademais, a Lei nº 8.906, de 4/7/1994, ao admitir a responsabilidade solidária do advogado no caso da lide temerária, demanda a verificação da existência de conluio entre este último e o cliente, com o objetivo de lesar a parte contrária, a ser apurada em ação própria (artigo 32, parágrafo único, do citado diploma legal).

2. Penalidade por Litigância de Má-Fé – Limite Legal.

A penalidade por litigância de má-fé está limitada a 20% do valor da causa (art. 18, Parágrafo 2º do Código de Processo Civil). Defesa a fixação de valor superior.”

(TRT da 15ª Região, Acórdão 016198/2001-SPAJ) (grifou-se)

“1. Litigância de Má-Fé – Rejeição.

Para que a reclamada seja considerada como litigante de má-fé, há necessidade de demonstrar sua intenção dolosa de usar do processo para conseguir objetivo ilegal, e deste ônus o autor não se desincumbiu.

2. Litigância de Má-Fé – Multa Indenizatória Atribuída aos Patronos – Impossibilidade.

O dever de indenizar decorrente da litigância de má-fé é inerente à qualidade de parte da relação jurídica processual, não se aplicando, pois, aos patronos da causa. Ademais, a Lei nº 8.906, de 4/7/1994, ao admitir a responsabilidade solidária do advogado no caso da lide temerária, demanda a verificação da existência de conluio entre este último e o cliente, com o objetivo de lesar a parte contrária, a ser apurada em ação própria (artigo 32, parágrafo único, do citado diploma legal).

3. Honorários Advocatícios – Advogado Particular – Indevidos.

O reclamante não está representado pelo Sindicato da categoria. Assim, porque não preenchidos os requisitos da Lei nº 5.584/1970, em seu art. 14, Parágrafo 1º, não há como deferir o pagamento da verba honorária advocatícia.

4. Adicional De Periculosidade – Inflamáveis.

O contato com inflamáveis em razão de tarefas rotineiras, ainda que intermitentes, gera direito ao adicional de periculosidade.

5. Matérias não Examinadas pela Sentença – Preclusão.

Preclusa a argüição, em recursos ordinários, de matérias não examinadas pela sentença, sem interposição de embargos declaratórios.

(TRT da 15ª Região, Acórdão 005026/2001-SPAJ do Processo 018088/1999-RO-7, publicado em 12/02/2001)

A questão parece bastante clara, e não deixa margem a interpretações duvidosas quanto ao alcance dos parâmetros insertos no nosso ordenamento jurídico para responsabilização dos profissionais da advocacia.

Sem querer dar guarida aos maus profissionais, entretanto, por vivermos em um Estado de Direito, o mínimo que se exige é que os procedimentos para punição destes maus profissionais ocorram dentro dos postulados da legalidade, assegurando-se o amplo direito de defesa.

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