Clonagem em debate

Veja íntegra do discurso de Costa Leite sobre clonagem humana

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12 de novembro de 2001, 14h44

Os avanços da ciência não podem ultrapassar os limites da ética. A afirmação é do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite na abertura do seminário internacional sobre clonagem humana, nesta segunda-feira (12/11). “Não prego o retrocesso, mas não quero ser arauto de um avanço a qualquer preço”, disse Costa Leite. O evento acontece até terça-feira (13/11) e conta com especialistas nacionais e internacionais.

Para o presidente do STJ, a questão primordial será decidir qual o grau de parentesco entre o ser clonado e o indivíduo que doou material genético.

Costa Leite também diz se preocupar com os métodos científicos da clonagem. “Se, para obter um clone saudável for necessário envolver mais de mil doadoras de óvulos, duas centenas de mulheres dispostas a empenhar seu útero e eliminar centenas de vidas – entre embriões, fetos e bebês – não haverá aí um custo psicológico, moral e ético muito alto?”, questionou.

O vice-presidente da República Marco Maciel lembrou que o Brasil já se posicionou contrariamente à clonagem humana na Unesco. “Quero expressar, em nome do presidente Fernando Henrique Cardoso, nossa convicção de que deste seminário possam brotar idéias e sugestões para iluminar o debate sobre tema tão complexo”, afirmou Maciel.

O vice-presidente da Corte Constitucional Italiana, Maximo Vari, participou da solenidade, ao lado do coordenador-geral da Justiça Federal, ministro Milton Luiz Pereira. Compareceram ainda o vice-presidente do STJ, ministro Nilson Naves e os ministros Barros Monteiro, Aldir Passarinho Júnior e Nancy Andrighi.

Veja a íntegra do discurso de Costa Leite

“Retrato do Judiciário moderno e participativo, cada vez mais consciente do seu papel na sociedade e do seu compromisso com a cidadania, o Superior Tribunal de Justiça abre suas portas para sediar este debate sobre as questões jurídicas suscitadas pela possibilidade da clonagem humana, seminário organizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal.

O tema em debate é instigante. Na verdade estamos na iminência de lidar com fronteiras científicas até então sequer vislumbradas, nem mesmo pelos mais imaginativos visionários. Quando Mendel levou a cabo suas pesquisas com plantas, as quais dariam início à Genética como ciência, ou seja, ao estudo das leis da hereditariedade e das propriedades das partículas por ela responsáveis, com certeza não considerou a hipótese de se chegar à engenharia genética, isto é, à interferência do homem nas estruturas e processos naturais de perpetuação dos seres vivos.

É despiciendo aqui lembrar que a intervenção humana na reprodução já é uma realidade.

Após bem-sucedidas realizações nos domínios do reino vegetal, os cientistas aventuraram-se a promover as mesmas experiências com animais. Porém, quando a questão tangencia os seres humanos, afigura-se sobremaneira preocupante a aplicação da técnica da clonagem. Com toda razão, em “A Era dos Extremos”, afirma Hobsbawn que “nenhum período da história foi mais penetrado pelas ciências naturais nem mais dependente delas do que o século XX”.

Contudo nenhum período, desde a retratação de Galileu, se sentiu menos à vontade com elas”. Tal desconforto adentra o século XXI e nos instiga à reflexão.

O primeiro passo dessa reflexão consiste em admitir que a clonagem hoje é uma realidade. Pertence ao mundo real, seguindo dois métodos como nos ensina a ciência: no primeiro, provoca-se a cisão das células de um embrião, processo semelhante àquele que gera, na natureza, gêmeos univitelinos; o resultado serão dois seres compartilhando a mesma herança genética, porém diferentes de qualquer outro.

A segunda forma, talvez a mais polêmica por se tratar de reprodução assexuada, também denominada duplicação, produz um indivíduo pela substituição do núcleo de um óvulo pelo núcleo de uma célula diplóide retirada de outro ser; o resultado, como se viu no experimento que gerou a ovelha Dolly, será um indivíduo não apenas com a mesma herança genética de outro, mas exatamente igual ao ser que lhe deu origem.

Eis aí a diferença essencial entre os dois métodos: naquele, o novo ser será portador de uma combinação gênica cujo produto ainda é desconhecido; neste, as características do novo ser não trazem novidade, pois já é conhecido o adulto que vai originar o clone.

Como afirmei, talvez as mentes mais férteis não pudessem ter imaginado a que ponto de interferência no curso da natureza o método científico nos permitiria chegar. Entretanto, principalmente no século XX, ficou claro que a razão humana estava avançando sobre territórios cada vez mais amplos do conhecimento. E, enfim, conhecendo a dinâmica da matéria inanimada e da vida, viu-se o homem com poder para influenciar tal dinâmica e submetê-la à sua vontade.

Não é esse poder, contudo, absoluto. Isso porque a capacidade de raciocinar permite também ao homem submeter suas ações aos conceitos do “bem” e do “mal” e inclinar-se para a prática do bem como meio de atingir a felicidade. Dessa maneira, constata-se serem os atos humanos direcionados pela ética, qual seja, o conjunto de princípios balizadores da conduta humana de tal forma que se distinga o bem do mal e se opte por aquele.

Atingido este ponto, cabe perguntar: se a ética oferece critérios de julgamento para que se diferenciem as ações proveitosas das prejudiciais, também a ciência, atividade humana, deveria limitar suas ações sob a perspectiva da ética? Ou estariam os cientistas acima dessas considerações?

É nesse contexto que considero deva ser discutida a duplicação do ser humano, porquanto há inúmeros questionamentos de natureza ética a serem apreciados não apenas pelos cientistas mas por toda a sociedade, a qual a ciência, em princípio, pretende favorecer.

Não é recente o dilema, e a humanidade, desde Aristóteles, já percebeu não ser possível deixar as ações e o comportamento humanos entregues a interesses outros que não os do bem comum. Segundo o filósofo grego, “toda ação é perfeita quando conforme à sabedoria e à virtude ética: esta faz que seja reto o escopo; aquela, os meios para atingir”.

No caso específico da clonagem humana, a perspectiva ética se torna crucial porque, enquanto os seres capazes de manifestar sua vontade se fazem ouvir quando chamados a participar de experimentos, os embriões e os fetos, seres humanos em potencial, ainda não têm meios de expressão e, por isso acabam sendo tratados como se inanimados fossem.

Recentemente, foi destaque na imprensa um cientista italiano que anunciou estar preparado para dar início à primeira duplicação humana ainda neste ano. O seu projeto envolverá cerca de 200 mulheres nas quais serão implantados, em média, três embriões, dos quais deverão nascer somente oito bebês.

Espera-se que apenas três deles saiam sadios do berçário, pois alguns dos clones não sobreviverão devido a problemas respiratórios e cardíacos nas primeiras horas de vida e outros viverão com falhas imunológicas graves. Não está descartada a hipótese de se praticar eutanásia no caso dos bebês que apresentarem penosos problemas de saúde.

Cabe aplicar ao caso os critérios aristotélicos: esse procedimento estará conforme à sabedoria e à ética? São defensáveis seus fins e os meios empregados para atingi-los? É sintomático que, no final do século XX, o americano V. R. Potter tenha introduzido o conceito de “conhecimento perigoso”, qual seja, “aquele que se acumulou mais rapidamente do que a sabedoria necessária para gerenciá-lo”.

Mais de dois mil anos separam os pensadores citados, entretanto convergem os pensamentos: na ausência da ética e da sabedoria, só têm lugar a desigualdade, a força, a injustiça.

Ao expressar preocupação, não pretendo posicionar-me contra os avanços da Genética, mesmo porque não se pode ignorar o seu uso terapêutico e vantagens tanto na longevidade quanto na qualidade da vida humana.

Vislumbra-se até a possibilidade de empregar a técnica da manipulação do núcleo celular para obter órgãos sadios para transplante. Meu objetivo é fazer uma advertência, como o fez José Renato Nalini: “se a intensidade dos problemas em que se vê mergulhada a sociedade humana parece invencível para o esforço individual, esse é um desafio para a consciência ética.”

Ausente a ética, surgirão os conflitos de interesse, os quais significam desarmonia individual e social. A esta altura, considerando que nem todos os cidadãos terão o discernimento indispensável para agir em prol do bem comum, chega-se à abordagem moral e legal, cujo caráter é prescritivo e compulsório.

Porém, devido à rapidez com que tem avançado a engenharia genética, a legislação, não só no Brasil como nos outros países, ressente-se de lineamentos mais precisos. É verdade que, ciente dos riscos de ordem ética, o Conselho Nacional de Saúde, em 1996, aprovou a Resolução 196, a qual prevê que as pesquisas envolvendo seres humanos “devem atender às exigências éticas e científicas fundamentais”.

Nela, busca-se garantir que tanto os objetivos dos experimentos quanto seus métodos tratem o homem em sua dignidade, respeitem-no em sua autonomia e defendam-no em sua vulnerabilidade. Apesar disso, o instrumental jurídico atual ainda é precário para lidar com as novas relações jurídicas que se estabelecerão entre as pessoas.

Urge fazer um prognóstico quanto à possibilidade de se produzir um clone humano. Sua finalidade seria permitir que uma pessoa impossibilitada de ter filhos por quaisquer outros meios pudesse tê-los.

Mas o ser duplicado seria filho de quem? Se, naturalmente, um filho resulta da combinação de DNAs presentes numa célula feminina e noutra masculina, não seria por possuir as características genotípicas o ser clonado seria filho de um casal e irmão do ser que lhe doou o núcleocombinação de seus DNAs celular?

Decidir tal questão é primordial. No mundo jurídico, se o ser duplicado for considerado, pelo critério genético, filho dos pais do doador, será credor de alimentos, terá direitos sucessórios. Assim, um casal que planejou ter um filho, por exemplo, pode ver-se com dois herdeiros ou mais à sua revelia. Se o doador vier a falecer durante a infância de seu clone, a quem caberá a responsabilidade pelo sustento e educação do ser clonado?

Avancemos mais um pouco no campo das hipóteses. Se uma pessoa doar células para a duplicação de si mesmo e mudar de idéia quando o processo já atingiu a fase de um feto de sete meses, por exemplo. Qual deverá ser a atitude correta? Submeter a “mãe-hospedeira” a um aborto que pode pôr em risco sua vida ou fragilizar sua saúde psíquica? Manter o processo e entregar a criança resultante ao Estado? Ou seria o laboratório o único responsável pelo ser cuja vida se deveu à interferência direta de um de seus subordinados?

Neste caso, seria o bebê propriedade da instituição científica?

E se o bebê rejeitado apresentar, por um problema surgido no parto, algum tipo de comprometimento, como cegueira ou paralisia de membros, a opção seria eliminar aquela vida? Quem o faria? O médico, preparado para salvar vidas, ou o carrasco, pago para matar?

Assim, percebe-se haver extrema complexidade no tema: são retos os seus fins e os meios empregados para atingi-los? Se, para obter um clone saudável, for necessário envolver mais de mil doadoras de óvulos, duas centenas de mulheres dispostas a empenhar seu útero e eliminar centenas de vidas não haverá aí um custo psicológico, moral e ético, embriões, fetos e bebês, muito alto?

Não prego o retrocesso, mas não pretendo ser arauto de um avanço a qualquer preço. À sociedade e a cada indivíduo compete o exame do tema sob a perspectiva ética para se delimitar o seu alcance moral e legal.

Neste seminário, capitaneados pelos doutos e ilustres homens da ciência e do Direito convidados, estamos sendo todos chamados a construir o futuro. Que Deus nos dê sabedoria para cumprirmos tão árdua missão”.

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