Cartilha neoliberal

Desmonte da legislação trabalhista é imposição externa

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5 de novembro de 2001, 11h06

A prioridade social tem de ser a essência do desenvolvimento econômico, e não um mero apêndice ou um suposto resultado natural do crescimento, como arremata Maria Conceição Tavares, (Folha de S.Paulo, 04.11.2001).

O economista Dércio Garcia Munhoz, professor da Universidade de Brasília, demonstra que a política de abertura indiscriminada de nossas fronteiras, sem quaisquer salvaguardas, a partir do governo Collor, nada tem a ver com a tão propalada globalização. A tese baseia-se no fato de que a globalização prevê fluxos de mão dupla, enquanto o que se verificou com o Brasil foi mera ampliação de comércio, com a abertura do mercado para as grandes empresas internacionais interessadas apenas na integração vertical. Ou seja apenas com fluxo de saída.

“O que existe, tanto aqui como na Argentina, são planos políticos de poder e não econômicos. Brasil e Argentina fizeram, no Mercosul, uma abertura de mercado para produtos estrangeiros a preços baixos para manter a estabilidade artificial. ‘Como os dois países se endividaram muito, precisaram de capitais especulativos de curto prazo, daí surgindo o grande fluxo de dólares para financiar o desequilíbrio. Forçados pelos Estados Unidos e outras potências, países em desenvolvimento abriram suas economias aos grandes grupos financeiros internacionais e enfraqueceram os Estados. Foi assim que nós desmanchamos os bancos estaduais, entregamos o Banespa ao capital estrangeiro e no entanto continuamos endividados, na dependência dos EUA e do FMI”. (Jornal o Povo, Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).

Nas observações do cientista político Michel Zaidan, coordenador do mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco, a globalização só poderia ser resposta à crise atual dos mercados, caso represente mais investimentos, créditos, empréstimos em condições ideais, transferência de tecnologia, sendo que da forma como está posta, ao contrário do que se propaga, representa na verdade, mais endividamento, rigidez fiscal, controle externo e queda de soberania, significando mais arrocho, exclusão, fome.

“A solução seria o Brasil percorrer o caminho da China, quando aceitou a globalização impondo condições. O governo mantém controle sobre a política monetária, fiscal. O McDonald’s até se instala no país, mas depois de se ajustar aos interesses nacionais, ao plano estratégico para entrada de capitais”, afirma Zaidan. O Brasil, ao contrário, ‘escancarou-se’.

Ela enfatiza que ”a globalização somente representa progresso quando respeita a forma autônoma de inserção no mercado internacional. O caso da Argentina exemplifica o contrário. O nosso vizinho está indo para o fundo do poço e com um abraço de afogado no Brasil que pode caminhar junto rumo à depressão”. (Jornal o POVO – Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).

Como principal defensor da globalização como meio de promoção do desenvolvimento mundial, o sociólogo inglês, Anthony Giddens, o idealizador da Terceira Via e guru do primeiro-ministro da Inglaterra, recomenda como remédio para a crise atual, mais globalização, apontando como um dos argumentos o fato de que países pobres, como os africanos, estão nessa condição exatamente porque não se beneficiaram da globalização.

Contrariando esse posicionamento, o cientista político e professor universitário Francisco José Loyola Rodrigues, diverge. Opina que a história é bem outra, pois a África está miserável porque os países ricos, principalmente os europeus, deram as costas à ela depois de séculos de espoliação, sendo que a exploração persiste até hoje, com a cobrança de uma dívida impagável.

“O movimento antiglobalização afirma que o abismo entre ricos e pobres no mundo está aumentando e que a responsabilidade disso cabe à globalização. A primeira idéia é questionável e a segunda é falsa. Não existem tendências simples em matéria de desigualdade mundial. Alguns dos maiores países do leste asiático, incluindo a China, têm hoje um PIB muito maior, comparado ao dos países ocidentais, do que tinham 30 anos atrás”, escreveu, em artigo publicado no último dia 29, em jornal de circulação nacional, Anthony Giddens.

O êxito, segundo ele, se deve a participação na economia mundial. Em contrapartida, afirma o sociólogo, “‘as sociedades que procuraram se isolar das influências globalizadoras, como a Coréia do Norte, Mianmar ou Irã, sem falar no próprio Afeganistão, estão entre as mais miseráveis e mais autoritárias do mundo”.

”O que houve na África foi muito diferente: o continente foi vítima do colonialismo europeu durante séculos e quando os colonizadores abandonaram a África, sugada em suas riquezas, estraçalhada, desertificada, ela não teve asa para decolar. O desinteresse se deve, também, à geografia. Os países da América Latina conquistaram sua independência há um ou dois séculos. A África, no caso, não poderia participar da globalização a não ser como vítima a ser ajudada”. (Jornal o POVO – Fortaleza, 3 de Novembro de 2001).


De percepção comum já do povo, até do mais simples, que a economia internacional ‘globalizada’, apesar de sua fantástica capacidade produtiva exemplar, está criando uma realidade nova globalizadora muito preocupante – a de um mundo novo de desempregados, de desiludidos, de desesperançados e de excluídos – decorrente da política de redução do papel do Estado, na busca prevalente do mero interesse particular do lucro, sem qualquer preocupação com a vida, que é a razão principal do Estado.

Esta realidade cruel já foi reconhecida até mesmo pelo FHC em sua recente entrevista ao Jornal espanhol “El País”, ao redefinir o papel do Estado como um “ser ecológico”. “O Estado deve ocupar-se da vida. A vida, as pessoas, a saúde, a educação, a segurança, o meio ambiente. O mercado não se ocupa disso. Nunca se ocupou nem vai ocupar-se. O Estado deve ser o gestor da vida e o mercado, o gestor dos bens. E a vida tem que prevalecer sobre os bens”. (Folha de São Paulo, 30.10.2001).

A crise vivenciada não apenas pelo Brasil e Argentina, mas de todos os países em desenvolvimento está centrada na percepção de um descompasso entre fluxos comerciais e financeiros. O compromisso financeiro assumido é incompatível com o perfil de integração comercial argentino e brasileiro.

O relatório do Banco Mundial (Bird) é esclarecedor sobre esta questão. A Argentina e Brasil devem sofrer mais por causa das turbulências nos mercados de capitais do que devido aos efeitos comerciais relacionados ao enfraquecimento da atividade global. (Folha de São Paulo, 04.11.2001).

E como sintetiza o articulista da Folha, Gilson Schwartz: “Isso reflete o nível elevado de dívidas públicas e privadas e grandes déficits em conta corrente, cerca de 3% do PIB para a Argentina e em torno de 5% para o Brasil. Com esse perfil de dívida, nem a queda dos juros no resto do mundo ajuda”.

Chega de ilusão. Os países ricos na verdade usam do discurso da liberação do comercio global, mas dentro de suas fronteiras defendem intransigentemente os seus interesses internos (agricultura e políticas de antidumping e anti-subsídio).

A orientação nº 319 do Banco Mundial e a política de desmonte dos direitos trabalhistas

Não foi por outro motivo que o constituinte brasileiro, ao reconhecer essa realidade incontestável de objetivos diversos e buscando assegurar ao Estado condições da promoção do bem comum e tendo o homem como beneficiário e destinatário de todas as riquezas geradas pela produção econômica, assegurou a prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro (CF, art. 5º, inciso XXIII e 170, incisos, I, III, V, VI, VII, VIII).

Não obstante a necessidade do respeito ao direito pleno de soberania de cada país, é de todos sabido que o Banco Mundial por seu documento técnico nº 319, como condicionante à liberação dos empréstimos internacionais, impõe aos países tomadores desses recursos, e em especial os ditos emergentes, como Argentina e Brasil, novas concepções de Justiça, do Direito do Trabalho, de emprego, flexibilizando-se sua legislação de sustento, pela política neoliberal de prevalência do negociado sobre o legislado. As normas rígidas existentes nos códigos, constituições já não servem ao mercado.

O que se pretende atualmente não é valorizar o trabalhador, mas adaptar o trabalho ao mercado. “A economia de mercado demanda um sistema jurídico eficaz para governos e setor privado visando solver os conflitos e organizar as relações sociais. Ao passo que os mercados se tornam mais abertos e abrangentes e as transações mais complexas, as instituições jurídicas formais e imparciais são de fundamental importância. Sem estas instituições, o desenvolvimento no setor privado e a modernização do setor público não será completo”.

Diz, ainda, a referida “recomendação” que os programas de Reforma do Judiciário devem ser feitos em etapas. “A construção de um projeto de reforma global do Judiciário como objetivo principal, o que demanda um tempo razoável, discussões, estratégias políticas, e ao mesmo tempo se implementar alterações legislativas fracionadas que irão mudando o contexto global” (CLAIR DA FLORA MARTINS, IV ELAT, realizado na Argentina, de 24 a 27.10.2001, exposição feita no painel: Reforma Laboral: Disponibilidad colectiva y contrato individual. Derechos adquiridos).

Deve-se ressaltar, portanto, que o exemplo de se seguir a política suicida de desmonte da legislação social e trabalhista, privilegiando os interesses particulares de mercado, já foi rigorosamente seguido pela Argentina.

Nada adiantou. Não se vislumbrou saídas econômicas promissoras, sendo que o seu nível de arrecadação baixou 11%, além de contar com dois problemas de difícil solução, a dívida dolorizada e a dificuldade política de redução do repasse de verbas públicas às províncias. Tudo isso, apesar do reconhecimento inconteste de ser a Argentina um dos países mais competitivos do mundo no setor agrícola e de possuir o nível educacional e cultural dos mais altos da América Latina.


Segundo o economista Paulo Leme, do Goldman Sachs, um dos estrategistas de mercados emergentes mais respeitados de Nova York a sua situação econômica é das mais complicadas. “Renegociar a dívida não resolve a crise da Argentina. Com a piora do quadro mundial, a economia projeta retração de dois dígitos, o que agrava ainda mais o quadro da Argentina. A estratégia do déficit zero não funciona com a economia mundial em queda”. (jornal da Lílian, Sexta-feira, 02 de novembro de 2001, Os rumos da Argentina depois do oitavo pacote).

Apesar disso tudo, a opção do presidente Fernando De la Rua é por mais globalização e por mais flexibilização dos direitos trabalhistas, como denunciou o jurista Héctor RECALDE (da Argentina) em sua intervenção no IV ELAT (Encontro Latino-Americano de Advogados Laboralistas), realizado em Buenos Aires de 24 a 27 de outubro de 2001, painel: Incidência de la globalización Y el neoliberalismo em el derecho laboral argentino y latinoamericano.

“Atendendo à orientação contida na Orientação nº 319 do Banco Mundial, o governo do Presidente Fernando De la Rua acaba de enviar expediente à referida agência mundial, comunicando que o governo da Argentina prossegue sua política legislativa de flexibilização dos direitos trabalhistas, agora legalizando inclusive a terceirização de mão de obra no País, até mesmo através das Cooperativas de Trabalho”.

No Brasil, a situação não é muito diferente. O que nos diferencia são as garantias sociais e trabalhistas asseguradas pela Constituição Federal, o que dificulta um pouco mais a política de desmonte dos direitos trabalhistas então já consolidados no patrimônio jurídico dos trabalhadores, como créditos de ordem pública, alimentares e indisponíveis, só podendo ser renunciáveis na presença do juiz do Trabalho, como forma de evitar-se fraudes, como ressalva PINTO MARTINS: “(…) pois nesse caso não se pode dizer que o empregado esteja sendo forçado a fazê-lo” (MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho, 8ª edição, SP Edit. Atlas, 1999).

Como na Argentina, o governo neoliberal de FHC tem procurado seguir à risca a cartilha neoliberal de flexibilização e desregulamentação dos direitos sociais e trabalhistas em prol da regulação própria de mercado, como se extrai do exame da legislação já modificada: ‘banco de horas’ (sistema de compensação de horas-extras), ‘contratação por tempo determinado, com redução de encargos’, etc, sendo que no Congresso Nacional tramitam diversos projetos de lei que tem preocupado os trabalhadores e as entidades nacionais existentes compromissadas com a defesa, o direito e o respeito à manutenção das garantias legais protetivas do trabalho humano (entidades sindicais obreiras, OAB, Abrat, Anamatra e Associação dos Procuradores do Trabalho, dentre outras).

Dentre esses Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, especial destaque deve ser atribuído:

a – ao Projeto de Lei 4.302-B, que pretende alterar a Lei 6019/74, para permitir-se a legalização da locação de mão de obra, por prazo de nove meses e ou mais, por negociação coletiva, quer para os casos de atividade ‘meio’ e ou mesmo para os casos de ‘atividades fins’, autorizando, assim, a que a terceirização seja praticada livremente sem quaisquer ressalvas e ou reservas;

b – ao Projeto de Lei 5483/2001, encaminhado em regime de urgência, que alterando o art. 618 da CLT, pretende a prevalência do negociado sobre o legislado, sem antes se assegurar às salvaguardas necessárias a que efetivamente haja uma livre e necessária negociação coletiva, sem submissão do trabalho aos interesses do mero interesse particular do lucro do capital, sem preocupação com a vida e ou com o social, que é papel exclusivo do Estado.

A nova redação de alteração do art. 618 da CLT proposta pelo Projeto governamental tem a seguinte redação: “As condições de trabalho ajustadas mediante convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, desde de que não contrariem a Constituição Federal e as normas de segurança e de saúde no trabalho”.

Em nosso entender, além de equivocado o projeto, principalmente neste momento de crise e de desemprego mundial crescente, a proposta colide com o texto constitucional que não autoriza flexibilizações outras da legislação protetiva do trabalho humano, já que expressamente a própria Carta Política vigente já limitou a flexibilizou onde entendeu possível, ou seja, “redução do salário (art. 7º, VI); redução da jornada de oito horas diárias (art.7º, XIII) ou da jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento (art.7º, XIV).

O direito trabalhista brasileiro é tutelar e não admite restrição de direitos irrenunciáveis

O nosso ordenamento jurídico assegura a garantia da indisponibilidade e da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. “No direito do trabalho, unânime a aceitação de que a regra é a inderrogabilidade relativa das regras jurídicas, máxime diante dos arts. 9º, 444 e 468, da Consolidação das Leis do Trabalho. As partes interessadas podem dispor, sim, desde que não contrariem os patamares mínimo e máximo estabelecido pelo ordenamento jurídico, quer em lei, quer em instrumento normativo da categoria, sob pena de nulidade (…).

Os direitos dos trabalhadores, quer os previstos em lei, quer os negociados em acordos, convenções coletivas ou previstos em sentença normativa, assim como os abrangidos por normas emanadas de autoridades administrativas no exercício de sua competência legal, se inserem nos contratos individuais de trabalho, tornando irrenunciáveis as respectivas cláusulas”. (ALDACY RACHID COUTINHO in “A INDISPONIBILIDADE DE DIREITOS TRABALHISTAS”, monografia publicada na Revista da Faculdade de Direito da UFPR Vol. 33 – 2000, pág. 09).

Os direitos sociais e trabalhistas foram elevadas à categoria de direitos fundamentais, artigos, 6º, 7º e parte final do § 2º do art. 114 da CF, garantia constitucional esta que veio a ser reafirmada recentemente pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que, no exercício de sua competência plena e exclusiva de guardiã da Lex Legum (CF, art. 102, caput e inciso III “a”), decidiu que o direito ao negociado não pode violar os direitos legais irrenunciáveis dos trabalhadores: “Acordo Coletivo e Estabilidade de Gestante (…) os acordos e convenções coletivas de trabalho não podem restringir direitos irrenunciáveis dos trabalhadores (…)STF, Primeira Turma, RE 234.186-SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, in DJ de 31.08.01).

Há que se reagir contra essa idílica visão economicista traçadas pelas políticas neoliberais da última década, que após a queda do muro de Berlim, mudou de rumo. Em vez de se persistir nos caminhos da busca do pleno emprego, inverteu-se as prioridades, ao abandonar esse objetivo “à medida que as teorias neoliberais passaram a acentuar uma espécie de relação perversa entre pleno emprego e inflação, disseminando conceitos deletérios como o de uma taxa natural de desemprego ou a existência de milhões de inempregáveis. Temos que reagir e voltar ao ideal da busca do pleno emprego” (Rubens Ricúpero, Folha de São Paulo, 04.11.2001).

Urge, portanto, que o governo deixe de violentar a Constituição cidadã que jurou respeitar e exerça efetivamente o direito à plena soberania assegurada pelo art. 1º (I), fazendo cumprir o primado da prevalência do social em detrimento do mero interesse particular do lucro, fazendo valer o reconhecido papel do Estado como um “ser ecológico”, que se ocupa com as pessoas, com a saúde, com a educação, com a segurança, com o meio ambiente – um Estado gestor da vida – já que o mercado não se ocupa disso. Que se faça prevalecer a vida sobre os bens!!!

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