Falsa reforma

Problemas reais do Judiciário não estão na reforma

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2 de novembro de 2001, 10h30

No corolário de idéias mal digeridas sobre as deficiências do sistema Judiciário brasileiro arregimentam-se críticas infundadas, pelas quais julga-se que a reforma que redundará na sua melhoria deve ser de natureza legal ou tão somente processual. Estas colocações são fruto de um tão cabal desconhecimento do problema verdadeiro que por vezes até os olhos mais argutos hesitam em concluir se vicejam pela ignorância, por uma orquestração demagógica, ou, quem sabe, pelos dois.

Fala-se de súmulas vinculantes, diminuição do número de recursos, controle externo do Judiciário, mas em momento algum são atacados os verdadeiros problemas, os quais, uma vez sanados, dispensariam muitas das medidas aventadas; alguns dos problemas e soluções são, a meu ver, os abaixo indexados, em sua maioria de natureza administrativa ou política:

a) Falta notória de funcionários e juízes – o problema é mais que tudo numérico, e portanto administrativo, sendo impossível, mesmo com a melhor legislação processual, atender à demanda processual que se multiplicou com o advento da democracia, com leis que regulam o consumo, Juizados Especiais, etc., de modo que os cidadãos recorrem com muito maior freqüência ao Judiciário.

O número de juízes deveria ser quatro vezes maior, mas isto custaria muito ao Estado e esta é a verdadeira razão da permanência de tal situação, por absurda que seja. Juízes acumulando Varas, numa loucura kafkiana em meio a montanhas de papel com que os advogados convivem, junto com os funcionários do Judiciário, todos os dias.

O grande aceno demagogo concentrou fogo no controle externo do Judiciário, de forma que com o fôlego da CPI do Judiciário, no melhor sabor sensacionalista, impeliu-se tal reforma; entretanto, sorrateiramente, a lei de responsabilidade fiscal determinou que somente 6% da receita sejam gastos com o Judiciário, apunhalando pelas costas qualquer possibilidade deste urgentíssimo aumento do quadro funcional.

Tal conduta é completamente compatível com a “demonização” do funcionalismo público que o Governo FHC promove, querendo reduzir assim os gastos públicos. Por outro lado, ninguém é melhor e mais bem servido pela morosidade judicial que o Estado, que deixa de pagar precatórios mas recolhe imediatamente os depósitos prévios em algumas ações tributárias. Se a política do governo FHC não fosse a de pagar juros tão altos, mas sim pagar mais juízes, o fluxo comercial no Brasil aumentaria, pois tornar-se-ia um país mais confiável onde a rapidez do Judiciário corroboraria a segurança dos contratos comerciais.

b) Elevação do salário dos magistrados combinada com a proibição de qualquer outra atividade para juízes ativos, com a vedação de que dessem aulas em faculdades, escrevessem livros ou fizessem mestrados, doutorados, etc.

No meio jurídico brasileiro, ao que parece, a sabedoria de alguém “transita em julgado” quando passa num concurso, de modo que o título de magistrado torna o profissional consideravelmente atraente para as editoras, cursos jurídicos e faculdades de direito, que assim fazem inúmeros convites e oferecem muitas oportunidades para considerável aumento de renda pessoal. Isto impele a divisão de tempo e conseqüente prejuízo para a atividade forense. Necessita-se de um magistrado plenamente operante.

Confinar o magistrado unicamente na atividade judicante faria com que a manifestação de cultura estivesse restrita às sentenças, descartados assim os livros, conferências, aulas, etc. Evidentemente, para que o magistrado não seja impelido a buscar outras fontes de renda, o salário deve ser excelente, pois um profissional deste nível tem de ganhar condignamente com sua capacidade.

c) Adoção de relógio de ponto para os juízes, promotores, defensores, procuradores da Fazenda, etc., com hora certa para entrar e sair. Com a devida reverência, exclua-se essa proposta para aqueles Tribunais e órgãos onde isto já ocorre. Sabemos que há magistrados que trabalham muito mais que o normal, e portanto não estamos fazendo nenhuma espécie de insinuação, mas simplesmente reivindicando uma regra que serviria a todos, ou seja, saber-se que naquele momento o juiz estará ali onde se espera que esteja e se pode assim encontrá-lo.

d) Orientação, por partes das escolas de magistratura, que deveriam ser obrigatórias antes do exercício da função, para que as sentenças não fossem instrumento de expansão de erudição, devendo ser o mais sinteticamente fundamentadas, salvo quando a complexidade do caso requeresse tal coisa. Recordemos que o julgamento de Pinochet na Câmara dos Lordes, na Inglaterra, teve votos de uma ou duas páginas, enquanto que aqui uma sentença em ação movida para reaver um sinal de arras no valor de R$ 300,00 pode virar um tratado sobre a matéria; há juízes que se preocupam demais com a posteridade, ou melhor, com a segunda instância…

e) Extinção do dispositivo que obriga o recurso de ofício nas causas em que a Fazenda Pública sai perdedora.

f)Adoção de controle de produção medido em número de despachos ou sentenças.

g) Conversão de precatórios em títulos negociáveis e válidos para compensação de crédito tributário.

h) Adoção da súmula vinculante unicamente nas causas decididas contra a União, Estados e Municípios (estes são os maiores litigantes).

i) Impedimento definitivo da advocacia para procuradores da Fazenda.

j) Criação de um Conselho Administrativo Recursal, formado por juízes, advogados e procuradores, que decidiria quando a União, Estados ou Municípios devem recorrer de sentenças ou acórdãos. A idéia de recorrer sempre, mesmo em questões idênticas onde sempre sai perdedora a Fazenda, chegando assim a entulhar o STJ e o STF, seria cortada logo na raiz, além do que, subtrairia de secretários, governadores e outros “funcionários públicos temporários” o poder de orientação e decisão neste sentido, o que obriga os procuradores a seguir uma linha política, se é que se pode chamar de “linha política”, e não de “molecagem” a prática de recorrer sabendo que de antemão se perderá, que não tem a mais mínima razão, que causas idênticas já foram perdidas centenas de vezes, etc., só para “empurrar com a barriga” o cumprimento das decisões judiciais…

k) Concurso entre desembargadores dos TJs e TRFs para ingresso no STJ e STF, com mandato de no máximo 10 anos, extinguindo-se assim a vitaliciedade – O STF e o STJ são tribunais de natureza eminentemente política, porém não a política partidária, mas sim a política constitucional e legal, ou seja, a política necessária para a preservação da ordem jurídica. São tribunais políticos com a finalidade precípua de manter a interpretação correta da constituição e das leis federais. Quanto a salvaguarda da Constituição pelo STF, veja-se que direito constitucional é necessariamente um direito político. É política sob forma jurisdicional.

A função social da propriedade, os juros de 12 % ao ano,a efetividade concreta do mandado de injunção e outras disposições constitucionais terão sua aplicabilidade imediata sempre na exata medida da noção política aplicada. As mesmas normas podem, por exemplo, em mãos de uma Corte indicada pela esquerda, ter fortíssima aplicação, de modo que todas as invasões do MST estariam justificadas à luz do inciso XXIII da do art. 5º da CF/88; esta mesma Corte poderia entender que a “inteligência” do dispositivo relativo aos 12 % de juros anuais, disposto no art. art. 192, §3º da CF, cabe numa máquina de calcular (com o que concordo), ou seja, bastaria o cálculo de 12 % sobre alguma coisa e aplicá-lo, independendo de lei complementar.

A indicação de membros para os Tribunais Superiores deve acabar, de modo que o cargo esteja o mais próximo do conhecimento jurídico e o mais distante de qualquer influência. Grandes vultos existiram e existem nestes Tribunais, de modo que não estamos fazendo nenhuma crítica pessoal a nenhum de seus membros, mas tão somente desenvolvendo uma análise sob o ponto de vista meramente institucional.

Sobre a súmula vinculante, mencionada como panacéia para os entraves Judiciários, diga-se que é preciso ter em vista as vísceras institucionais, ou seja, deve o leitor se perguntar antes sobre quem emitirá tais súmulas. A forte conotação política das decisões do STF e do STJ pode muitas vezes contrariar grandes e justos anseios coletivos encontrando, assim, a resistência a sua aplicação pelas instâncias inferiores, por vezes mais afinadas com a problemática social. Exemplo claro foi o julgamento da ADIN nº 4, pelo STF, pacificando-se nos Tribunais Superiores o entendimento de que a norma do art. 192, §3º da CF em relação à limitação de juros em 12% ao ano não é auto-aplicável, sendo, em conseqüência, incabível, enquanto não editada a lei complementar a que alude o caput do mesmo artigo.

Mesmo cientes da decisão, muitíssimos juízes e Tribunais continuaram a decidir em sentido contrário, sensibilizados pela grande injustiça social frente ao autoritarismo especulativo que a decisão concentra, e, sobretudo, vendo como óbvia e cristalina a aplicabilidade imediata da norma, pela claridade literal do comando que encerra.

O presente exemplo ilustra que a manutenção de posições contrárias, consoante a independência decisória dos órgãos do Judiciário, serve a produzir uma forte corrente doutrinária que apura o pensamento jurídico, com o condão de forçar a transformação do entendimento do STF.

Esse processo de amadurecimento jurisprudencial periga estancar no tempo se adotada a inteira submissão às súmulas de efeito vinculante. A súmula de efeito vinculante serve, de modo indireto, a concentrar as decisões de grande importância na cúpula de um Poder.

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