Judiciário parado

Juiz defende greve dos servidores do Judiciário

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1 de novembro de 2001, 13h08

A Constituição Federal, num Estado de Direito, por representar o direito que emerge do seio da sociedade, de fato, deve reger-lhe os destinos. Como se sabe, ela pode – nesse Estado, onde reine o que é direito – mais que tudo; inclusive, que a conveniência dos homens. Seus princípios e diretrizes, porque constitucionais, dentre outros, estabelece lindes a todos os Poderes – notadamente ao Executivo -, que lhe devem submissão, sob pena de se estabelecer arbítrio – antítese do Estado de Direito.

Se, dentro da casuística Constitucional, há princípios ou normas que destoem da realidade social, que se os ajustem a esta, de molde a que se não tornem letra morta na vida dos indivíduos e do Direito.

É o caso, por exemplo, do preceito que diz que, neste País, visando à melhoria de sua condição social, é direito do trabalhador, dentre outros, salário mínimo “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo,…” (art. 7º, IV, da Constituição Federal). Hoje, esse salário é de R$180,00 (cento e oitenta reais); muitíssimo aquém, evidentemente, da determinação constitucional.

Outros dispositivos existem, nessa situação. Ou seja, é direito; mas, só no papel (figura de retórica). Que se refuja, pois, juridicamente, à hipocrisia, revogando-se norma sistematicamente descumprida, caso se a não possa, na prática, cumprir.

Além disso, muitos outros dispositivos constitucionais, exeqüíveis, vêm sendo sistematicamente desrespeitados, por seus destinatários precípuos. Especifiquemo-los, naquilo que aqui interessa – os arts. 9º e 37, VII (direito de greve) e X (previsão de revisão geral anual da remuneração do servidor público).

A chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, Complementar da Constituição Federal – nº 101, de 04 de maio de 2.000 -, que entrou em vigor na mesma data (de sua publicação – art. 74 dela), a par da aparente intenção de moralizar finanças e do real distanciamento da verdade financeira do Poder Judiciário, antes dela já comprometida – em estado de pré-falência – e, depois, num processo de estrangulamento total, suscetível de inviabilizar seu funcionamento regular, em prejuízo do povo – sobretudo, neste Estado de São Paulo -, em dois de seus artigos – respectivamente, 22, § único, I e 71 -, de seu espectro (campo) exclui, expressamente, a hipótese do art. 37, X, da Constituição Federal (e não poderia ser diferente, por se tratar de diretriz insuscetível de ser obviada por lei complementar – hierarquia de leis).

Textualmente, eis o que prevêem:

Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

I – concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição; (grifo e negrito meus).

Art. 71. Ressalvada a hipótese do inciso X do art. 37 da Constituição, até o término do terceiro exercício financeiro seguinte à entrada em vigor desta Lei Complementar, a despesa total com pessoal dos Poderes e órgãos referidos no art. 20 não ultrapassará, em percentual da receita corrente líquida, a despesa verificada no exercício imediatamente anterior, acrescida de até 10% (dez por cento), se esta for inferior ao limite definido na forma do art. 20. (grifo e negrito meus).

De sua leitura se infere, inequivocamente, que, independentemente de que algo mais se considere, à guisa dos percentuais nela referidos, configurada essa hipótese, que condiz com a só reposição de perdas acumuladas no período e adstritas a índices de inflação, sequer se pode juridicamente cogitar em limitação daquele direito, de cunho Constitucional, sob pretexto do advento da Lei citada, que, repita-se, no particular, se coaduna com o mandamento Constitucional.

Sabe-se – ao menos no meio jurídico – da preexistência da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.061, do Supremo Tribunal Federal, relatada pelo Ministro Ilmar Galvão e ajuizada por dois partidos políticos, por omissão do Presidente da República, justamente, no cumprimento do art. 37, X, da Constituição Federal, julgada parcialmente procedente para que se lhe desse ciência do fato de estar, positivamente, incurso naquela omissão.

Em outras palavras, decorridos cerca de três anos da Emenda Constitucional nº 19/98 – que deu a atual redação àquele dispositivo -, essa autoridade (destinatário exclusivo do preceito, no caso concreto), que se comprometeu a cumprir a Constituição Federal, à data da decisão, então, nada houvera feito nesse sentido, coisa injustificável num Estado efetivamente de Direito, conquanto concebível em Estado que o desconheça.

É o velho dilema: o que está no papel – mormente, se esse papel é a Constituição do País -, deve ser cumprido, por quem de direito, sem que se faça necessário se lhe dê ciência de que assim deverá proceder (partindo-se da premissa de que o alto mandatário da Nação deva ter essa consciência).

Uma coisa é apregoar que se está inserido no contexto de um Estado de Direito, onde este é efetivamente cumprido; outra, realizando o Direito, cumpri-lo segundo compromisso assumido quando da posse, prescindindo-se de decisão judicial que o diga.

Mas, note-se, mesmo assim – diante daquela decisão -, o reajuste (em verdade, reposição – restituição de perdas) a ser concedido não superará, em âmbito federal, cerca de 3,5%; absurdo, comparativamente à verdadeira inflação nos períodos.

Do descumprimento do mencionado art. 37, X, da Constituição Federal, acumuladas perdas de vencimento dos servidores públicos do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, num período aproximado de sete anos (apesar de abono concedido no ano passado, que se não incorpora ao salário), desde 27 de agosto passado, foi deflagrada greve desse funcionalismo, irrespondível em sua justiça, porque legítima.

O Poder Judiciário não dispensa remuneração justa de servidores e juízes; aqueles, base do serviço destes. Uns não andam sem os outros. A respeito, existe o precedente específico do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, em consonância com a exegese aqui retratada, encaminhou projeto de lei à Assembléia Legislativa daquele Estado e que se transformou na Lei nº 11.522/2.000; destarte, atendendo à diretriz Constitucional já referida, cuja preterição – ou postergação -, bom se frise, no quadro atual da sobrecitada greve, tornará inda mais caótico o estado de coisas da Justiça Paulista.

D´outra feita, para nós, irrefutável a linha de argumentação do desembargador Mohamed Amaro, deste Estado, em decisão de 27 de setembro passado, no mandado de segurança nº 84.614.0-7, em especial, quanto ao reconhecimento do direito à greve; por conseguinte, obstando-se desconto de vencimentos relativos aos dias de paralisação.

Não obstante essa decisão tenha sido cassada, em caráter liminar, no Supremo Tribunal Federal, respeitado o posicionamento contrário e pendente julgamento do mérito da questão, à vista da omissão do legislador federal na elaboração de lei complementar definidora dos limites desse tipo de greve (vide arts. 9º e 37, VII, da Constituição Federal e art. 115, VIII, da Constituição deste Estado), desde 04 de junho de 1.998 (data da Emenda Constitucional nº 19), a justificar fundado mandado de injunção, aquela só inércia confere legalidade ao exercício do direito à greve, sob pena de se entender, equivocadamente, que a eficácia da Constituição Federal estaria a depender de norma de hierarquia inferior, ao sabor da conveniência de legislador relapso – que falta ao cumprimento de seu dever, de sua obrigação (vide léxico).

Exemplificando, a este se daria, dando-se guarida àquele entendimento, o controle “ad eternum” do direito reconhecido na Constituição. Já foi dito: o direito precisa sair do papel e ganhar foros de cidadania, para que os princípios constitucionais sirvam, de fato, à garantia dos direitos a que visam resguardar.

Sintetizando, faz-se preciso, porque imperioso e ínsito ao Estado de Direito, o estabelecimento – ou restabelecimento – do primado da Constituição Federal, acima de quaisquer pessoas e como base da convivência pacífica e harmônica da sociedade.

Do contrário, dir-se-á existir, neste País, uma Constituição, rígida em seus princípios, conquanto passível de cumprimento ao sabor da conveniência de seus destinatários; ou seja, uma fantasmagoria – falsa aparência de lei (a um só tempo, uma realidade formal e uma fantasia real).

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