Gás no Rio

Governo do Rio não deve fiscalizar gás em botijões, decide TJ

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29 de março de 2001, 0h00

O 5º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, acompanhando o voto do desembargador Sylvio Capanema de Souza, negou provimento, por unanimidade, ao agravo regimental do governo do Estado do Rio de Janeiro. O Estado queria continuar com poderes para fiscalizar a utilização de gás em botijões ou cilindros em instalações internas de ruas.

A fiscalização seria feita pela Secretaria de Estado de Defesa Civil, juntamente com a Secretaria de Segurança Pública.

Segundo o Grupo, a competência para disciplinar a atividade de distribuição e fornecimento do GLP é federal e servida pela ANP. Quem saiu vencedora da questão foi a distribuidora Minasgás, autora da ação.

Leia, na íntegra, a decisão do TJ do Rio.

Mandado de Segurança. Distribuição e armazenamento de GLP em recipientes estacionários. Art. 144 do Dec. 897/76. Segurança Pública. Poder de Polícia. Livre concorrência. O disposto no art.144 do Des.897/76 não foi recepcionado pela CF/88, que garante a livre concorrência e iniciativa, só se justificando quando a CEG era estatal, constituindo hoje odiosa discriminação contra as demais empresas.

A competência para disciplinar, autorizar e fiscalizar a atividade de distribuição e fornecimento de GLP é federal, exercida pela ANP, que permite a instalação dos recipientes estacionários, segundo as regras técnicas da ABNT. Quanto ao risco de explosão, ele foi mitigado pela Port.47/99 da ANP, e existe, em tese, em todas as demais utilizações de gás, como no gasômetro, nos botijões domésticos, nas galerias subterrâneas da CEG e nos veículos hoje movidos à GLP. Segurança concedida, mantendo-se a liminar, sem ônus sucumbenciais ou verba honorária.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de MANDADO DE SEGURANÇA nº 542/00, em que é Impetrante MINASGAS DISTRIBUIDORA DE GÁS COMBUSTÍVEL LTDA e Impetrado EXMO. SR. SECRETARIO DE ESTADO DE DEFESA CIVIL E OUTRO.

ACORDAM os Desembargadores que compõem o Egrégio 5º Grupo de Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por UNANIMIDADE de votos, conceder a segurança.

Trata-se de Mandado de Segurança impetrado por Minasgás Distribuidora de Gás Combustível Ltda. atacando ato dos impetrados que a compelia a desmontar os recipientes de armazenamento de GLP, instalados em estabelecimentos que são grandes consumidores do produto.

Sustenta a impetrante que se dedica ao comércio de gás liqüefeito de petróleo, sob autorização e fiscalização federal, sendo empresa distribuidora.

Nestas condições, mantém instalados recipientes estacionários, que são tanques destinados ao armazenamento do gás, em clientes de elevado consumo, tais como o Nova América Outlet Shopping, em Del Castilho, e a CLS São Paulo Ltda., que explora o restaurante Outback, na Barra da Tijuca , sendo tais recipientes construídos e montados segundo as rígidas normas de segurança da ABNT autorizados pela ANP (Agência Nacional de Petróleo), a quem hoje cabe fiscalizar a atividade .

Ocorre que tais clientes teriam sido intimados pelas autoridades impetradas, para desmontar os recipientes, com o que não se conforma a impetrante.

A inicial veio instruída com os docs. de fls.18/43.

A liminar foi concedida, às fls.48, suscitando a interposição do Agravo Regimental, pelo Estado do Rio de Janeiro, e cujas razões se acham às fls.57/68, acompanhado dos docs. de fls.69/83.

Ao Agravo Regimental o Grupo negou provimento, por unanimidade, como se vê do v. acórdão de fls.96/98, que manteve a decisão do Relator, que havia concedido a liminar.

Os impetrados prestaram as informações de fls.51/55, aduzindo, em resumo:

que o art.144 do Dec.897/76, que regulamentou o Dec. Lei 247/75 proíbe, expressamente, a utilização de gás em botijões ou cilindros, nas instalações internas situadas em ruas servidas por gás canalizado;

que o Código de Segurança contra Incêndio e Pânico (Dec.897/76) atribui ao Corpo de Bombeiros, entre outras tarefas, a de exigir e fiscalizar todo o serviço de segurança contra incêndio, pelo que, no exercício de seu poder de polícia, pode determinar toda e qualquer providência que julgar conveniente à segurança pública;

que, assim sendo, o ato não é ilegal ou abusivo;

O Estado do Rio de Janeiro ofereceu sua impugnação, com as razões de fls.85/93, reiterando iguais argumentos, invocando o poder de polícia e seu dever de proteger a população contra incêndio e pânico, sendo evidente o risco de explosão dos malsinados recipientes, o que causaria uma catástrofe de inimagináveis proporções.

Parecer do Ministério Público, através da pena ilustre e culta do Dr.Ertulei Laureano Matos, pela concessão da ordem, como se vê de suas judiciosas conclusões, às fls.112/116.

É o relatório.


A matéria fática é incontroversa. A impetrante é regular distribuidora de GLP, e sua atividade é hoje autorizada, disciplinada e fiscalizada pela ANP, subsumindo-se, portanto, à legislação federal.

No exercício de seu comércio regular, idealizou um novo sistema de distribuição e armazenamento do gás, para clientes de elevado consumo, evitando, assim, a instalação de cilindros, em série, que têm que ser constantemente trocados.

Tal sistema, que evita a troca constante dos cilindros, reduz, como é óbvio, os custos, e garante, de maneira mais eficiente, a utilização do produto, não se correndo o risco de vir ele a faltar, por um problema na distribuição e troca dos recipientes.

Foi assim que a impetrante resolveu instalar, na sede destes grandes consumidores, os chamados recipientes estacionários, que são permitidos e definidos na Portaria nº 47, de 24/3/99, do Diretor Geral da ANP , como “recipiente fixo construído conforme especificações da ABNT, com capacidade superior a 0,25 m3.

Esta Portaria, que é de transcendental importância para a solução do “writ”, se destina a “regulamentar a execução das atividades de projeto, construção e operação de transvasamento de sistemas de abastecimento de gás liqüefeito de petróleo – GLP à granel”.

Estabelece, ainda, esta Portaria, que os recipientes terão que obedecer às rigorosas regras técnicas da ABNT, sendo que as empresas fornecedoras que os utilizam terão que manter serviço de assistência técnica por 24 horas e elaborar planos e manter registros de manutenção periódica, além de elaborar manual do procedimento para situações de emergência, tudo como se lê dos arts.2º e 9º da referida norma.

Fácil é perceber que o sistema do fornecimento de GLP, à granel, através de recipientes estacionários é permitido e regulamentado pelo órgão competente e fiscalizador, a quem se confere o poder de polícia, para fazer cessar a utilização, caso inadimplidas as regras emanadas da legislação federal competente.

São estes os recipientes que os impetrados exigem que sejam desativados, sob dois únicos argumentos.

O primeiro invoca a regra inserida no art.144 do Dec.897/76, que, por sua vez, regulamentou o Dec.Lei nº247/75, cuja dicção é a seguinte:

“Nas edificações dotadas de instalações internas situadas em ruas servidas por gás canalizado não será permitida a utilização de gás em botijões ou cilindros”.

O segundo, sustenta que os referidos recipientes infringem o Código de Segurança contra Incêndio e Pânico, constituindo verdadeiras “bombas”, que podem explodir a qualquer momento, em áreas densamente povoadas e freqüentadas, causando uma tragédia de inimagináveis conseqüências impondo-se a sua desativação, em nome da segurança pública.

Nenhum dos argumentos tem o menor fundamento, em que pese o notável brilho e o elogiável esforço do eminente Procurador do Estado, que, nestes autos, vem exercendo o seu mister com uma dedicação e eficiência , que transcendem o simples dever funcional, o que merecer ser consignado, por elementar senso de justiça.

O art.144 do Dec.897/76, à todas luzes, não foi recepcionado pela CF/88, que, como é de elementar sabença, se alicerça, no campo econômico, nos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa.

A regra ainda se poderia admitir, em 1975, quando o serviço de gás canalizado era prestado pelo Estado, que nele investia grandes somas, para instalação e conservação dos dutos.

Era preciso, assim, guardar cativo o mercado consumidor, até para preservar o serviço, que a todos interessava. A livre concorrência, neste caso, poderia tornar inviável , economicamente, a prestação do serviço.

Até o mais ingênuo dos homens percebe que o art.144, acima invocado, traduzia regra de intervenção do Estado na economia privada, o que era muito comum, naquela época, de forte dirigismo estatal, em pleno regime militar.

Havia até mesmo um órgão federal, de grande força e prestígio, a SUNAB, do qual tive a honra de ter sido Procurador, por mais de 20 anos, e cuja função precípua era promover a intervenção no domínio econômico, tabelando preços, desapropriando bens, e disciplinando as atividades de produção e distribuição de bens e serviços.

Sintomaticamente este órgão já foi extinto, após a Carta de 1988, quando se tornou verdadeiro anacronismo, em regime de livre mercado.

Em razão dos ventos neo-liberais, que começaram a soprar, na década de 90, reduziu-se a presença do Estado, no domínio econômico, dando-se início à fase das privatizações.

O Estado retirou-se da atividade econômica, salvo em áreas de vital importância estratégica e de segurança nacional, e concentrou-se em suas atividades inerentes, como segurança, educação, saúde, infra-estrutura, etc.


Entre as empresas privatizadas incluiu-se a CEG, abrindo mão o Estado do monopólio da distribuição do gás canalizado.

Ora, não há como se admitir que uma empresa que não é mais do Estado se favoreça com regra protecionista, em detrimento das demais, que têm a garantia constitucional da livre concorrência e iniciativa.

Por outro lado, é do maior interesse dos consumidores, que se abra o mercado, sem qualquer intervenção estatal, já que a experiência demonstrou, até ao mais acérrimo crítico das privatizações, que o sistema de livre concorrência provoca a melhoria técnica dos produtos e serviços e a redução dos preços.

Os serviços telefônicos são prova eloqüente do que acima se afirmou, sendo impressionante a redução dos preços das ligações e das instalações de linhas, após a abertura do mercado de telecomunicações.

Uma simples assinatura de linha telefônica, que se levava anos para se obter, ou pela qual se pagava milhares de reais, hoje é oferecida gratuitamente, até como bonificação, para quem compra mais de um celular. E é possível hoje entrar em uma loja, comprar um aparelho, e dela sair, já com ele funcionando, com a mesma facilidade com que sempre se comprou uma dúzia de bananas.

Nada poderá hoje impedir que o consumidor faça a sua opção pelo gás canalizado ou pelo GLP, fornecido em botijões , cilindros ou a granel.

Caberá à empresa que adquiriu a CEG, conquistar e manter o seu mercado, mediante a melhoria dos serviços e a redução dos preços, como em qualquer regime de livre mercado.

É o risco empresarial, inerente à livre iniciativa.

Estamos convencidos, tal como ocorreu ao eminente representante do Ministério Público, cujo parecer é de notável erudição, a honrar e dignificar o “Parquet”, que a regra do art.144 do Dec.897/75 não foi recepcionada pela CF/88, pelo que não poder ser invocada pelos impetrados, para impedir que a impetrante explore o serviço de fornecimento de GLP, mesmo em ruas servidas por gás canalizado, para o qual , diga-se de passagem, está autorizada pela autoridade federal competente.

O segundo argumento, embora impressione à primeira vista, e nos tenha trazido grande preocupação, não resiste à meio minuto de bom senso.

Não é crível que um órgão federal, como a ANP, com atribuições específicas, autorize um sistema de distribuição e armazenamento de GLP, que coloque em risco a segurança pública, além do tolerável.

Quase todas as atividades humanas e as do Estado, são potencialmente perigosas.

O homem, desde que nasce, está exposto a riscos, maiores ou menores. O risco é o seu companheiro inseparável, sua sombra , a persegui-lo aonde quer que vá, ou seja qual for sua atividade.

Daí ter surgido, inclusive, a idéia do seguro, cuja função não é eliminar ou transferir o risco, o que é impossível, e sim atribuir à seguradora as conseqüências econômicas, caso o risco que se teme, venha a se converter em realidade, através do sinistro.

Desde que se passou a utilizar o gás, como combustível, o homem está inexoravelmente condenando a suportar o risco de explosão, incêndio e intoxicações.

Os jornais a todo momento divulgam tristes notícias sobre incêndios em favelas, causados pela explosão de botijões de gás, de explosões em galerias subterrâneas da própria CEG, que fazem voar as tampas dos bueiros, de mortes de pessoas sufocadas pelo vazamento do gás dos aquecedores, etc.

E, no passado, chegou a se dizer que se arquitetou terrível plano terrorista, para explodir o gasômetro, junto à Estação Rodoviária, o que arrasaria vários bairros, com milhares de mortes.

O gás é um bem e um mal, como tantos outros produtos que a tecnologia e o progresso nos colocam ao alcance, para melhorar nossa qualidade de vida.

É inegável que os recipientes estacionários instalados pela impetrante podem explodir, causando uma catástrofe urbana.

Mas o mesmo poderá ocorrer com os cilindros ou botijões de um restaurante, ou com os tanques do gasômetro, sobre os quais até balões juninos costumam cair.

E nem passa pela cabeça de qualquer administrador proibir a utilização do gás, pelo menos enquanto a tecnologia não encontrar outro combustível que o substitua.

Ressalte-se que até nos veículos automotores já se está substituindo a gasolina pelo GLP, em grandes recipientes instalados nas malas dos automóveis.

Muitos usuários nem desconfiam que, ao tomar um taxi, estão sentados sobre uma bomba, que pode explodir a qualquer momento.

Se a ANP autorizou a utilização dos recipientes estacionários, subsumindo-os, é claro, aos rígidos controles da ABNT, não vemos como impedir sua instalação, em nome de um risco, que foi previsto, equacionado e mitigado, pelas medidas de controle e prevenção da já citada Portaria.

A atividade é de fato perigosa, mas o imortal Nelson Rodrigues dizia que perigoso é viver, e que até para chupar um picolé era preciso ter sorte, para não engasgar com o palito e morrer sufocado.

Dentro desta linha de raciocínio, não vemos como impedir a utilização dos recipientes estacionários, e deixar funcionando o gasômetro, em pleno centro urbano, os botijões e cilindros, e as galerias subterrâneas e os tanques dos taxis.

O ato atacado, que concede prazo para a desativação e retirada dos recipientes, é, portanto, abusivo, não tem respaldo legal, agride os princípios constitucionais da livre concorrência e invade a seara de competência federal, a quem cabe disciplinar e fiscalizar o comércio de GLP.

Não pode prevalecer, ferindo direito líquido e certo da impetrante.

Por estas razões, e mais aquelas magnificamente expostas no brilhante parecer do Dr. Ertulei Laureano pelo excelente trabalho realizado, que muito nos facilitou o exame destes autos, deve ser concedida a segurança, nos termos da inicial, confirmando-se a liminar antes concedida.

Sem ônus sucumbenciais e verba honorária, segundo entendimento do Colendo STF. Rio de Janeiro,14 de fevereiro de 2001.

Desembargador – LAERSON MAURO

Presidente

Desembargador – SYLVIO CAPANEMA DE SOUZA

Relator

Revista Consultor Jurídico, 29 de março de 2001.

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