Abuso

A Receita Federal não quer evitar a sonegação fiscal, diz advogado.

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22 de março de 2001, 0h00

Notamos, com certa freqüência, atos praticados por autoridades que, a pretexto de tentar regularizar determinadas situações, carregam em seu bojo objetivos outros dentre os quais aqueles que concedem poderes excessivos e extraordinários a pessoas ou grupos, afrontam princípios constitucionais ou legislação de regência e impedem o regular exercício da cidadania.

Exemplo recente pode ser retirado dos autos do mandado de segurança impetrado pela A.A.S.P. contra ato do Exmo. Juiz Federal Diretor do Foro da Justiça de 1ª Instância da Seção Judiciária de São Paulo, no que se refere a Ordem de Serviço n.º 3/2000.

Para não se estender sobre o assunto que agora é de conhecimento público (consulte, a respeito, Boletim 2202 da AASP, suplemento, p.4), basta lembrar que a autoridade coatora fez expedir ordem de serviço em desacordo com o Provimento n.º 69 do presidente do Conselho da Justiça Federal e através do qual lhe era concedido o direito de recusar petições iniciais em total desacordo com o artigo 282 do CPC. O writ foi concedido e a ilegalidade cessou.

Não obstante, outra ameaça, também de relevo, pesa sobre a classe e que, em não sendo adotada qualquer providência, certamente violará os nossos mais elementares direitos constitucionais.

Trata-se da quebra do sigilo bancário que poderá ser perpetrado pela Receita Federal sem prévia anuência do Poder Judiciário, mediante autorização inserta na Lei Complementar n.º 105/2001, regulamentada pelo Decreto n.º 3.724, de 10 de janeiro de 2001.

A imprensa falada e escrita vem, diuturnamente, manifestando-se sobre o assunto e diversos juristas já se pronunciaram a respeito do tema, dentre eles Ives Gandra da Silva Martins que, analisando a questão sob a ótica puramente jurídica, adota o seguinte posicionamento “…O que não se pode é pisotear direitos fundamentais do contribuinte, alijando o Poder Judiciário do exame desta questão, o que de resto, o inciso XXXV, do art. 5º da CF, proíbe…” (Tribuna do Direito, março 2001, p. 36).

Importa lembrar, nesse passo, os reais motivos que ensejaram o atual secretário da Receita Federal a lutar pela aprovação da Lei Complementar n.º 105/2001 e suas conseqüências em nossa classe para, ao final, concluir-se que é necessária a imediata adoção de atitudes eficazes para coibir mais esse abuso.

A A.A.S.P., em recente artigo, referiu-se ao tema como “CIDADÃOS SUSPEITOS” (boletim n.º 2.191). O assunto não é novo. Somos suspeitos desde o ano de 1994. E essa suspeita revela a doutrina que impera em nossas instituições em relação ao contribuinte e, em especial, aos advogados.

Em artigo publicado no Estado de São Paulo, abril/94, pg. B-1, sob o título “Receita faz pressão sobre contribuintes”, verifica-se que o então secretário da Receita Federal, Osiris de Azevedo Lopes Filho, fez enviar 37.000 cartas-padrão para profissionais liberais de diversas áreas, a saber 11.254 advogados, 21.926 médicos e 4.502 dentistas, insinuando que suas declarações do I.R. poderiam estar incorretas.

O absurdo da insinuação ficou por conta do fato de que Receita Federal entendeu – e ainda entende – que os rendimentos daqueles profissionais eram inferiores ao padrão da categoria a que pertenciam.

De seqüência, convocou-os para assumirem, espontaneamente, supostos débitos por omissão de receita. Médicos, dentistas e advogados, segundo a Receita Federal, são considerados como pertencentes a grupos com altos rendimentos.

Trocando em miúdos, o contribuinte brasileiro não só é considerado fonte de recursos naturais (dado o fato de existir períodos de safras boas e ruins em termos de arrecadação) como também suspeito guindado na posição de trabalhador à inteira disposição daquele órgão, vez que estaria dividido em grupos devidamente tabelados segundo padrões não conhecidos e que, especificamente no tocante ao advogado e não importando sua situação pessoal ou a de mercado, deverá ter seus rendimentos iguais ou superiores à de sua categoria, sob pena de ser considerado suspeito.

Comentando sobre a carta-padrão naquela época, o então secretário da Receita Federal, em tom de brincadeira, informou que a “…carta serviria apenas para dar um susto nos profissionais liberais…”.

A atitude da Receita Federal valeu repúdio da A.A.S.P. no boletim n.º 1845, sob o título PROFISSIONAIS LIBERAIS – MALA DIRETA DO SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL – NOTA DE REPÚDIO.

Ocorre que, decorridos apenas sete anos daquele evento, a Receita Federal, agora com novo secretário, investe mais uma vez na quebra do sigilo bancário – só que sem a autorização ou o crivo do Poder Judiciário, tomando como base a simples movimentação financeira bancária do recolhimento do CPMF. Basta a suspeita. É o abuso máximo da autoridade sobre os direitos civis. O que era ameaça virou direito.

O alerta não é fantasioso e nem desproporcional. É sabido que o advogado, em seu mister, movimenta numerário de clientes e que nem toda operação financeira ou recolhimento de CPMF maior ou menor em determinado período constitua hipótese da incidência do Imposto de Renda (vide a respeito, o artigo SIGILO BANCÁRIO E IMPOSTO DE RENDA, de Raul Haidar, em Tribuna do Direito, janeiro 2001, p. 20). Em ambos os casos em que a Receita Federal manifestou seu intento, tanto em 1994 quanto no presente ano, o pretexto é o mesmo: evitar a sonegação.

Analisada detidamente a Lei Complementar em questão, denota-se que em caso de suspeita a Receita Federal efetuará devassa fiscal nas contas do advogado a partir do ano de 1996, fato este muito bem lembrado na coluna editorial que Joyce Pascowitch mantém na Revista Época, ano III, n.° 146, de 5 de março de 2001, p. 16, com o texto: “Autônomos e profissionais liberais podem se preparar: são eles os novos alvos da Receita Federal. A suspeita é de muita sonegação, baseada na emissão de recibos. Na mira da operação pente-fino estão médicos, advogados e dentistas que deixaram de declarar de 1996 para cá.” Ou seja, as mesmas classes profissionais de 1994, conforme matéria inserta no Estado de São Paulo acima referenciada.

Então, o pretexto da Receita Federal não é e nunca foi o de evitar a sonegação e sim o de aumentar a arrecadação, mesmo que para tanto reste violados os dispositivos e princípios constitucionais mediante Lei Complementar de duvidosa constitucionalidade.

Os fatos ora articulados não deixam margens para dúvidas: o advogado verá ferido seus direitos se nenhuma providência for adotada; será vilipendiado em sua profissão com a pecha de sonegador antes mesmo de qualquer procedimento judicial; terá sua imagem desgastada e verá suas poucas conquistas serem aniquiladas perante a opinião pública; aqueles menos afortunados serão os mais atingidos enquanto os bem aventurados poderão valer-se da ajuda de processos onerosos e longos, enfim, serão consumados todos os tipos de arbitrariedades.

Se sonegadores existem, que a Receita Federal utilize os meios legais já disponíveis sem ferir ou afastar direitos constitucionalmente assegurados e nem impedir que o Poder Judiciário fique afastado de sua verdadeira função.

Não resta qualquer dúvida de que sobre nossos órgãos de classe pesa mais este ônus, cujo assunto, pela sua importância, também é objeto de preocupação dos demais colegas. Urge, portanto, que tomemos a iniciativa para coibir mais esse abuso.

Revista Consultor Jurídico, 22 de março de 2001.

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