Portaria polêmica

O Detran não tem condições de bloquear carteira de motorista, diz advo

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16 de março de 2001, 0h00

Imagine só: você está sentado à mesa pela manhã, resolve folhear o jornal e encontra uma lista das pessoas que fizeram pagamentos de valores exorbitantes em CPMF e declararam valores incompatíveis de ganhos à Receita Federal. Você olha com calma cada uma das linhas à procura do nome de alguém conhecido (mera curiosidade…), até que, finalmente, encontra alguém muito próximo: você!

Como é possível que você esteja em uma lista de sonegadores contumazes e nunca tenha sido sequer informado que seu CPF estava sob suspeição? Vai ver foi o banco que informou errado, ou a conta bancária não era sua e foi uma fraude, vai ver o banco comunicou errado ou a fiscalização não olhou direito. Alguma coisa errada aconteceu e você vai mostrar que tudo não passa de um engano.

Com certeza você conseguirá demonstrar a sua inocência; o duro vai ser agüentar o assédio da imprensa, o gerente do banco que diminuirá o limite do seu cheque especial, sem falar do seu patrão. Talvez ele peça gentilmente que você tire uns dias de licença, a fim de não abalar a imagem da empresa.

Parece absurdo, mas, guardadas as proporções, fato similar aconteceu recentemente com cerca de 126 mil pessoas, que compuseram a lista (publicada) dos motoristas que já haviam superado 20 pontos negativos, tendo sua carteira de habilitação suspensa. E a maioria dessas pessoas nunca teve a chance de se defender.

Pode ser que hajam recebido a multa e até mesmo não tenham recorrido. Mas a multa de trânsito é uma coisa e a suspensão do direito de dirigir é outra. O fato de não terem contestado a autuação é distinto da suspensão do direito de dirigir.

Vamos supor: alguém vendeu o carro em 1997 e o comprador não transferiu a documentação do automóvel para si. Na concepção do Detran, o automóvel pertence à primeira pessoa. O comprador, que sempre foi zeloso, resolveu emprestar o carro ao filho adolescente. O novo motorista cometeu muitas e muitas infrações em 2000. Todas foram encaminhadas ao endereço do primeiro proprietário. Só que ele se mudou e nem tomou conhecimento das autuações. Agora, ele está na lista de punidos e nem sabe por que.

A portaria nº 1.385, publicada no Diário Oficial do dia 29 de dezembro de 2000, é um emaranhado de tentativas de solucionar problemas estruturais que não são passíveis de serem resolvidos por meio de uma “canetada”. O Código de Trânsito, em seu artigo 265, determina que “as penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa”. Portanto, esse direito precede a punição. Primeiro o processo, possibilidade de defesa, depois a punição.

A portaria do Detran inverte a ordem legal. Diz que as pessoas estão punidas e podem se defender caso não concordem com a punição. Isso é impossível sem que haja o devido processo legal, em atendimento aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Ou, em outro prisma, a administração pública, no exercício do seu poder de polícia, somente poderá suspender o direito de dirigir de qualquer pessoa, lançando mão de procedimento administrativo adequado, de modo a preservar o devido processo legal, consubstanciado nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Isso implica notificação pessoal da existência do procedimento administrativo, ao menos. Agindo contrariamente, atinge-se o inciso IV, do artigo 5º da Constituição Federal. Afinal, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a eles inerentes. As pessoas têm o direito de se defender, de dizer qualquer coisa, não nos importa se com razão ou não. Somente depois poderão ser punidas.

O devido processo legal se traduz na obediência à ordenação e à sucessão das fases procedimentais consignadas na lei, sendo inaceitável que se faça mediante mera comunicação aos punidos. Isso não é processo. Somente se pode admitir a execução fiscal após exaurido todo o processo administrativo. A observância ao preceito constitucional que garante a todos o direito à ampla defesa, torna necessária a intimação do infrator, legitimando o procedimento administrativo instaurado pelo Detran.

Permitir que a punição venha antes da defesa seria o mesmo que permitir – no exemplo citado acima – que o contribuinte tivesse seus bens indisponíveis até o final do processo de apuração de sonegação, o que pode durar anos.

Essa portaria, expondo as pessoas sem o devido processo legal, sujeita, inclusive, o Estado a responder pelos danos que causar a cada uma das 126 mil pessoas citadas na sua lista, inclusive os danos morais, insuscetíveis de prova.

Mas isso não foi feito, de modo que a lista é inócua, até mesmo inocente. Criou celeuma, mas não produziu efeitos. Não obriga as pessoas que estão listadas a ir ao balcão dos suspensos e entregar sua carteira de motorista. Afinal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, Inciso II, da Constituição).

O poder público nem mesmo pode fazer o que promete. Ou seja, bloquear as Carteiras de Habilitação administrativamente, o que, repito, só pode ser feito mediante procedimento administrativo devidamente instaurado. Porém, o Detran não tem como fazê-lo.

Por outro lado, é óbvio que o cidadão não pode ficar à mercê dos maus motoristas, alguns deles agindo de modo profundamente temerário. É urgente a reestruturação dos mecanismos de aplicação de multas, identificação do motorista e suspensão do direito de dirigir, a fim de que se possa tornar efetiva a punição prevista na legislação.

Revista Consultor Jurídico, 16 de março de 2001.

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