Crise de energia

Veja a Ação Civil Pública da OAB-SP contra medidas do governo

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29 de maio de 2001, 13h48

A OAB-SP apresentou nesta terça-feira (29/5) à 2ª Vara Federal Ação Civil Pública com Pedido de Tutela Antecipada para suspender os efeitos da MP 2.148-1 (artigos 14, incisos I e II, parágrafos 1 a 4, Artigo 15, incisos I a III, 24, 26 e 27) que determina o corte de energia dos consumidores que não cumprirem a meta de consumo fixada pelo plano de racionamento do governo.

A Ordem dos Advogados entende que a MP é inconstitucional porque viola o Art. 5°, incisos XXXII, XXXVI e LV, da Constituição Federal que determina que o Estado deve promover a defesa do consumidor, na forma da lei.

A ação também alega que: “a MP lançou seus tentáculos sobre vários artigos que compõem a espinha dorsal de um diploma que, em boa hora, veio regular as relações de consumo em nosso País, lei de regência essa com origem na Constituição da República”.

Para a OAB-SP, a MP viola, ainda, o Art.150, incisivo IV, da Constituição quando cria sobretarifas e conclui que “o excesso de tarifa representa transferência compulsória de recursos financeiros pelo usuário de energia, assumindo feição tributária”.

Veja o texto na íntegra:

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA VARA DA JUSTIÇA FEDERAL SECÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO.

A ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO DE SÃO PAULO, por si, e por sua COMISSÃO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, cujos respectivos titulares e advogados subscrevem esta peça inaugural, vem, respeitosamente à presença de V. Excia., com fundamento no art. 1.º, II e IV da Lei 7.347/85, propor

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

tendente a firmar preceitos cominatórios de obrigações de fazer e não fazer, em face da:

1.UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de Dreito Público Interno , a ser citada, na pessoa de seu bastante procurador; e

2. AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA – ANEEL, a ser citada na pessoa de quem legalmente a represente, com sede, em Brasília, no endereço: SGAN n.603- Módulo J- , aduzindo, para tanto, as seguintes razões de fato e de direito:

I. DA LEGITIMIDADE ATIVA DA SECCIONAL PAULISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

1. O artigo 44 do Estatuto da Advocacia estabelece que a Ordem dos Advogados do Brasil exerce serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, competindo-lhe, fundamentalmente, defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da Justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas (cf. Inciso I do sobredito artigo).

2. E porque sustentáculo último dos lídimos interesses da cidadania, sempre atenta às prerrogativas que lhe são conferidas por lei, a entidade autora, diante da forma açodada pela qual a União Federal pretende enfrentar a crise energética que afeta o País, com total menoscabo a preceitos legais inderrogáveis, com gênese, inclusive, na Constituição da República, vê-se compelida a utilizar-se da medida judicial eleita, no afã de preservar o primado da ordem jurídica que não pode e nem deve sofrer qualquer violação, máxime partindo daqueles que, não sabendo prever, deixaram de prover o Estado dos meios necessários para consecução de seus fins.

3. Por sua vez, os limites de atuação da autora encontram-se perfeitamente fixados no artigo 45, parágrafo segundo do Estatuto da OAB., sendo que a presente demanda tem por escopo a tutela dos direitos individuais homogêneos de milhares de consumidores, contratantes do sistema de concessão de energia elétrica em todo território nacional, que já possuem contratos firmados com as pessoas jurídicas de direito público como privado aqui determinadas, e que estão sendo lesados pela prestação de serviço absolutamente inadequado, ineficiente e inseguro, sendo que em um futuro muito próximo já se anuncia inclusive a sua descontinuidade por parte do Governo Federal, com total desprezo ao princípio que prevê a intangibilidade do ato jurídico perfeito e do direito adquirido.

4. Afigura-se de vital importância o manejamento da presente ação civil pública, na exata medida em que os direitos dos consumidores inserem-se, na sociedade atual, também, como direitos humanos fundamentais pela proteção que seus destinatários necessitam, abrangendo, de igual modo, os também chamados direitos sociais.

II. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

5. Conforme disposição expressa do art. 109 da Constituição Federal:

“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”.


6. Sem embargo do preceito constitucional acima citado, a malsinada medida provisória n. 2148-1, cujos vícios formais e materiais serão em seguida demonstrados, em seu artigo 24, expressamente estabelece que as entidades posicionadas no pólo passivo da presente relação jurídica processual nele deverão figurar na condição de litisconsortes.

7. Justifica-se, desta maneira, o ajuizamento da presente ação civil pública, afigurando-se essa Egrégia Federal com a medida certa de jurisdição- rectius- competência- para processá-la e julgá-la.

III. DOS FATOS

8. Trata-se de ação civil pública cuja finalidade é a de tutelar interesses e direitos difusos assim como individuais homogêneos de milhares de consumidores de energia elétrica deste país, que firmaram contratos de “concessão de energia” com as pessoas jurídicas de direito público e privado aqui apontadas.

9. Em 15 de Maio do corrente ano, o Presidente da República editou a Medida Provisória n. 2.147, estabelecendo as regras para o denominado Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica (vide cópia da referida Medida Provisória – doc.1 ).

10. Na verdade, a referida Medida Provisória estava em inequívoco descompasso com as declarações que eram feitas pelos Ministros de Estado a respeito do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica (vide inclusas cópias de matérias jornalísticas – docs. / ).

11. Passados alguns dias, concluiu-se que o Governo resolveu editar somente parte das medidas que houvera divulgado, sendo que, dias após, mais especificamente em 22 de Maio do corrente ano, o Sr. Presidente da República editou nova Medida Provisória (número 2.148-1), repetindo o conteúdo da anterior Medida Provisória 2.147 e acrescentando diversos outros dispositivos (doc. ).

12. Nessa nova Medida Provisória 2.148-1, os principais pontos, cuja constitucionalidade e legalidade afrontam as leis, de natureza ordinária e constitucional e que compõem nosso ordenamento jurídico positivo, são os seguintes:

a) exigência para que os consumidores em geral reduzam o consumo de energia elétrica em percentuais unilateralmente definidos em resolução da CCE, sob pena de: corte no fornecimento da energia, sem qualquer observância dos principios que compõem o imprescindível “devido processo legal”; garantia individual undisponível, e a cobrança de “sobretaxa”, que na verdade nada mais é do que uma imputação de multa disfarçada, na elevada alíquota de 50 % sobre o valor da conta referente à parcela que exceder o consumo mensal de 200 kWh e, outra vez, uma sobretaxa – multa disfarçada – de 200% sobre a parcela que exceder a 500 kWh/mês.

13. No mesmo dia, a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica – GCE, criada pela supra mencionada Medida Provisória, editou a Resolução número 04, cuja cópia é ora juntada à presente, fazendo cumprir as disposições da Medida Provisória 2.148-1.

14. Infelizmente, como será exposto adiante, o Governo Federal, ao editar a Medida Provisória 2.148-1, de 22/05/2001, e especialmente a Resolução número 04, da GCE, desrespeitou frontalmente a Constituição da República e inúmeros dispositivos de Leis Federais que, sob o enfoque oblíquo da ré- pessoa jurídica de Direito Público Interno- acabassem por se revelar incompatíveis com a Medida Provisória em apreço e demais Resoluções da GCE.

15. Vê-se, pois, deste modo, que a autora, para resguardar os direitos coletivos e difusos lesados, outro recurso não tem senão o de, utilizando-se da medida, em apreço, invocar a tutela jurisdicional do Estado, no afã de devolver aos preceitos legais, de índole constitucional malferidos e que integram o ordenamento jurídico nacional, sua imperatividade e atributividade, requisitos que não podem, em absoluto, sofrer qualquer afetação, sob pena de ineficácia da lei.

IV. DAS INCONSTITUCIONALIDADES E ILEGALIDADES DA MEDIDA PROVISÓRIA NÚMERO 2.148-1 e DA RESOLUÇÃO NÚMERO 04, DA GCE

16. Como se verá adiante, a Medida Provisória número 2.148-1, de 22/05/2001, bem como a Resolução número 04, da GCE, além de contrariarem a Constituição Federal, ferem, de morte, dispositivos de nossa legislação federal ordinária, adiante minuciosamente explicitados.

A. Da Disciplina Jurídica do Fornecimento de Energia Elétrica

17. O Estado Brasileiro, nas últimas décadas, tem passado por várias transformações e adaptações em razão não só de internacionalização dos mercados (processo também conhecido como globalização, desprezando-se, neste momento, quaisquer considerações sobre seus efeitos deletérios), como também em decorrência da falência da estrutura que estabelecia a concentração de investimentos e atividades em mãos do Estado.

18. Nos anos 90, após o início da abertura do mercado brasileiro, foi gradativamente promovida a liberação de determinadas atividades econômicas, antes controladas pelo Estado, sendo, por outro lado, transferidas algumas atividades antes de monopólio do Estado para a iniciativa privada, mediante o denominado processo de privatização, cuja base constitucional já estava inserida na Constituição de 1.988:


“Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Parágrafo único. A lei disporá sobre:

I – o regime de empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;

II – os direitos do usuário;

III – política tarifária;

IV – a obrigação de manter o serviço adequado”.

19. Mais especificamente em 1.995, foi editada a Lei 8.987, em 13 de Fevereiro de 1.995, que estabelecia as regras para a concessão e permissão do serviço público, viabilizando a transferência para a iniciativa privada da prestação de serviços antes de responsabilidade do Estado, inclusive os de natureza essencial (serviços de energia elétrica, por exemplo) – doc .

20. Para disciplinar especificamente a atividade relacionada com a energia elétrica, foi editada a Lei 9.074, de 07 de Julho de 1.995, que disciplinava a concessão de serviços de energia elétrica em nosso território nacional (doc. ).

21. Para estruturar a privatização de empresas relacionadas com a prestação de serviços de energia elétrica, a Lei 9.074/95, e posteriores alterações, estabeleceu a estrutura básica para tal atividade, merecendo destaque o seu princípio norteador, qual seja o da prestação de serviço adequado, que, nos termos da Lei 8987/95, significa o seguinte:

“Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (artigo 6., parágrafo primeiro, da referida Lei).

22. Ainda a respeito da adequação e continuidade dos serviços públicos essenciais, vale transcrever o artigo 22, do Código de Defesa do Consumidor:

” Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”

23. Da mesma forma entendem os estudiosos das relações consumeristas: ” A segunda inovação importante é a determinação de que os serviços essenciais- e só eles- devem ser contínuos, isto é, não podem ser interrompidos. Cria-se para o consumidor um direito para a continuidade dos serviços. Tratando-se de serviço essencial e não estando ele sendo prestado com continuidade, o consumidor pode postular em juízo que se condene a administração a fornecê-lo” ( “in” Comentários ao Código de Defesa do Consumidor/Comentadores Toshio Mukai- Coordenador Juarez de Oliveira- SP-Saraiva, 1991)”

24. Complementando a estrutura estatal reguladora e fiscalizadora da atividade de energia elétrica foi criada, por meio da Lei 9.427, de 26 de Dezembro de 1.996, com alteração em 8 de Setembro de 1.998, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, ora Ré (docs. / ).

25. Assim, foi dado início ao processo de privatização de empresas do setor elétrico, das áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, mediante concessão de serviço público e fiscalização e regulação pela ANEEL.

26. Importante salientar que a estrutura jurídica criada para a concessão e permissão de serviços públicos está alicerçada nos princípios constitucionais retro transcritos, sendo mister observá-los em qualquer modificação ou alteração legislativa sob pena de se colocar em risco toda a estrutura de tais atividades paraestatais com violação aos princípios constitucionais regulamentares, hospedados na Carta Magna.

B. Da relação jurídica de consumo e sua regulamentação

27. A defesa do consumidor, imprescindível em uma sociedade de massa, obteve o reconhecimento de sua importância quando da edição de nossa Constituição Federal, em 1.988.

28. O artigo 5o., inciso XXXII, assim dispõe:

“XXXII – O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

29. Além disso, o Constituinte resolveu elevar a defesa do consumidor à categoria de princípio da ordem econômica, como se depreende da leitura do artigo 170 e inciso V, da Constituição Federal:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (…)

V – defesa do consumidor”.

30. Por fim, no artigo 48, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) ficou decidido que seria editado um Código de Defesa do Consumidor em 120 dias:

“Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte e dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”


31. Com essa base constitucional, foi finalmente editado o Código de Defesa do Consumidor, anseio de toda a cidadania, doravante simplesmente designado “CDC”, editado por meio da Lei 8.078/90, de 21/09/1990, tendo sido elaborado com base nas mais avançadas legislações do mundo, da França, Bélgica, Alemanha, Espanha, Portugal, Reino Unido, México, Estados Unidos e Canadá, como bem explicado pelos seus redatores:

“A maior influência sofrida pelo Código veio, sem dúvida, do Projet du Code de la Consommation, redigido sob a presidência do professor Jean Calais-Auloy. Também importantes no processo de elaboração foram as leis gerais da Espanha (Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, Lei no. 26/1984), de Portugal (Lei no. 29/81, de 22 de agosto), do México (Lei Federal de Protección al Consumidor, de 5 de fevereiro de 1976) e de Quebec (Loi sur la Protection du Consummateur, promulgada em 1979).

Visto agora pelo prisma mais específico de algumas de suas matérias, o Código buscou inspiração, fundamentalmente, no direito comunitário europeu: as Diretivas 84/450 (publicidade) e 85/374 (responsabilidade civil pelos acidentes de consumo).

Foram utilizadas, igualmente, na formulação do traçado legal para o controle das cláusulas gerais de contratação, as legislações de Portugal (Decreto-lei 446/85, de 25 de outubro) e Alemanha (Gesetz zur Regelung des Rechts der Allgemeinen Geschaftsbedingungen – AGB Gesetz, de 9 de dezembro de 1976).

Uma palavra à parte merece a influição do direito norte-americano. Foi ela dupla. Indiretamente, ao se usarem as regras européias mais modernas de tutela do consumidor, todas inspiradas nos cases e statutes americanos. Diretamente, através da análise atenta do sistema legal de proteção ao consumidor nos Estados Unidos” (“in” Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Ada Pellegrini Grinover…[ et al]., 4a. ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995, pg. 10).

32. A influência da legislação estrangeira e dos precedentes judiciários do “common law” permitiram a edição de um dos mais avançados e atuais diplomas protetivos do consumidor e que mereceu a mais ampla aprovação de toda a sociedade.

33. Optou-se, na concepção do anteprojeto, que foi aprovado em quase sua totalidade, por um verdadeiro microssistema, que contém normas-princípio (ou, no dizer do Professor Eros Roberto Grau, normas-objetivo), normas de conduta e de organização, relativamente a diversas áreas do direito, seja comercial, civil, administrativo, penal e processual.

34. Na verdade, esse microssistema tem como pano de fundo a RELAÇÃO DE CONSUMO, sendo que na lição do Saudoso Professor RUBENS LIMONGI FRANÇA, pode-se dizer que consumo é uma das fundamentais categorias da economia política, posto que é uma das quatro partes em que se desdobra a atividade econômica, sendo, as outras três, a produção, repartição e a circulação. Dessa forma, a aplicação ou não do CDC está relacionada com a identificação da relação jurídica em análise.

35. O Professor e Procurador de Justiça Antonio Herman de Vanconcelos e Benjamim apresentou, em apertada síntese, a estrutura principiológica do CDC:

“Verdadeiramente, nos termos do alerta magnífico de Eros Roberto Grau, todo o Código de Defesa do Consumidor move-se pelas normas contidas em seu art. 4o. e que ‘constituem princípios que devem orientar a busca da realização dos objetivos ou do objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo(…).

Os princípios estão, assim, na base do sistema legal e, no nosso caso, orientam todo o desenrolar do Código de Defesa do Consumidor. Todas as normas – de conduta ou de organização – que integram o sistema jurídico do consumidor, moldam-se na forma dos princípios gerais estampados no pórtico do Código.

Contaminam-se com seu espírito. Por isso mesmo é que a melhor doutrina vislumbra no veículo dos princípios uma categoria distinta de normas.

Em tal passo, ainda segundo Eros Roberto Grau, as normas jurídicas, como normas de comportamento, ora definem conduta (os tipos penais, por exemplo), ora definem organização (o Código de Processo Civil, por exemplo).’Esta norma do artigo 4o., realmente, não cabe nem no modelo de norma de conduta, nem no modelo de norma de organização. Porque, na verdade, ela é uma norma-objetivo. Ela define fim a ser alcançado. Essas normas que definem fim – e que eu acho que não são programáticas, são normas de eficácia total, completa, absoluta, inquestionável, indiscutível – começam a surgir modernamente(…).

Quando um dispositivo do Código (uma cláusula geral, por exemplo) permitir mais de uma intelecção, as opções do intérprete quedam-se deveras limitadas, bastando indagar: ‘qual dos dois sentidos é aquele que é compatível com o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo” (“in” Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor Comentadores: Toshio Mukai, Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamim…[et al]; coordenador Juarez de Oliveira, São Paulo, Ed. Saraiva, 1991, pgs. 26/27).


36. Vê-se, pois, destacada a importância das normas que contém a principiologia da defesa do consumidor, buscando o equilíbrio da relação fornecedor-consumidor.

37. Demais disso, como salienta ZELMO DENARI, nos comentários à Lei de Regência, coordenados pela Notável Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, ao estudar seu artigo 22, cuidando da responsabilidade do Poder Público, com todas as letras afirma, que as pessoas jurídicas de Direito Público- centralizadas- descentralizadas- podem figurar no polo tivo ou passivo da relação de consumo, respondendo, aqui, pela responsabilidade dos atos que praticam.

38. O CDC buscou, na definição da relação jurídica base para sua incidência, a conceituação econômico-jurídica do consumidor, fornecedor e dos objetos de tal relação, quais sejam o produto e a prestação de serviço.

39. Com relação ao consumidor, não apenas o destinatário final ou usuário são definidos, por lei, como tal; a lei apresenta hipóteses de conceituação de consumidor por ficção jurídica (vítimas e pessoas expostas às práticas comerciais abusivas, por exemplo – artigos 17 e 29, do CDC).

40. Na identificação do fornecedor, buscou o legislador incluir todos aqueles agentes econômicos que figuram na cadeia de produção e comercialização, participando da atividade econômica; desde o produtor e construtor até o comerciante e seu preposto (artigo 3o., “caput”). No artigo 7o., parágrafo único e no 25, parágrafo 2o., ambos do CDC, ficou disciplinada a solidariedade dos causadores de danos ao consumidor, de forma a facilitar a sua efetiva e rápida proteção.

41. Quanto aos objetos da relação jurídica de consumo, identificados nos parágrafos 2o. e 3o., do artigo 3o., do CDC, vê-se que dificilmente alguma atividade econômica pode ser excluída da amplitude das definições.

42. Por outro lado, relevante notar que o CDC apresenta um regime de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, próprio e adequado para as relações de consumo.

43. Possui o CDC duas vertentes de proteção ao consumidor, buscando garantir a incolumidade físico-psíquica e a incolumidade econômica do consumidor. Essas linhas mestras de proteção permeiam toda a estrutura de regramento da responsabilidade civil, tanto contratual como extracontratual.

44. Note-se, ademais, que a dicotomia entre a responsabilidade contratual e extracontratual, presente na formulação da teoria clássica, não possui a mesma importância na moderna teoria da qualidade e quantidade, sendo certo que determinados institutos (responsabilidade pré-contratual, responsabilidade do terceiro – “by-stander” etc.) bem demonstram a busca da unidade dos conceitos.

45. A teoria que informa a sistemática de responsabilidade civil protetiva do consumidor, distinta daquela que informa o direito clássico/voluntarista, deu maior complexidade e amplitude ao espectro da responsabilidade, adotando, pois, o CDC a teoria da qualidade e da quantidade. Quanto à qualidade, foram estabelecidas disciplinas diversas para o vício relativo à insegurança e o vício relativo à inadequação.

48. Essa mudança, antes mesmo da edição do CDC, já era identificada pelo emérito jurista Fabio Konder Comparato:

“…a transformação da responsabilidade civil, nessa matéria, adveio de dois fatores fundamentais, estreitamente ligados à mudança do modo de vida em sociedade, numa civilização industrial. Em primeiro lugar, a produção é feita em série, e não mais sob encomenda unitária, multiplicando-se, por conseguinte, a potencialidade danosa, sobre a qual se funda toda a experiência normativa. Ademais, criou-se um circuito de distribuição de bens em massa, totalmente diverso do pequeno comércio de antanho, que lidava com um número reduzido de mercadorias, cujas qualidades e defeitos eram certificados por longa tradição”(“in” Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 15/16, nova série, 1974, pg. 99).

49. Na realidade, podemos dividir os regimes jurídicos de responsabilidade civil do CDC em três tópicos: (i) vício de qualidade por inadequação; (ii) vício de qualidade por insegurança e (iii) vício de quantidade.

50. Quando o CDC disciplina o vício de qualidade por insegurança (fato do produto ou do serviço) sua preocupação está centrada na saúde e segurança do consumidor; quando se trata de vício de qualidade por inadequação ou vício de quantidade (vício do produto ou do serviço), a atenção do legislador está voltada ao aspecto econômico da relação de consumo.

51. Assim, quando nos deparamos com os artigos 12 a 17 do CDC, percebemos que se trata da disciplina do defeito de qualidade por insegurança (fato do produto ou do serviço), sendo que as regras insertas nos artigos 18 a 25 tratam dos vícios de qualidade por inadequação e de quantidade (vício do produto ou do serviço).


52. Ao ser criado esse microssistema, foi na verdade trasladado o conceito econômico de consumidor para o plano jurídico, dando um tratamento adequado aos avanços nas contratações e atividades relacionadas com o consumidor.

53. O legislador teve inclusive a preocupação com o tratamento dispensado ao consumidor quando o fornecedor busca receber seu crédito. Nesse sentido, os artigos 42 e parágrafo único, do CDC, buscaram proteger a integridade moral do consumidor, sem, é claro, impedir procedimentos legais de cobrança de dívida.

C. Das Inconstitucionalidades e ilegalidades da Medida Provisória número 2.148-1, de 22/05/2001 e Resolução 04, da GCE

C.1. Violação do artigo 5o., incisos XXXII, XXXVI e LV, da Constituição Federal

54. Conforme retro transcrito, o artigo 5., inciso XXXII, da Constituição Federal determina que o Estado deve promover a defesa do consumidor, na forma da lei, determinando, mais, em o artigo 48 das Disposições Constitucionais Transitórias que, em curto prazo, fosse editado O Diploma Legal adequado ao atendimento do comando constitucional.

55. Todavia, para surpresa da comunidade jurídica brasileira, a Medida Provisória 2.148-1 contém a seguinte disposição em seu artigo 25:

“Art. 25. Não se aplica a Lei número 8.078, de 11 de setembro de 1.990, em especial os seus artigos 12, 14, 22 e 42, às situações decorrentes ou à execução do disposto nesta Medida Provisória e das normas e decisões da GCE”.

56.. O dispositivo em comento, às escancaras, nega vigência ao artigo da Constituição Federal acima referido (5., inciso XXXII) ao impedir a qualquer cidadão que invoque a tutela jurisdicional do Estado, pugnando pela observância da lei protetiva ao consumidor, que encontra gênese na Lex Maior da Nação e colocada à disposição da sociedade para dirimir as questões relativas à prestação dos serviços de energia elétrica.

57. E mais! O dispositivo constitucional é, sem qualquer dúvida, considerado cláusula pétrea, hospedado que se encontra no Capítulo concernente às garantias individuais. A colaborar com tal afirmativa vale a examinar a regra contida no artigo 60, parágrafo quarto, inciso IV, da Constituição Federal, que é taxativo ao afirmar que NEM MESMO POR MEIO DE EMENDA à CONSTITUIÇÃO FEDERAL OS DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS DISCIPLINADOS NO ARTIGO 5. PODEM SER ALTERADOS.

58. Nesse particular impende que se traga à colação a escorreita decisão do ínclito Juiz Federal da 11. Subseção de Marília que, apreciando a mesma questão, assim decidiu:

“Neste passo, a MP 2148-1 violou uma cláusula pétrea, na medida em que o artigo 5., inciso XXXII da Constituição Federal, determina ao Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Com fulcro neste dispositivo constitucional, inserido no núcleo imodificável da Constituição da República, o dever do Estado é indeclinável, e se a administração pública, representando aqui o Poder Executivo, não faz valer essa norma, cabe ao Poder Judiciário como integrante do próprio Estado, determinar o seu cumprimento, promovendo de forma concreta a defesa do consumidor, através da aplicação da lei que está em vigor e os protege”.

59. Conseguintemente, Emérito Julgador, o artigo 25 da indigitada Medida Provisória revela-se de inconstitucionalidade flagrante, malferindo a lei básica federal, na medida exata em que, simplesmente, busca solapar direito indisponível, colocado à disposição da cidadania e que sequer seria possível de alteração, inclusive através de Emenda Constitucional.

60. Doutro lado, a Medida Provisória 2148-1 lançou seus tentáculos sobre vários artigos que compõem a espinha dorsal de um diploma que, em boa hora, veio regular as relações de consumo em nosso País, lei de regência essa com origem, como já dito, na própria Constituição da República (inciso XXXII do art. 5º.), sendo que a medida de sua relevância exsurge no momento exato em que o constituinte de 88, em seu artigo 48 (ADTC), determina ao Congresso Nacional que elabore o Código que, existente há mais de 10 anos, constitui-se hoje no mais útil instrumento legal colocado à disposição dos denominados hipossuficientes em suas relações com os fornecedores e prestadores de serviço, quer sejam públicos ou privados, nacionais ou estrangeiros.

61. Conforme antes exposto, o CDC foi editado com base nas normas constitucionais retro expostas que encerram, além de determinações princípios que permeiam nossa Constituição Federal.

62. O inciso XXXVI, do artigo 5o., da Constituição Federal foi igualmente desrespeitado, uma vez que a malfada Medida Provisória desconsiderou, fez tábula rasa, da relação contratual existente entre os consumidores e as empresas distribuidoras de energia elétrica, com o que desrespeitou o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.


63. De igual modo, a Medida Provisória 2148-1, ao impor “sobretaxa” (multas disfarçadas), adotando critério unilateral, lastreado em média de consumo de três meses do ano de 2.000, além de ameaças de cortes de energia, sobre agredir o princípio da isonomia, vulnera o do contraditório e da ampla defesa, posto que sequer viabiliza aos consumidores, o sacrossanto direito de se valerem de um princípio de direito natural: sustentar as razões da ilegalidade da pena aplicada.

C.2. Violação ao artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal

64. A Medida Provisória 2148-1 criou sobretarifas a serem cobradas dos consumidores de energia elétrica com base em faixas de consumo constatadas durante o ano de 2.000.

65. O valor exigido no artigo 15 da Medida Provisória e na Resolução 04, da GCE, constitui um “nada jurídico” isso porque a tarifa, consoante ensina o festejado professor Kiyoshi Harada, é sinônimo de preço público, ou seja custo mais margem de lucro razoável, que é fixado pelo Poder Concedente. A chamada sobretarifa, já batizada de sobretaxa, não integra categoria de direito privado. Maior consumo de energia jamais poderia implicar alteração do conceito de tarifa por razões comezinhas de direito.

66. Nesse particular, pede-se vênia para se trazer à colação erudito voto proferido pela hoje MINISTRA FÁTIMA NANCY ANDRIGHI, quando dignificava o Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao julgar a apelação cível nº 47.241/97, verbis:

“… Aliás, a noção de tarifa, segundo o professor José Geraldo Brito Filomeno, é inserida no contexto dos serviços ou, mais particularmente, tarifa é considerada preço público pelos serviços prestados diretamente pelo Poder Público ou então mediante sua concessão ou permissão pela iniciativa privada( Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.Ed.Forense- Universitária-4ª ed. Pág.39.

Ademais, não há razão plausível para que a administração pública, em sua condição de prestadora de serviços, devidamente remunerada, tenha privilégios, tal qual a cobrança de multa moratória de 10% sobre o débito, em relação a particulares que atuem, também, no mercado de consumo fornecendo serviços, que estão limitados pelo patamar de 2% do parágrafo primeiro do artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor.

O Ilustre Jurista IVES GRANDRA MARTINS, analisando efeitos de uma portaria editada pelo Ministério das Comunicações nas relações com os particulares, assim se manifestou:

‘ Não vejo porque razão não se possa, simultaneamente utilizar-se do Código de Defesa do Consumidor contra as empresas governamentais e o Poder Público, a par das ações ordinárias, desde que opte o autor por um ou outro caminho, o que vale dizer, os usuários poderão se utilizar o Código do Consumidor contra o governo…'( Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, vol.105/83)”.

67.Logo, o excesso de tarifa representa transferência compulsória de recursos financeiros pelo usuário de energia, assumindo feição tributária. Em decorrência, todos os princípios constitucionais tributários, a começar pelo princípio da discriminação de rendas tributárias, além de inúmeros outros como o da legalidade, anterioridade, da isonomia, devem ser observados, sob pena de, outra vez, serem rasgadas conquistas constitucionais da cidadania.

68. Por essas razões, não resiste a uma análise, à luz do preceito albergado no artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, a inconstitucional pretensão das Rés em por multa, sob a denominação disfarçada de sobretarifa, sem que se argua a sua natureza jurídica de vero confisco, que não se compadece com os princípios de direito encartados em nossa legislação maior.

69. Mesmo que iniciássemos uma busca de elementos permeando o direito privado, o ato praticado pelo Governo encontra vedação absoluta no artigo 1092, do Código Civil, que consagra o princípio da exceptio non adimplenti contractus, segundo o qual nos contratos sinalagmáticos nenhum dos contraentes poderá, antes de cumprir a sua obrigação, exigir o implemento da do outro. Isto é assim porque nesta modalidade contratual há uma dependência recíproca das prestações, que por serem simultâneas são exigíveis em atitudes coordenadas de um com relação ao outro.

C.3. Violação aos artigos 170, inciso V e 175, parágrafo único, incisos I a IV, da Constituição Federal.

70. O artigo 170, inciso V, da Constituição Federal, eleva a defesa do consumidor ao patamar de princípio da ordem econômica. Esta, por sua vez, encontra-se fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, objetivando assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social, observados dentre outros princípios, além da soberania nacional – que ao que parece restou neste caso olvidada, posto que interesses de entidades que buscam interferir nos atos governamentais internos teriam contribuído para a situação de grave instabilidade no campo energético, restringindo investimentos necessários e urgentes -, cuida também da livre concorrência e da defesa do consumidor.


71.Esses pontos foram odiosamente afastados, acarretando a grave situação retratada, com o recrudecimento da questão social, posto que atingirá de forma frontal a relevante questão de criação de novos polos de emprego, atividade essencial prevista no inciso VIII do artigo 170, da Constituição Federal, mas que, também, será indelevelmente sacrificada, o que fatalmente traz como consequência o mal trato ao artigo 6. da Lei Fundamental da Nação.

72. Com relação à infração ao artigo 175, parágrafo único, incisos I a IV, da Constituição Federal, é certo que incumbe ao Poder Público diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, observado sempre o procedimento licitatório, a prestação de serviços públicos, mas jamais com afronta ao direito dos usuários (inciso II) a uma justa política tarifária (inciso III) e a obrigação de manter serviço adequado.

73. Ora, Culto Julgador, a Medida Provisória em comento e aqui combatida fere de morte quaisquer direitos dos usuários, na medida em que cria uma desproporção entre a prestação de serviço e o respectivo preço, bem como viola o princípio da continuidade do serviço de energia elétrica, ao estabelecer, como pena pelo descumprimento de metas governamentais, o corte do fornecimento de serviço essencial para preservação da dignidade do cidadão.

74. Em sede de política tarifária, ao impor multa, com o nome disfarçado de sobretarifa, cria um verdadeiro confisco, como antes demonstrado, impondo valores em pagamento de ilegalidade absoluta, sujeitando os consumidores que sempre acorreram em dia com seus pagamentos, a suportarem, mesmo assim, a imposição fiscal injusta, sem forma ou figura de Juízo.

75. E, finalmente, no que concerne à obrigação de manter serviço adequado, o que se dizer diante da espada de Dâmocles, pendente sobre todos os consumidores, que, mesmo rendendo-se à redução de 20% em seu consumo, ficam diante da possibilidade de cobrança da elevada tarifa (multa disfarçada), estabelecida na Medida Provisória 2148-1 até o exorbitante percentual de 200%, mesmo na hipótese de cumprirem a meta governamental.

76. Ademais, como se depreende do artigo 2., parágrafo 2., da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, adiante transcrito, a lei geral (norma sobre o racionamento aplicável a diversos tipos de consumo) não pode derrogar norma especial que trata de relação de consumo.

“Art. 2. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. (.)

Parágrafo Segundo – A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais, a par das já existentes, não revoga nem modifica lei anterior”.

77. Mesmo que se quisesse emprestar à Medida Provisória guerreada o conceito de lei nova, jamais poderia ela à luz do princípio legal acima citado, derrogar o diploma consumerista ou as leis disciplinadoras das concessões e permissões de serviços públicos.

D. Da necessidade de antecipação de tutela no presente feito

78. Os fatos e fundamentos jurídicos apresentados na exordial demonstram, à saciedade, a necessidade da antecipação de tutela. Desse modo, com fundamento no que dispõe o artigo 273, inciso I, do Código de Processo Civil, pretende a Autora obter a antecipação da tutela final objeto da presente demanda, inaudita altera parte.

79. Ao comentar os requisitos para a concessão da tutela antecipada, o Professor Luiz Guilherme Marinoni assim afirma:

“É possível a concessão da tutela antecipatória não só quando o dano é apenas temido, mas igualmente quando o dano está sendo ou já foi produzido.

Nos casos em que o comportamento ilícito se caracteriza como atividade de natureza continuativa ou como pluralidade de atos suscetíveis de repetição, como, por exemplo, nas hipóteses de concorrência desleal ou de difusão notícias lesivas à personalidade individual, é possível ao juiz dar a tutela para inibir a continuação da atividade prejudicial ou para impedir a repetição do ato.” (in “A Antecipação da Tutela na Reforma do Processo Civil”, Ed. Malheiros, p. 57).

80. A propósito, o mesmo MARINONI, destaca, com muita propriedade, que a “disputa pelo bem da vida perseguido pelo autor, justamente porque demanda tempo, somente pode prejudicar o autor (que tem razão) e beneficiar o réu (que não a tem)” ( in “Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença”, Ed. RT, 1997, p.18).

81. Para ele isto “demonstra que o processo jamais poderá dar ao autor tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem o direito de obter ou que jamais o processo poderá deixar de prejudicar o autor que tem razão. É preciso admitir, ainda que lamentavelmente, a única verdade: A DEMORA SEMPRE BENEFICIA O RÉU QUE NÃO TEM RAZÃO” ( sic – maiúsculas e grifos da autora- Ob. Citada, p. 19).


82. Conseqüentemente, entende MARINONI que “se o processo é um instrumento ético, que não pode impor um dano à parte que tem razão, beneficiando a parte que não a tem, é inevitável que ele seja dotado de um mecanismo de antecipação da tutela, que nada mais é do que uma técnica que permite a distribuição racional do tempo do processo” (sic – Ob. cit., p. 23, grifos da autora).

83. Assim, de acordo com MARINONI, se “incumbe ao autor provar o que afirma, UMA VEZ PROVADO (OU INCONTROVERSO) O FATO CONSTITUTIVO, não há motivo para ele ter que esperar o tempo necessário para o réu provar o que alega, especialmente porque este pode se valer da exceção substancial indireta apenas para protelar a realização do direito afirmado pelo autor” (sic – Ob. cit., p. 36 – maiúsculas e grifos da autora).

84. Assim é que, estando a situação fática em questão a exigir urgente segurança jurisdicional, ante o efetivo perigo da ocorrência de gravame irreparável, a seguir tratado, plenamente cabível a antecipação dos efeitos da tutela no que diz com este feito.

85. Os fundamentos jurídicos acima expostos já demonstram, à saciedade, mais do que a verossimilhança, a certeza do direito da autora, uma vez que tanto a Medida Provisória 2148-1 quanto a Resolução 04 da GCE, contrariam frontalmente a nossa Carta Magna e as leis que estruturam a defesa do consumidor e a prestação de serviços públicos mediante concessão.

86. Destarte, não é moral, justo nem lícito compelir os consumidores, representados legitimamente pela autora neste feito, além de serem espoliados e sangrados em seu patrimônio, a submeter-se ao risco de a energia elétrica a eles fornecidas ser cortada, interrompendo-se a prestação de serviço essencial, sem sequer lhes permitir a utilização do sacrossanto direito de defesa e, mais, impondo-lhes sanção abusiva, mesmo estando em dia com os pagamentos de suas obrigações…!

87. É preciso enfatizar que consumidor de energia elétrica, serviço de natureza essencial como visto, merece a rápida e urgente proteção jurisdicional antes de ser atingido, em cheio, pelas medidas editadas pelo Governo Federal, colocando-o em risco, inclusive no que se refere a sua incolumidade físico-psíquica, e de sua família.

88. Antes de mais nada, objetiva a autora salvaguardar o consumidor de energia elétrica, que está sendo acintosamente desrespeitado pelas medidas retro mencionadas e que, na condição de hipossuficiente, não pode ser deixado sob o risco iminente de pagamento da vultosa soma a título de sobretarifa, quando na realidade se trata de multa disfarçada, nem muito menos ficar exposto ao risco de corte da energia elétrica.

E. Conclusões

89. Em face do exposto, forçoso concluir que a Medida Provisória 2.148-1, de 22/05/2001 e a Resolução número 04 da GCE, contrariam a Constituição Federal e as Leis Federais mencionadas nesta peça processual.

90. Diante de todo o exposto, requer a Autora digne-se V.Exa. de determinar:

(a) a concessão “inaudita altera parte” e liminarmente da antecipação de tutela, a fim de determinar a suspensão dos preceitos da Medida Provisória 2148-1 (artigos 14, incisos I e II, parágrafos 1. a 4., artigo 15, incisos I a III, 24, 26 e 27) que determinam o corte de energia dos consumidores que não cumprirem a meta de consumo fixada unilateralmente pelo Governo Federal por meio da Resolução 04 da GCE, bem como a suspensão da cobrança de sobretarifa para os consumidores que não observarem as faixas de consumo também especificadas na Medida Provisória em apreço e na referida Resolução da GCE e o afastamento da aplicação do CDC e leis que regulam a concessão de serviços público de energia elétrica;

(b) a decretação da procedência da presente demanda, reconhecendo a inconstitucionalidade e ilegalidade da Medida Provisória 2148-1 e da Resolução 04 da GCE, mantendo a liminar inicialmente concedida e condenando as Rés no cumprimento das obrigações de não fazer, consistentes na abstenção de promover o corte de energia para as hipóteses de não cumprimento das metas fixadas pelo Governo e na abstenção da cobrança de sobretarifa para os consumidores que não atingirem os limites de redução de consumo de energia elétrica igualmente fixados pelo Governo; tudo sob pena de pagamento de multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada ato contrário à ordem concedida.

Requer, “ad cautelam”, a produção das provas admitidas inclusive, mas não limitado a isso, juntada de novos documentos.

Atribui-se à presente, para efeitos fiscais, o valor de R$ 10.000,00, esclarecendo a Autora que se encontra isenta do recolhimento de custas, ex vi do disposto no artigo 87 do Código de Defesa do Consumidor.

São Paulo, 29 de Maio de 2.001

Carlos Miguel C. Aidar

Presidente da OAB-SP

Nélson Myahara

Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-SP

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