Falta de ética

OAB usa penas leves para punir advogados sem ética

Autor

21 de maio de 2001, 0h00

Os adesivos são comuns nos vidros dos carros: “Consulte um advogado. Você tem direitos” ou “Sem advogado, não há Justiça”. Mas, para uma parcela da população, o tiro pode sair pela culatra e o profissional contratado para resolver uma questão legal acaba criando problemas maiores.

A experiência do brasiliense Luiz Gustavo Nominato, 16, por exemplo, é daquelas para nunca mais esquecer. O pai do adolescente morreu quando ele tinha 2 anos, deixando bens estimados em US$ 30 milhões, entre participações em empresas e vários imóveis de alto padrão. Como o garoto era menor de idade, a Vara de Órfãos e Sucessões do Distrito Federal nomeou dois advogados de Brasília para administrar o espólio. Hoje, em vez dos milhões herdados, o espólio deve cerca de R$ 7 milhões. Do patrimônio, restaram apenas R$ 400 mil, arrestados pela Justiça para o pagamento das dívidas.

“Levaram todo nosso dinheiro e até as jóias do pai dele”, lamenta a mãe, Miramar Rocha, 44, que depôs sobre o caso na CPI do Judiciário, no ano passado. As conclusões da CPI foram enviadas para o Ministério Público no fim de 99, mas o processo ainda está em andamento. Um dos advogados envolvidos na denúncia fez parte do Conselho de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal até o ano passado, quando perdeu a eleição; a outra morreu em um acidente de carro.

Preocupada com a imagem da categoria, em 1994, a OAB transformou sua comissão de ética em um tribunal de ética, no qual voluntários integrantes da Ordem julgam as queixas apresentadas contra seus profissionais. Em 1998, a instituição lançou também a Campanha de Ética na Advocacia – que acabou virando permanente.

As campeãs de reclamação do tribunal são as causas que envolvem malversação de dinheiro ou falta de prestação de contas. No ano passado, a seção paulista recebeu 7.167 queixas. Com a soma dos processos remanescentes de anos anteriores, o total de processos chegava a 15.236 em março de 2000, equivalente a quase 10% do universo de 170 mil profissionais estimado para o Estado.

Em segundo lugar no ranking, vem a acusação de imperícia, quando o cliente se sente prejudicado por atuação ineficiente do advogado, como perda de prazos para recursos, por exemplo. Em terceiro ficam os processos apresentados pelos próprios pares, advogados e juízes que reclamam de comportamento inadequado por parte de algum colega.

Uma minoria de casos termina em punição. As quatro penas previstas são a advertência, uma espécie de “pito” verbal, sem registro nem estatísticas; a censura, uma advertência formal, que passa a constar do prontuário do profissional, mas não é tornada pública; a suspensão, que impede a prática da profissão por período variável entre três meses e um ano, e a exclusão ou cassação do registro.

A pena máxima é uma raridade – dois ou três casos por ano – e só atinge os profissionais condenados por crimes graves, como homicídio, fraudes (como a de Jorgina de Freitas, que lesou o INSS) e envolvimento com o narcotráfico. “Não há corporativismo no nosso meio, essa fama é injusta. Nós punimos rigorosamente todos os profissionais que se envolvem em situações que ponham em risco a probidade necessária ao exercício da advocacia. Estamos implantando tribunais de ética em outros Estados da federação”, afirma Rubens Approbato Machado, presidente do Conselho Federal da OAB.

As penas mais leves são mais usadas. Nos totais do ano passado, que incluem processos vindos de anos anteriores, 302 advogados receberam moção de censura e outros 425 foram suspensos.

Os casos de advertência e censura não chegam ao conhecimento público. Os de suspensão, sim, desde que o cliente vá pessoalmente a uma seção da OAB para se informar.

Mas nem sempre a punição espelha a gravidade do problema. O advogado trabalhista José Carlos de Moura Bonfim, por exemplo, se tornou habitué do fórum de Cubatão, não como bacharel, mas como réu. Desde 1997, José Carlos foi condenado em três processos e deve cumprir seis anos e quatro meses de reclusão por apropriação indébita de dinheiro de clientes (a última condenação foi em fevereiro do ano passado). Em nenhuma delas cabe recurso, é o chamado “trânsito em julgado”.

O mandado de prisão está expedido e José Carlos é um foragido da Justiça. Mesmo assim, ele foi condenado pelo Tribunal de Ética da OAB apenas em maio deste ano e a uma pena mínima, 30 dias de suspensão. A partir de junho, José Carlos pode sair em busca de outros clientes – se a polícia não o agarrar antes.

Provas difíceis

Segundo o Tribunal de Ética, um terço das queixas apresentadas é arquivado de cara, porque o cliente não tem como comprovar suas denúncias. Na maior parte dos casos os acertos são feitos informalmente, sem contrato, e fica a palavra de um contra o outro. Nessa hora, o linguajar intransponível do “juridiquês” é uma dificuldade a mais.

O resultado da imperícia não reflete apenas no bolso do cliente, mas também no balcão do fórum. No ano passado, 43% dos processos que entraram na Justiça do Trabalho foram “extintos sem julgamento do mérito”, o que, traduzindo do “juridiquês”, significa que continham prováveis imprecisões técnicas, como indicar o réu errado ou fazer um pedido impossível.

“O advogado é mal formado tecnicamente porque o ensino é muito ruim. Os bons profissionais são bons por esforço próprio”, afirma o professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) João Maurício Adeodato. “Mas fico animado com o aumento do interesse pela pós-graduação”, ressalva.

Mesmo com o aumento, os números ainda são baixos, conforme pesquisa de 1996, realizada pela Comissão de Ensino Jurídico da Ordem. Dos 1.700 advogados ouvidos nas principais capitais, só 3% tinham doutorado e 6%, mestrado.

A falta de formação sólida fica evidente no exame de admissão realizado pela Ordem, que funciona como uma peneira, eliminando quem não está minimamente preparado para exercer a função. Dos 11.220 paulistas que o prestaram em abril do ano passado, 52,8% foram aprovados.

“O bacharel deixa muito a desejar”, diz Sônia de Almeida Prado, presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB-SP. Segundo ela, não se trata “apenas” de desconhecimento técnico ou erros de português. “O aluno tem dificuldade de articular a idéia no papel, de concatenação, de se expressar de forma clara”, afirma. “Por isso”, conclui, “o exame é imprescindível, é o mínimo razoável que se pode exigir do futuro advogado”.

No “provão”, exame realizado pelo Ministério da Educação, os resultados foram piores. A nota média obtida pelos 46.420 formandos que fizeram a prova nos 257 cursos espalhados pelo país foi 39,2 (de 0 a 100). Apenas 4,3% das universidades privadas receberam conceito “A”.

Nem sempre vale colocar a culpa em empresários gananciosos que abrem escolas de Direito em qualquer esquina. A Universidade Estadual do Piauí, que é pública, mantém um curso “pré-matutino”, com aulas oferecidas das 5h às 8h. “Quem vai conseguir fazer um bom curso estudando de madrugada?”, pergunta Luís Carlos Moro, presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas.

Para evitar que a falta de preparo profissional prejudique os tribunais, países como o Reino Unido e França dividiram seus advogados em “categorias”. No Reino Unido, somente os “barristers” podem atuar nas altas cortes; os “solicitors” operam apenas em trabalhos de escritório e tribunais regionais. Na França, o sistema é similar, mas a figura do “barrister” é substituída pelo “avocat”, que lá tem tanto prestígio quanto um magistrado ou professor de direito.

No Brasil, nada impede que um recém-saído do exame da OAB apresente uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal), a mais alta corte do Judiciário, atolando o órgão com processos muitas vezes infundados e alimentando a fama de morosidade atribuída à Justiça.

Para alguns advogados, a lentidão vira uma ótima desculpa. Um divórcio consensual em São Paulo pode demorar menos de um dia, mas o empresário Carlos Tadeu Couto, 49, aguarda o dele há dois anos. “Eu já paguei R$ 2.000 e, a cada dia, minha advogada me dá uma nova desculpa. Ela parou até de atender minhas ligações”, reclama.

Carlos espera o divórcio para se casar com sua nova mulher, com quem já tem um filho de um mês. O empresário decidiu voltar a estudar e está fazendo o primeiro ano do curso de Direito, segundo ele, “para nunca mais precisar de advogados”.

Arapuca

Nenhuma área do Direito, no entanto, provoca tantas reclamações como a advocacia trabalhista, que concentra 40% dos processos do Tribunal de Ética. Quem der uma passada nas esquinas das avenidas Ipiranga com Rio Branco, na região central de São Paulo, fatalmente vai reparar o movimento. Lá estão concentradas as Juntas de Conciliação da Justiça do Trabalho.

Na calçada, ficam os “paqueiros”, pessoas que distribuem cartões oferecendo os serviços de advogados trabalhistas. O termo “paqueiro” origina-se do cão de caça que numa caçada às pacas tem a tarefa de trazer o animal já abatido ao seu dono. “A conduta é reprovável, mas difícil de reprimir”, diz Luiz Carlos Moro.

Recentemente, os picaretas da categoria receberam um golpe do TST (Tribunal Superior do Trabalho), que proibiu o “repasse” do crédito trabalhista. Explica-se: era prática comum de alguns advogados “comprar” os direitos de seus clientes, que, desempregados e sem dinheiro, aceitavam uma pequena parcela da indenização antes da sentença final. Para se precaver de futuras queixas, o advogado exigia do trabalhador um recibo de quitação que ficava guardado na gaveta, esperando o desfecho do caso.

Seguro advogado

Para evitar que o cliente pague o “pato”, a OAB estuda instalar uma espécie de “seguro” contra erros, nos mesmos moldes do que existe em alguns Estados dos EUA. Assim, se o cliente perder dinheiro por culpa do advogado, basta acionar o seguro que seu prejuízo será reposto. No Estado do Oregon (EUA), a Associação de Advogados transformou o seguro em obrigatório. Por aqui, a idéia é de torná-lo facultativo.

Há casos, no entanto, que nem o seguro resolveria, como o de Silvana Barbosa Pereira, 37, que perdeu o pátrio poder sobre seus quatro filhos, adotados por uma família italiana. “A advogada dizia que era melhor para as crianças, que eu não tinha condições e que não havia nada a fazer contra a sentença. Onde já se viu advogado contra o cliente?”, pergunta.

Silvana faz parte do Movimento das Mães da Praça do Fórum de Jundiaí, que reúne toda segunda-feira cerca de dez mulheres que perderam seus filhos por decisão judicial. Todas dizem que seus advogados não cuidaram do caso com zelo e que não entendiam patavina do que era perguntado. A advogada, segundo Silvana, sumiu.

“Os maus profissionais são exceção. Trata-se de uma minoria”, enfatiza Jorge Eluf, do tribunal de ética. Para o professor João Maurício Adeodato, da Federal de Pernambuco, o problema da advocacia brasileira é uma certa falta de prática, embora a profissão seja uma das mais antigas do mundo. “A advocacia brasileira é jovem, nasceu com a democratização. No regime militar, a profissão era cerceada, não podia ser exercida em sua plenitude”, acredita.

Se a advocacia é “jovem”, o ensino da ética é ainda mais novo. Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, uma das mais tradicionais do País, a disciplina ética profissional somente começou a ser ministrada no ano passado. O aprendizado, porém, depende mesmo é do aluno. “Não dá para ensinar isso na faculdade. Ética não se aprende na escola, é questão de caráter, de família”, diz Adeodato.

Fonte: Agência Folha

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!