Denúncias de corrupção

TJ-CE não aprofundará em denúncias contra Judiciário, diz juiz.

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21 de maio de 2001, 0h00

O Tribunal de Justiça do Ceará não investigará, com profundidade, as denúncias de corrupção no Poder Judiciário. A avaliação é do juiz e professor, José Albuquerque Rocha, um dos primeiros a denunciar suspeitas de corrupção no Judiciário. “É um grupo coeso, como uma família; não será fácil que essas denúncias graves sejam apuradas dentro do próprio poder”, afirma.

Quando o assunto é Justiça, o professor é uma referência no Ceará. Ele defende uma ampla reforma no Poder Judiciário. Rocha teve a ousadia de escrever e publicar aquilo que era comentado apenas em ambientes fechados: as denúncias de corrupção na magistratura. Depois disso, surgiu um pedido de CPI do Judiciário na Assembléia Legislativa e a própria direção do Tribunal de Justiça reconheceu que havia irregularidades, dispondo-se a investigá-las.

Leia a entrevista do juiz concedida ao jornal O Povo.

O POVO – As irregularidades no Judiciário tornaram-se públicas e são reconhecidas pela direção do Tribunal de Justiça. Como o senhor avalia que será o desfecho dessa questão?

José Albuquerque Rocha – Essas denúncias não podem deixar de ser apuradas. É dever irrenunciável de qualquer autoridade, sobretudo de autoridades judiciárias, mandar investigar – investigar não é acusar – toda e qualquer notícia de crime que chegue ao seu conhecimento. Principalmente crime envolvendo o próprio Pode Judiciário.

OP – Mas a que ponto isso pode chegar?

JAR – A pergunta exige um juízo de prospecção. Tradicionalmente, o Judiciário se caracteriza por ser um poder muito corporativo. Não há mecanismos democráticos de controle do Judiciário. Isso tudo desenvolveu no grupo social da magistratura esse espírito de corporativismo e solidariedade. Essa solidariedade é tanto maior entre os membros do Tribunal de Justiça; são poucas pessoas que têm convivência estreita e não competem entre eles, como acontece com os juízes. É um grupo mais coeso, como uma família. Não será fácil que essas denúncias graves sejam apuradas dentro do próprio poder. Especialmente, se elas envolvem pessoas da cúpula do poder. Não é fácil chegar-se a uma apuração exaustiva desses fatos.

OP – O senhor avalia que essa disputa inédita que ocorreu pela direção do Tribunal de Justiça representa um indicativo que se quer moralizar o Judiciário?

JAR – Não tenho muita dúvida de que a ruptura com o procedimento tradicional dos membros da direção do Judiciário é um sinal de que há um movimento tendente a limitar, ou impedir, que esse processo de corrupção, ou de acusações, esse fluxo de denúncias, continue a aumentar cada vez mais. Agora, daí a dizer que isso significa um propósito, uma deliberação, uma decisão de apurar essas denúncias, eu acho que vai uma certa distância. É uma tentativa de dar uma certa satisfação à opinião pública e com isso barrar a pressão pela apuração exaustiva desses casos.

OP – Isso significaria mais ou menos aquela célebre frase do Padre Cícero: “Quem roubou, não roube mais…

JAR – Mais ou menos isso. Olha: vamos pôr um ponto final e de agora por diante vamos tentar escrever uma nova história. Isso, sem se fazer um aprofundamento vertical no que houve anteriormente.

OP – Mais recentemente houve uma briga que se tornou pública, com dois desembargadores, Rômulo Moreira de Deus e Ernani Barreira, trocando insultos dentro do Tribunal e quase chegando à agressão física. O senhor acha que isso mostra que a situação está se tornando insustentável?

JAR – Não acredito que a situação tenha chegado a um limite insustentável. O que eu acho é que a pressão popular é tão forte que desencadeou a explosão de contradições dentro do tribunal. O caso a que você se refere é uma manifestação histórica concreta desse tipo de contradição.

OP – A corregedora Águeda Passos já iniciou quatro correições e várias investigações. Isso pode ser algum indício que as investigações serão conclusivas?

JAR – Devido à tradição de corporativismo do Judiciário, é pouco provável que essas investigações alcancem membros do próprio Tribunal. Pelo que eu tenho lido na imprensa, essas investigações têm como objeto apurar denúncias contra juízes do primeiro grau. É preciso ter cuidado para que não se chegue a apurar denúncias contra juízes que serviriam como bodes expiatórios, para com isso se dar uma certa satisfação à sociedade e à opinião pública. Até agora não tivemos notícias de instauração de procedimentos investigativos contra membros do Tribunal.

OP – Se o senhor entende que o próprio Judiciário não vai fazer a investigação com profundidade, como avaliaria a suspensão da CPI pela Assembléia Legislativa, atendendo a um apelo do presidente do Tribunal de Justiça, Haroldo Rodrigues?

JAR – O presidente do Tribunal foi à assembléia e pediu, o que aliás, é um ato inédito, e alguns deputados se sensibilizaram e retiram o nome do requerimento da CPI.

OP – O que o senhor achou disso?

JAR – Eu acho que a suspensão da CPI não foi correta. Há um equívoco muito grande de querer confundir a atividade da Corregedoria com a atividade de uma CPI. A Corregedoria é um órgão administrativo, interno, que só tem competência para apurar denúncias de irregularidades contra juízes. Só pode punir esses juízes do ponto de vista administrativo.

Não pode apurar, nem punir, membros do Tribunal (do Estado), cuja competência é do STJ (Superior Tribunal de Justiça), portanto é um órgão limitadíssimo. A CPI é um órgão que desempenha uma função constitucional do poder Legislativo, que é o poder representativo da vontade popular. Portanto, não só o poder de investigar ilícitos, mas tem o poder de avaliar outros aspectos fundamentais do Judiciário, como por exemplo a extrema lentidão dos processos, a falta de acesso da imensa maioria da população ao Judiciário – pela ausência de uma Defensoria Pública capaz de dar assistência aos pobres – além de outros aspectos.

OP – O senhor acha que a Justiça tem de ter controle externo?

JAR – Eu não tenho a menor dúvida. O Judiciário tem que ser controlado, como qualquer poder público. Numa democracia, o controle do exercício do poder é absolutamente inafastável. O Legislativo é controlado pelo próprio povo – que de quatro em quatro anos elege os seus representantes. O Executivo é também controlado, ainda que seja menos democrático que o Legislativo e, por isso mesmo, não é poder estruturado para produzir normas gerais e abstratas, mas para executar a lei.

O Judiciário não é eleito e nem é controlado por ninguém. Em compensação, controla a legalidade do Executivo e a constitucionalidade das leis do Legislativo. Em suma, o Judiciário se auto-controla. Então, nós precisamos, primeiramente, encontrar um mecanismo de controle administrativo do Judiciário. Separar duas coisas muito distintas: a função jurisdicional, de julgar, da função de administrar ou governar o Judiciário. Atualmente, essas duas funções são concentradas no mesmo órgão, que é o Tribunal de Justiça. Não há razão nenhuma, nem política, nem lógica, nem científica, de conservar um órgão, de pura administração do Judiciário, com caráter autocrático, num Estado que se define como democrático.

OP – Formou-se recentemente uma entidade no Ceará, denominada de Observatório do Judiciário. O senhor acha que esse tipo de iniciativa é positiva?

JAR – Tudo quanto for de iniciativa tendente a permitir ao povo o exercício da soberania de que ele é titular, é altamente positivo para a democracia. O Observatório do Judiciário é uma forma encontrada pela própria sociedade para participar do exercício do poder de uma das organizações do Estado mais importantes e ao mesmo tempo mais herméticas.

OP – O senhor já foi juiz. É comum que o juiz seja assediado pelas partes interessadas em algum processo com o objetivo de influenciá-lo?

JAR – Não se pode responder isso genericamente. A sociedade é heterogênea, composta de classes e grupos. O que eu posso dizer é o seguinte: a imensa maioria da população brasileira não tem acesso ao Judiciário. E quem não tem acesso? Exatamente o que se poderia chamar de as classes populares, portanto, essas classes não pressionam o Judiciário. Quem tem acesso ao Judiciário? A classe média e o sistema econômico em suas relações com o consumidor.

Conseqüência lógica disso: quem pode pressionar juízes e, sobretudo os membros do Tribunal, são as pessoas que constituem a elite política ou econômica. Seja diretamente ou por meio de seus advogados. Ninguém vê nos jornais notícias sobre juízes, principalmente membros de Tribunais, participando de festas na casa de gente do povo. O que se vê são notícias de congregamento de magistrados com pessoas da elite. As pressões partem sobretudo de quem tem poder.

OP – As denúncias contra o Judiciário envolvem juízes, desembargadores e advogados. Ou seja, a corrupção depende desse “esquema’ para vicejar?

JAR – Em toda a corrupção há pelo menos duas pessoas envolvidas. Um que corrompe, que vai receber o benefício daquele que tem o poder; e o corrompido, que vai dar uma decisão ou outro bem público em troca do dinheiro ou outro valor material. De maneira que toda corrupção de magistrado envolve a parte interessada ou do advogado, como mediador.

OP – O senhor foi uma das primeiras pessoas que denunciaram publicamente aquilo que era comentado apenas em ambientes fechados, ou seja, de que havia corrupção no Judiciário cearense. O senhor foi interpelado judicialmente por isso. Como está o processo atualmente?

JAR – O processo foi arquivado. O Tribunal de Justiça me interpelou, eu confirmei o que tinha dito no artigo. Ao Tribunal, caberia então me processar, me garantindo a ampla defesa, o que incluiria até o recurso a um instituto jurídico chamado de exceção da verdade (o direito que o acusador tem de pedir investigação para que se produza provas contra uma autoridade). Como os fatos relatados por mim ocorrem no âmbito do Poder Judiciário, de prova difícil, evidentemente só com a exceção da verdade eu poderia pedir uma investigação desses fatos dentro do próprio Tribunal e provar aquilo que eu relatei. Mas o Tribunal entendeu de não dar continuidade ao procedimento.

OP – Eles se deram por satisfeitos com as explicações que o senhor deu?

JAR – Fica estranho a gente achar que eles se deram por satisfeitos, por que eles me interpelaram para eu confirmar ou não o que havia escrito e, caso confirmasse, ameaçavam de me processar. E eu confirmei os fatos, e eles entenderam que estavam satisfeitos.

OP – O senhor é professor, dá aulas para jovens que pretendem ser operadores do Direito. Como os alunos encaram essas questões?

JAR – É surpreendente e animador a gente verificar o extraordinário interesse da juventude, dos estudantes de Direito, em relação à moralização e a uma reforma democrática do Judiciário. Eu fico realmente contente quando estou dando aula e vejo o enorme interesse de saber como o Poder está organizado, qual seria a alternativa a essa forma de organização atual, o que poderia se fazer para melhorar.

O atual estudante de Direito, de modo geral, já não se contenta mais em receber lições daquilo que nós chamamos dogmática jurídica. Um modelo de ciência do Direito que se preocupa exclusivamente com a interpretação deôntica, ou seja, da conduta dos textos, sem indagar da justiça ou injustiça daquilo que a gente chama de norma; sem indagar das razões sociais da norma, das suas ligações com a realidade social. Aqui no Ceará já se tem um movimento de juízes jovens, na grande maioria, que é fruto dessa nova mentalidade.

Fonte: O Povo

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