Duplicata virtual

Advogado afirma que execução de duplicata virtual é ilegal

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21 de maio de 2001, 0h00

A filosofia chinesa ensina que o homem só é fiel à mudança. Para os chineses a única constante é, paradoxalmente, a mutação.

O estadista norte-americano, Abrahan Lincoln, contudo, foi além e, com o pragmatismo que caracteriza o sentir daquela nação, rogou a Deus que lhe desse coragem para mudar o que era necessário, aceitar o que não podia ser modificado e sabedoria para distinguir uma situação da outra.

Precisamente esta é a questão: quando devemos mudar e quando devemos perseverar? O mundo de nossos dias, principalmente se tomado do início do século XX até o início do século XXI, foi pródigo em mudanças. Quando encontro um ancião, que viveu sua juventude nos idos de 1950, sempre lhe pergunto o que pensa daquele mundo e do nosso e, invariavelmente, ouço que um mundo “morreu” e outro existe hoje em seu lugar.

A velocidade da evolução tecnológica ultrapassou a maquinalidade e adentra a eletrônica, já prometendo a mudança dos seres vivos, via da clonagem e outras técnicas. Esta realidade, que a ninguém é permitido negar, forma no espírito da sociedade, a cultura da mudança. Tudo o que já está criado, estabelecido, já é, em princípio, superado. O último modelo do carro no ano seguinte já é passado; o vídeo de 4 cabeças já é menos que o de 8; o aparelho de som de 2002 já está aí e, assim, infinitamente. Uma progressão geométrica.

Ora, o Direito, como ciência social que é, interage com a sociedade e, como tal, também sofre os reflexos desta cultura da mudança. Vemos a cada dia surgirem e ressurgirem teses e teses. Situações novas, por outro lado, são colocadas em desafio à estrutura jurídica que, de uma forma ou de outra, tem dar resposta.

Há, porém, princípios basilares, não só nas Ciências Jurídicas, como nas demais, onde a modernidade está aguilhada a realidades materiais insuperáveis. Neste diapasão, no campo do Direito Comercial, mais especificamente na seara dos títulos de crédito, aparece a discussão sobre legalidade ou não da chamada duplicata virtual.

Como é sabida, a duplicata, como título de crédito, é uma criação singular de nosso direito. TULLIO ASCARELLI (in Teoria Geral dos Títulos de Crédito, RED Livros, 1999) referia-se a ela como o “o tijolo principal do direito brasileiro”. Como defini no livro “Títulos de Crédito e Processo de Execução” -Editora Aide-, duplicata é um título de crédito constituído em virtude de uma negociação mercantil ou prestação de serviços, regido por leis próprias, passível de circulação, encarnando em si as características fundamentais dos títulos de crédito, tais sejam, cartularidade, literalidade e autonomia.

Com efeito, antes de qualquer outra análise, não é possível apartar a duplicata da “espécie” a que pertence, tal o seja, dos títulos de crédito.

E o que é um título de crédito? CESARE VIVANTE (in Tratatto di Diritto Commercialle, 3ª ed., vol. III, págs. 154) sumulou que “título de crédito é o documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”.

Em nosso livro sobre o tema, definimos título de crédito como o instrumento representativo de um crédito literalmente nele declarado, que tem existência autônoma, com possibilidade de circulação.

Visto assim, pois, é necessário que seja rememorado a origem dos títulos de crédito que, nas feiras medievais européias, tiveram seu nascedouro. Ali, entre comerciantes, após o término da feira, eram feitas “compensações” entre débitos e créditos, o que terminou por materializar-se na circulação de embrionários títulos.

Neste sentido, relembrando o nascedouro do Instituto, fácil é apontar que a possibilidade de circulação é aspecto fundamental de todo e qualquer título. Deste modo, como desdobramento lógico desta necessidade, cristalizou-se as três características básicas dos títulos de crédito: cartularidade, literalidade e autonomia.

Dentro desta linha de raciocínio, a duplicata, como título de crédito de que é, deve conter estes três requisitos fundamentais, que lhes antecedem, como corolário inseparável. Indaga-se: existe cartularidade na virtualidade? E literalidade? E autonomia? Como poder-se-ia circular, com autonomia, cartularidade e literalidade uma duplicata virtual?

Não obstante estas obviedades, alguns autores já opinam pela legalidade da chamada duplicata virtual, chegando FÁBIO ULHOA COELHO (In Curso de Direito Comercial, 4ª ed., 2000, vol. 1, págs. 158) a, categoricamente, afirmar que “é jurídica, portanto, a execução de duplicata virtual (isto é, nunca papelizada), com a exibição em juízo do instrumento de protesto por indicações e do relatório do sistema do credor, que comprova o recebimento das mercadorias pela sacado”.

Assertiva sem dúvida “modernoza”, contudo insustentável.

Ora, conforme HUMBERTO THEODORO JR. (In Processo de Execução, 19ª ed., 2000, págs. 389), a execução forçada tem como pressuposto o título executivo que atesta certeza, liquidez e exigibilidade da dívida. Não a visa, desta forma, a discussão e fixação do direito das partes, mas diretamente a realização da prestação que o título faz presumir como um direito pré-reconhecido pelo credor”.

Em conclusão, pois, quando se fala em execução há que se ter, forçosamente, um título executivo. Se o título executivo for um título de crédito, é imprescindível que obedeça aos requisitos fundamentais de sua classe.

A duplicata, com efeito, é um título formal, obedecendo aos requisitos exigidos pelo parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 5.474/68. Estes requisitos exigidos, que impõem inclusive o modelo legal, não podem ser dispensados. Desta maneira, duplicata virtual não existe. Não é título de crédito, porquanto não atende aos fundamentos preconizados em Lei. E, assim, não sendo título de crédito, não é título executivo.

Como se pode executar o que não existe?

Não salva o argumento de que a duplicata virtual pode ser protestada por indicação -artigo 15, parágrafo 2º da Lei das Duplicatas – que, acompanhado do recibo de entrega de mercadorias, seria o título hábil à execução, já que, como visto, não cumprido os requisitos de emissão da duplicata, tal não existirá. Não existindo, desta forma, o título em si como poder-se-á, com acessórios, suprir-se a sua falta?

“Ousar é a única maneira de alcançar o progresso”, segundo VICTOR HUGO. Entretanto, em certas situações, ousar é, justamente, permanecer.

No caso em tela, o benefício da agilidade comercial com a “virtualidade” da duplicata será inversamente proporcional à barafunda jurídica que se resolverá nos corredores dos fóruns. O instituto do direito comercial da duplicata, enquanto título de crédito e o instituto processual da execução, não comportam a existência e executividade da duplicata virtual.

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