Reportagem condenada

Folha é condenada a indenizar juiz federal em R$ 270 mil

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16 de maio de 2001, 12h41

A Folha de S.Paulo foi condenada a pagar indenização de R$ 270 mil (1.500 salários mínimos) para o juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Roberto Haddad. O pedido foi motivado pela publicação de uma série de reportagens exibindo o patrimônio do juiz. O jornal também foi condenado a pagar as despesas processuais corrigidas e 15% dos honorários advocatícios da parte vencedora.

O juiz Paulo Alcides Amaral Salles, da 12ª Vara Cível de São Paulo, determinou, ainda, que a Folha publique a sua sentença, com chamada na primeira página. O jornal deve recorrer da decisão.

Leia a sentença

12ª Vara Cível Central

Proc. nº 000.99.995994-0

Visto, etc…

ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD, qualificado nos autos, por seu procurador, propôs a presente ação de indenização por danos morais à imagem, rito ordinário, contra EMPRESA FOLHA DA MANHÃ S.A. Em síntese, embora entenda como sendo direito subjetivo maior, livre e independentemente de censura ou restrição de qualquer natureza, sustentou que a requerida, através de reportagem intitulada “Judiciário – Levantamento indica sinais de riqueza – Juízes ostentam estilo milionário” lesou sua honra. Dias depois, contou que a empresa divulgou uma charge, que mostrava o desenho de uma embarcação (GIRDA IV), parodiando o nome de sua lancha (GILDA), intitulada “Enquanto os desembargadores ostentam sinais de Riqueza”. Posteriormente, sob o título “Judiciário – Envolvidos não comentam o caso – Juízes do TRF em SP serão investigados” informou que um Procurador da República, com fundamento nas denúncias, remeteu cópia da matéria ao Ministério Público Federal “para possível instauração de inquérito policial”. Em seqüência, publicou: “Judiciário – Desembargadores do TRF têm liminares que barram apuração sobre a origem de seus patrimônios – Juízes federais suspendem investigação de provas para instaurar uma sindicância – Investigação de juízes é dúvida no TRF” publicou entrevista com o Presidente do C. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Desembargador José Kallas.

Após considerações sobre o direito da imprensa, observou que a informação não dá direito à calúnia ou difamação, nem à conspurcação da imagem. A ocorrência desse fato deve ser interpretada como exercício não-regular do direito, que deve ser sancionado. Entende que a ré, com o intuito de impressionar o leitor, passando-lhe a imagem de um juiz corrupto, não hesitou em mentir.

Ainda, violando seu direito de imagem, ponderou que ela, sem qualquer respaldo, estampou fotografias suas nas páginas do jornal, além de seus bens móveis e imóveis.

Pediu, por tudo isso, a condenação da ré ao pagamento de uma indenização por danos morais e à imagem, e a publicação da decisão após o trânsito em julgado. Formulou os protestos de praxe (fls. 02/21). Juntou os documentos de fls. 24/91.

Em sua contestação (fls. 103/141), a requerida tece considerações a respeito da liberdade de manifestação do pensamento e de expressão, e sobre o dever de informar. Após análise da pretensão do autor, considera que sua conduta não contém nenhum poder ofensivo contra a honra do autor e que as publicações foram veiculadas ob os imperativos do interesse público. Ponderou que a matéria foi realizada sem qualquer intento de ofender a honra e que ela só foi levada ao conhecimento público após intenso trabalho investigativo do repórter responsável. Considerou que apenas afirmou que o patrimônio do autor destoa dos demais membros do Judiciário na medida em que ele ostenta sinais de riqueza consideráveis. Considerou inexistente o alegado dano tendo em vista que a reportagem não denegriu a imagem e o bom nome do requerente. Quanto ao dano a imagem, observou que as fotografias publicadas serviram apenas e tão somente para ilustrar a matéria. Após impugnar a indenização pleiteada e o pedido de publicação da sentença, pediu a improcedência.

Réplica a fls. 341/348.

Em audiência, prejudicada a conciliação (fls. 366/367).

Processo formalmente em ordem; sem vícios ou nulidades.

É o relatório. D E C I D O

I – Não havendo necessidade de outras provas, nos termos do artigo 331 do C.P.C., conheço diretamente do pedido.

Conforme Pietro Nuvolone, “não se pode pretender que a crítica seja objetiva, tratando-se quase sempre de uma interpretação subjetiva e, portanto, expressão de um ponto de vista individual, freqüentemente de antítese polêmica. Mas se pode pretender que não exorbite no epíteto injurioso, sem motivação racional, ou que, a partir de um fato circunscrito a uma determinada esfera de atividade do indivíduo, encontre o pretexto para ataques de caráter pessoal, que transcendem do fato e investem contra a dignidade do sujeito destinatário da crítica” (cfr. II diritto penale della stampa, Podova, Cedam, 1.971, p. 68).


A contestação assenta como premissa ser “indiscutível que a vida e os atos praticados pelos homens e agentes públicos, enquanto tais, podem e devem ser analizados, discutidos e criticados pela imprensa” (fls. 106). Ainda que “assim procedem os homens públicos de todo o mundo, os quais, escolhendo para si o desempenho da função, seja no Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário, abraçam também, conscientemente e em qualquer um desses níveis do poder público e político, o ônus da submissão ao questionamento da sociedade´ (fls. 107).

O autor, logo no início de sua manifestação entende e reconhece o direito de liberdade à livre manifestação do pensamento.

Considera, apesar disso, que a ré não se conduziu de forma isenta ao permitir que o leitor destinatário da notícia, tenha sido levado a concluir que a posse de bons em nível superior ao de seus pares seria indigno por parte de um magistrado.

A série de reportagens teve início no dia 11 de julho de 1999, oportunidade em que foi publicado na primeira página o título “DESEMBARGADORES DE SP OSTENTAM SINAIS DE RIQUEZA”.

Consta da mesma que o autor e um colega “ostentam riqueza que contrasta com o padrão de vida dos juízes brasileiros…” “os juízes afirmam poder comprovar a origem da riqueza” (fls. 26).

A Constituição garante o direito de propriedade. Assim, não se pode considerar irregular o fato do autor ser proprietário de bens; muito menos que os mesmo ultrapassem o padrão de vida dos juízes brasileiros, que em momento algum foi explicado qual seria.

A opinião pública, por conseqüência, acabou por questionar a conduta do autor, pois como um juiz poderia ter patrimônio maior que o de seus colegas, ou seja, além daquele permitido pelo citado padrão de vida.

Segundo a requerida, o repórter responsável realizou intensa investigação sobre os fatos, coletando dados e depoimentos a respeito, o que demonstraria a seriedade de sua conduta.

Sendo assim, se alguma irregularidade havia, cabia-lhe apontá-la, pois fruto de investigações a matéria.

A colocação feita ao final da chamada na primeira página, de que os “suspeitos” poderão comprovar a origem da riqueza (fls. 26), demonstra a forma como as notícias, nos dias de hoje, transformam pessoas de bem em verdadeiros suspeitos de condutas irregulares, pois eles é que acabam tendo a obrigação de explicar a origem de seus bens ou a normalidade de sua conduta.

O jornalismo consciente e responsável é aquele em que, como será abaixo consignado, é feita de forma não partidária e fiel a verdade dos fatos.

Como afirmado, a imprensa tem todo direito de levar ao conhecimento da sociedade os fatos e acontecimentos em que se faz presente o interesse público.

É sabido que os agentes de autoridade devem ter comportamento irrepreensível tanto na vida privada quanto na pública, pois do contrário, estarão causando mal à população e à Instituição a qual pertencem.

Conseqüentemente, notícias relacionadas a tais pessoas, devem ser fundamentadas, já que imediata é sua repercussão; principalmente quando veiculada através de um grande jornal, como é o da requerida.

A respeito, é de se ter em mente a lição de Darcy Arruda Miranda: “Quem não quiser expor-se à crítica jamais deverá aceitar um cargo de governo. A vida pública do político ou daquele que assume posto de relevo na vida nacional, é devassável a todas as luzes, é perscrutável em todas as latitudes, é vasculhável em todos os seus escaninhos, por isso que a coletividade precisa estar alerta contra todos quantos, por seus atos ou atitudes, possam colocar em situação de perigo o país, a moralidade pública e as próprias instituições. O que não se permite à critica é invadir a vida privada do homem público, a não ser para positivar um fato de interesse geral ou que possa incompatibiliza-lo com a função que pretende exercer ou que já está exercendo” (Comentários à Lei de Imprensa – São Paulo – RT – 1.969 – vol. II, p. 562, nº 484).

A vida e os atos dos homens públicos estão a merecer todas as letras e luzes. Podem e devem ser analisados, discutidos e criticados, desde que respeitada a honra de cada um.

Bem por isso, é de se considerar que a forma como os fatos foram colocados exorbitou o sagrado dever de informar.

O direito de propriedade do articular, legalmente exercito, não pode ser considerado como sendo de interesse público.

Não se pode alimentar a idéia, de quem quer que seja, que a existência de patrimônio expressivo não se mostra regular na medida em que os colegas do autor não gozam do mesmo privilegio.

Uma coisa é conquistá-lo legitimamente; outra é apurar que eles possuem origem ilícita.

A forma como a série de reportagens foi levada ao conhecimento do público, portanto, não preservou a honra do autor.


O texto não está a divulgar atos do agentes do Poder judiciário; muito menos a matéria pode ser tida como de interesse público.

Não se pode deixar de reconhecer a existência dessa irregularidade na medida em que a matéria não aponta nenhuma ilegalidade no comportamento do autor.

Tampouco, cuidou a requerida de trazer para os autos elementos de prova que dessem crédito às insinuações sobre a origem espúria do patrimônio do autor.

Interesse público existe na apuração de irregularidades. Hoje não mais se concebe que fatos passados e presentes, denunciados e provados, não sejam apurados e os responsáveis punidos de acordo com a lei.

A respeito do papel da imprensa, em recente artigo, observou Carlos Alberto Di Franco que “a síndrome do denuncismo é, de fato, uma ameaça ao verdadeiro jornalismo de denúncia. Assistimos, freqüentemente, a uma guerra de audiência que passou a ser medida pelo número de dossiês publicados nos jornais e revistas ou veiculados nos telejornais. Sobram acusações, mas falta análise de procedência e da qualidade da denúncia. Estamos mergulhados numa perigosa competição. Se não dermos, pensamos com a absurda lógica da disputa de mercado, a concorrência pode dar. O resultado dessa equação é a morte da informação, o descrédito da imprensa, o desserviço ao cidadão e, no mínimo, a possibilidade de um tiro certeiro na honra alheia”… “O jornalismo investigativo cedeu lugar a uma compulsiva e acrítica transcrição de fitas, que, por sua vez, serve de estopim para um campeonato de abertura de inquéritos. O leitor está começando a ficar cansado do clima de espetáculo que tomou conta das manchetes e dos palanques da acusação. Quer menos estardalhaço e mais criminoso na cadeia”… “Como já salientei nesse espaço opinativo, o jornalismo está virando show business. Espartilhados pelo mundo do espetáculo, editores e repórteres estão sendo empurrados para o incomodo papel de uma peça descartável na linha de montagem da ciranda do entretenimento. É preciso e urgente revalorizar as clássicas perguntas que devem ser feitas a qualquer jornalista que cumpre uma pauta investigativa: checou? Tem provas? A quem interessa essa informação? Trata-se de elementar cuidado contra tentativas de instrumentalização da mídia”… “Uma imprensa investigativa, não partidária, independente e fiel à verdade dos fatos: esses são os desafios da cobertura política e, ao mesmo tempo, os parâmetros que devem nortear o relacionamento entre a imprensa e os governantes” (O Estado de São Paulo – O Trombone e a Imprensa – Espaço Aberto – 02/04/2000).

A liberdade de informação, constitucionalmente garantida, tem por limite a liberdade individual. Como já afirmado, “se ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação contrapõe-se o direito à inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem, segue-se como conseqüência lógica que este último condiciona o exercício do primeiro” (RT – RP – 86/321).

Ensina Sergio Cavalieri Filho que “os direitos individuais, conquanto previstos na Constituição, não podem ser considerados ilimitados e absolutos, em face da natural restrição resultante do princípio da convivência das liberdades, pelo quê não se permite que qualquer deles seja exercido de modo danoso à ordem pública e às liberdades alheias. Fala-se, hoje, não mais em direitos individuais, mas em direitos do homem inserido na sociedade, de tal modo que não é mais exclusivamente com relação ao indivíduo, mas com enfoque de sua inserção na sociedade, que se justificam, no Estado Social de Direito, tanto os direitos como assuas limitações” (Programa de Responsabilidade Civil – Malheiros – 2ª ed. – pág. 94).

Ou, em outras palavras, como enfatizou a ilustre Procuradora da República, dra. Delza Curvelo: “O julgamento se faz, não perante o juízo competente, mas pela ‘opinião pública’. Os ‘acusados’ podem não sofrer pena corporal, mas sofrem penas perpétuas e punições mais que severas do que as que receberiam se tivessem, efetivamente, cometido algum ato delituoso, pois são moralmente assassinados diante das telas da televisão e nas páginas contrais dos jornais”.

II – A respeito do dano à imagem, considero que ela foi absorvida na medida em que as fotografias tiveram a finalidade de ilustrar a reportagem; inclusive a charge, que não retratou o autor.

Isoladamente, nenhuma delas tem condições de lesar sua honra, pois nada transmitem ao leitor.

O ilustre Desembargador, a respeito, ensina que “o uso indevido da imagem alheia ensejará dano patrimonial sempre que for ela explorada comercialmente sem a autorização ou participação de seu titular no ganho através dela obtida, ou, ainda, quando a sua indevida exploração acarretar-lhe algum prejuízo econômico, como por exemplo, a perda de um contrato de publicidade. Dará lugar ao dano moral se a imagem for utilizada de forma humilhante, vexatória, desrespeitosa, acarretando dor, vergonha e sofrimento ao seu titular, como, por exemplo, exibir na TV a imagem de uma mulher despida sem a sua autorização. E pode, finalmente, acarretar dano patrimonial e moral se, ao mesmo tempo, a exploração da imagem der lugar à perda econômica e à ofensa moral” (ob. cit. – pág. 91)


III – No que pertine ao montante da indenização, não há como acolher a pretensão do requerido, já que a Constituição Federal acabou com as limitações de tempo e valor para as ações de reparação de danos materiais e morais (Darcy Arruda Miranda – ob. cit. – pág. 734).

Antonio Jeová Santos, a respeito observou que em todo momento “ficou clara a repulsa a qualquer tentativa do legislador em pretender fixar piso mínimo ou teto para a indenização do dano moral. A tarifação rígida é odiosa, caprichosa e violadora de princípios próprios do direito de danos, como o da reparação integral. O tarifamento despersonaliza e desumaniza em tema tão delicado, estreitamente relacionado a sentimentos, com o mais intimo da pessoa” (Dano Moral Indenizado – Lejus – 1999 – pág. 216).

Roberto A. Vázquez Ferreyra adverte: “A los efectos de encontrar las pautas que orienten al tribunal em la fijación del monto indemnizatorio, hay que partir de la naturaleza resarcitoria de esta obligación. Por ello, en primer lugar se debe considerar las condiciones personales del damnificado y la entidad de los padecimientos sufridos. Asi cobra vital importancia el análisis de la gravidad objetiva del daño, la edad y personalidad de la victima, su situación familiar y social, etc.

“En consecuencia, los distintos hitos a recorrer por el juzgador a fin de determinar con justicia el monto de la reparación del daño moral causado serian los singuientes: gravedad objetiva del daño, personalidade de la víctíma, gravedad de la falta, y, por fin, la personalidad del ofensor en cuanto pudiere tener influencia sobre la intensidad objetiva del agravio inferido a la victima” (Reponsabilidade Por Danos – Depalma – 1993 – pág. 190).

Levando em conta que o autor, desembargador federal, se viu diretamente atingido pela série de reportagens, que lhe ocasionaram considerável dor, menosprezo, distorção de seu caráter perante o público, amargura, sofrimento e vergonha perante os seus pares, sentimentos ínsitos à honra, e a capacidade da requerida em poder arcar com o valor a ser arbitrado, e o fato de que além de procurar reparar o mal, o montante também deverá servir para coibir futuros abusos, considero que a quantia equivalente a 1.500 (hum mil e quinhentos) salários mínimos mostra-se suficiente a reparar o agravo por ele sofrido.

A imprensa, segundo Gilberto de Mello Kujawski, “existe para informar, não podendo sonegar nenhum fato de interesse público. E, como os jornais, as revistas, as estações de rádio, os canais de televisão estão inseridos no mercado, têm todo o direito de competir entre si para ver qual deles se antecipará a manchete de maior impacto. Sem dúvida, mas a conseqüência inevitável é que os meios de comunicação, uma vez estourado o escândalo, não hesitam em jogar mais lenha na fogueira, insuflando, ainda que sem querer, a insatisfação e a revolta do público…” (O Estado de São Paulo – A Responsabilidade da Imprensa – 03/05/01).

Isto posto, e pelo mais que dos autos consta, JULGO PROCEDENTE a presente ação, condenando o réu a pagar ao autor a quantia equivalente a 1.500 (hum mil e quinhentos) salários mínimos, observada a época do pagamento, acrescida de juros de mora, contados da primeira publicação.

Deverá o réu fazer publicar esta sentença (artigo 75 da Lei 5.250/67) no mesmo jornal, uma única vez, com chamada na primeira página após o trânsito em julgado.

O requerido arcará, ainda, com as custas e despesas processuais, corrigidas do desembolso, e honorários advocatícios, que nos termos dos parágrafos 3º e 4º do artigo 20 do C.P.C., fixo em 15% do valor da condenação.

P. R. E Intimem-se.

São Paulo, 23 de abril de 2.001.

PAULO ALCIDES AMARAL SALLES

Juiz de Direito

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