A parte e o todo

STF privilegia uns poucos, pune um só e prejudica a muitos.

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12 de maio de 2001, 0h00

A uma Suprema Corte cabe decidir pensando na questão institucional; infelizmente não é o que se vê no caso da ação contra o ministro Marco Aurélio de Mello.

É um casuísmo dos mais descarados e exemplo dos mais nefastos a ação de ministros do Supremo Tribunal Federal para limitar os poderes do futuro presidente, Marco Aurélio de Mello. Ainda que fosse dos mais discutíveis o mérito do que ele defende, ao STF, como corte Suprema, cumpre concorrer para a institucionalização de procedimentos, o que significa descartar casuísmos e arranjos de última hora.

Se queriam os nobres juízes limitar os poderes do presidente de plantão, que o propusessem para o mandato daquele que vier a substituir Mello. Deveria ser o Supremo a primeira instituição do país a garantir que não se mudam as regras de um jogo que já começou. Mas não, em vez disso, agem os nobres ministros como uma corte que legisla ad hoc. Corte máxima do país, comporta-se como um grêmio estudantil a aplicar pequenos golpes nos adversários. Ademais, também no mérito do que está a defender, Marco Aurélio de Mello é digno de todos os aplausos.

Ora, o que estava a pregar o futuro presidente do Supremo? Em resumo, que os funcionários aposentados que exercem cargos de confiança sejam demitidos para abrir espaço para funcionários de carreira ainda na ativa. Uma conseqüência prática disso seria evitar o pagamento cumulativo do salário e da aposentadoria, o que supera, em alguns casos, o salário recebido pelos próprios juízes. A defesa de tal proposta levou alguns de seus pares a votar a limitação de seus poderes, numa atitude típica de espírito de corpo.

E eis que um mecanismo perverso é posto então em prática. Mello é tido por seus pares e por boa parte da imprensa como “um ministro polêmico”, uma forma disfarçada de dizer que nem sempre faz o que dele se espera. Mais: indicado pelo ex-presidente Fernando Collor, de quem é primo, é como se, independentemente de seus juízos, carregasse uma mácula de origem. Assim, as “plantações” na imprensa contra o ministro relevam menos o que ele diz e faz e mais o “quem ele é”, uma tentativa reles de desqualificação.

Ora, aqui e acolá, em tom quase choroso e altercando acerca de um humanismo para poucos eleitos, ministros se põem a lembrar que o secretário X ou o médico Y são da confiança da casa, que aí estão há muitos anos, como se à Corte Suprema do país cumprisse antes a defesa de seus próprios hábitos e costumes. Argumenta o ministro Carlos Velloso, atual presidente, em nota oficial, que o acúmulo de aposentadoria e salário em cargos de confiança não é ilegal. Ora, só faltava o STF estar a promover ilegalidades também… Ilegal não é. Ocorre que, mesmo dentro dos limites da legalidade, é possível fazer escolhas melhores do que outras, é possível agir ou em favor do aprimoramento das instituições ou contra ele, ou a favor da conservação de maus hábitos ou contra ela.

E este, o de manter privilégios de aposentados em detrimento de funcionários da ativa, é um desses maus hábitos. Já a mudança da regra ainda antes mesmo de assumir o ministro Mello a presidência do STF é desses atos que deveriam, em nome de uma moralidade que não está em nenhuma lei e em nenhum código, ser revogado, sem o que permanecerá sempre a suspeita de que os juízes, no caso em questão, estabeleceram uma regra que é geral para atender a interesses que são particulares, o que é sempre uma maneira perversa de fazer justiça.

De resto, o ministro Mello não pode nem mesmo ser acusado de estar a jogar para a platéia. É ele, por exemplo, um defensor da correção do salário do funcionalismo, de sorte que o teto possa chegar até R$ 21 mil. Num país marcado por uma espécie de udenismo persecutório contra o serviço público, não se pode acusar de ser esta uma proposta das mais populares. E, também ela, diga-se, dá o que pensar. Com que então um magistrado que atinge o ponto mais alto da carreira deve ter um teto salarial que hoje se equipara ao de muitos rábulas de porta de cadeia?

E sempre é bom lembrar que Mello defende um teto bastante mais elevado desde que teto de fato. Na prática, tal medida talvez resultasse em economia de recursos públicos, uma vez que o atual, na casa dos R$ 8.500, é acrescido das mais variadas formas de ganhos suplementares garantidos por leis menores. Esse é um dos casos em que, sem se considerar o mérito da opinião e o que ela significa, basta para que o ministro tenha sempre acrescido a seu nome o adjetivo “polêmico”.

Não se está aqui a defender um cavaleiro sem máculas contra o dragão da maldade. O ministro está sujeito a erros como qualquer pessoa. O que não pode, o que preocupa, o que constrange é que o STF, como instituição, decida-se por expedientes de urgência, ditados ao calor da hora, pensados para privilegiar uns poucos, punir um só e prejudicar a muitos.

Texto extraído do site Primeira Leitura

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