Continuação do voto

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8 de maio de 2001, 12h33

Assim, a precipitação na execução da pena imposta é ilegal e inconstitucional (art. 5o,LVII, C.F.), devendo ser corrigida e reparada por esse Egrégio Tribunal, pois o Paciente, ainda não foi intimado.” Relembro que o julgamento deste “habeas corpus” foi interrompido pelo meu pedido de vista, quando a Turma, por maioria de quatro votos, já havia concedido parcialmente a ordem, nos termos do voto do Ministro Relator “tão somente para anular o trânsito em julgado do acórdão condenatório” para que o réu, ora paciente, seja intimado do acórdão, pessoalmente. As alegações trazidas na impetração deste “habeas corpus”conduzem, de pronto, à firme idéia de que o ora paciente, Bento Gonçalves dos Santos, ex Prefeito de Triunfo, RS, é vítima de clamorosa injustiça. Leva todo jeito de ser um daqueles apanhados costumeiramente No bagrinhado nacional, com os quais o Ministério Público e o Judiciário são frequentemente usados pelas elites na incessante tarefa de manter entretida, nessa ilusão de democracia e justiça, a arquibancada em geral. (“Se trazes no bolso / a contravenção / muambas, baganas /e nem um tostão / a lei te vigia, / bandido infeliz / com seus olhos de raio-x; / Se vives nas sombras / frequenta porões / se tramas assaltos / ou revoluções / a lei te procura / amanhã de manhã / com seu faro de dobermann;/ E se definitivamente / a sociedade só tem desprezo / e horror / e mesmo nas galeras / és nocivo, és um estorvo, és um tumor / a lei fecha o livro / te pregam na cruz / depois chamam os urubús”. Chico Buarque de Holanda, “Ópera do Malandro”117 A “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque de Hollanda, fez sucesso no teatro, no cinema e também no disco, (Philips, 1979). Os versos aqui são do “Hino do Duran”, personagem que retrata o brasileiro comum, à margem de todo o processo econômico e político, tido por isso como marginal.7.) Mas porque algumas das alegações já não podem ser examinadas a estas alturas, por motivos estritamente técnico-burocrático-processuais, que eu não posso derrogar, quero ao menos arriscar, em favor do condenado por peculato de R$ 200,00 (duzentos reais), as preliminares a seguir: 1. Falta de justa causa para ação penal contra o ora paciente, Bento Gonçalves dos Santos, porque em nenhum momento, desde a denúncia ao término da instrução criminal, restou patenteada sua participação, direta ou indireta, no peculato pelo qual foi condenado. Aliás, não há justa causa para o processo contra o ora paciente, desde a denúncia, inepta em seus próprios termos. Os fatos descritos não tem nenhuma correlação com a conduta, em tese, criminosa, que lhe é imputada. A Prefeitura, onde o paciente ordenava despesas, não pagou à oficina. O dono da oficina disse que o valor da conta era tão ínfimo que se diluiu na inflação e planos econômicos e, por isso, desistiu de cobrá-la. A auditoria nas contas da oficina induz ao final a um pagamento feito pela Câmara Municipal, que também mandava seu carro oficial à mesma oficina. No mais, suposições; no mínimo, dúvidas. Nenhuma controvérsia, tudo convergente a favor do réu..

Nem mesmo as testemunhas arroladas pela acusação acusam o ora paciente da conduta criminosa descrita na denúncia, que fixou-se apenas na sua pessoa, único denunciado. Ao afastar a alegação de inépcia da denúncia, o Eminente Ministro Relator transcreve, em seu douto voto, Acórdão da Minha relatoria, também de outros ilustres Ministros, no sentido de que “a inépcia da denúncia não pode ser arguida após a prolação da sentença condenatória”. Isto mesmo. Ocorre que, consoante já resolvido até aqui por quatro dos cinco votos deste colegiado, a sentença condenatóriaainda não transitou em julgado. Ora, sentença sem transito em julgado não tem definitividade, ainda não é sentença, é apenas uma quase sentença, ainda dependente da autorização constitucional para se revestir de eficácia e, assim, então, ganhar o mundo da execução penal e demais consequências. Sentença sem transito em julgado não pode impedir a súplica do condenado clamando clemência, protestando inocência. É bom lembrar aqui o mandamento da Constituição da República Federativa do Brasil. Art.5º.LVII ? ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; Conheço do pedido e acolho as razões da defesa e, nos termos do CPP, Art.648, I, concedo a ordem para anular o processo, a partir da denúncia inclusive. Se vencido neste ponto, passo ao seguinte. 2. Defesa deficiente. Nem o acusado nem seus defensores foramintimados das audiências, que, ainda assim, se realizaram, num total de cinco (Fls.236, 219, 223/224, 228/229 e 248). Anoto que algumas dessas audiências foram marcadas em datas próximas às festas natalinas e de Ano Novo. (22.12.98 e 29.12.98). As outras em 15.01.99 e 22.01.99 (recesso do judiciário) e 23.06.99 (vésperas do novo recesso). A nomeação de advogado ad-hoc redundou em mera formalidade porque nada ganhou a defesa do acusado, ora paciente. O prejuízo resultou irreparável e a maior demonstração do prejuízo foi a condenação. Conforme sustenta aqui a defesa, “não houve auto defesa, nem defesa técnica e muito menos observância do contraditório na colheita da prova testemunhal da acusação, causando prejuízo não só aos interesses do paciente mas à própria instrução processual e à Justiça, como Valor e Instituição”. (Fl. 19) Nossa jurisprudência tem enfrentado questões como essa e resolvido que a falta de intimação do advogado do réu configuracerceamento de defesa. E que a defesa de forma deficiente, como neste caso, enseja nulidade, desde que demonstrado o efetivo prejuízo para o réu. As demonstrações de prejuízo para o réu, trazidas nestes autos, bastam.(Nesse sentido, dentre muitos: STJ – HC nº 10699-SP, Rel. Min. Vicente Leal, DJ 06.12.1999, pág. 00128; STJ ? HC 8537-RJ, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 11.10.1999. Pág. 00076). Assim, considerando que o acusado foi vítima de defesa deficiente, decorrendo disso prejuízos terríveis tanto que acabou condenado, e por nada ? denúncia inepta apontando peculato de R$ 200,00 (duzentos reais), concedo a ordem para anular o processo, a partir da primeira audiência, a de 22 de dezembro de 1998 (fl. 236), nos termos do CPP, Art. 648, VI. Se vencido novamente, resta-me, em reiteração de apelo ao sentimento de clemência que deve nutrir o bom senso de todo Juiz, invocar o princípio da analogia. Se nos delitos de descaminho temos considerado, pelo princípio da insignificância118 RESP nº 235151-PR, Rel.Min. Gilson Dipp, DJ 08.05.2000. 1.”Não é ilegal a decisão que mantém rejeição de denúncia em crime de descaminho de bens cujos impostos incidentes e devidos sejam iguais ou inferiores a R$ 1.000,00 (mil reais) ? valor de crédito dispensado pela Fazenda Pública. 2. Hipótese que caracteriza o delito de bagatela, ensejando, consequentemente, a aplicação do principio da insignificância.” / RESP nº 235.146-PR, Rel. Min.felix Fischer, julgado em 16.03.2000. 1.(…) 2. “Aplica-se o principio da insignificância se o valor do tributo elidido for inferior a R$ 1.000,00 (mil reais), mínimo exigido para a propositura de uma execução fiscal”. / RESP nº 221.498-PR, Rel. Min.José Arnaldo, DJ 17.04.2000. 1.”O ínfimo valor da mercadoria de procedência estrangeira apreendida autoriza a aplicação do principio da insignificância, descaracterizado o crime de descaminho”. / RESP nº167.9925-MG, Rel. Min. Cernicchiaro, DJ 01.02.1999, pag.242 ? 1.


“O principio da insignificância, não obstante a divergência doutrinária, quanto à sua natureza jurídica (excludente de tipicidade ou excludente de culpabilidade) significa a irrelevância juridica do resultado, afetando, materialmente, a estrutura do delito”.8, falta de justa causa para ações penais contra sacoleiras e sacoleiros do vai e vem do Paraguai, em valores de até R$ 1.000,00 (hum mil reais), por que não aqui, também, neste caso ? como já se resolveu, igualmente, nos previdenciários – em que o valor apurado equivale a apenas R$ 200,00 (duzentos reais)?

Concedo a ordem, ex-ofício, pelo princípio da insignificância, anulando o processo, desde o início e determinando a imediata soltura do réu, ora paciente, se por outro motivo não estiver preso.

É o voto.

E assim vamos seguindo com a nossa democracia. Se falta pão a muitos, circo a todos é o que não falta. Superior Tribunal de Justiça

ANEXOS Processo das Formigas11 João Francisco Lisboa, “Crônica do Brasil Colonial ? Apontamentos para a história do Maranhão”. “Dimensões do Brasil” vol. 2 (Coleção de Estudos Brasileiros). Editora Vozes Ltda., Rio ? RJ, 1976. Págs. 605/608.

(E assim, conta o Padre Manuel Bernardes, foram postas em damanda “aquelas irmãs formigas, perante o Tribunal da Divina Providência, assinalando-se-lhes Procuradores, assim por Parte deles autores, como delas rés, e o seu Prelado fosse o Juiz, que em nome da Suprema equidade, ouvisse o processado e determinasse a presente causa. Agradou a traça; e isto assim disposto, deu o Procurador dos Padres Piedosos libelo contra as formigas, e contestada por parte delas a demanda, veio articulando, que eles autores conformando-se com o seu instituto mendicante viviam de esmolas, ajuntando-se com grande trabalho seu pelas roças daquele país e que as formigas, animal de espírito totalmente oposto ao Evangelho, e por isso aborrecido de seu padre São Francisco, não faziam mais que roubá-los e não somente procediam como ladrões formigueiros, senão que com manifesta violência os pretendiam expelir de casa, arruinando-a, e portanto dessem razão de si, ou quando não, fossem todas mortas com algum ar pestilento, ou afogadas com alguma inundação, ou pelo menos exterminadas para sempre daquele distrito.

A isto veio contrariando o Procurador daquele negro e miúdo povo (das formigas), e alegou que elas, uma vez recebido o benefício da vida por seu Criador, tinham direito natural a conservá-la por aqueles meios, que o mesmo Senhor lhes ensinara. Item que na praxe e execução destes meios serviam ao Criador, dando aos homens as virtudes que lhes mandara; a saber: de prudência acautelando os futuros, e guardando para o tempo da necessidade (formica populus infirmus qui praeparat in messe cibum sibi – as formigas, povo sem força, que, durante o verão preparam suas provisões, Prov.30/25); ajuntando nesta vida merecimento para a eterna. São Jeronimo: formica dicitur strenuus quisque, et providus operarius, qui in presenti vita velut in a aestate, fructus justitiae quos in aerternum recipiet, sibi recondit ? de caridade ajudando uma às outras,quando a carga é maior que as forças: Pacis et concordiae vivum exemplum formica reliquit, quae suum comparem, forte plus justo oneratum, naturali quadam charitati alleviat, e também de religião e de piedade, dando sepultura aos mortos da sua espécie, como escreveu Plinio. Sepeliuntur inter se viventium solae, praeter homimem.(…) Item, que o trabalho que elas punham na sua obra era muito maior, respectivamente, que o deles autores em ajuntar, porque a carga muitas vezes era maior que o corpo e o ânimo que as forças. Item que, suposto que eles eram irmãos mais nobres e dignos, todavia diante de Deus também eram uma formigas e que a vantagem de seu grau nacional farto se descontava e abatia com haverem ofendido o Criador, não observando as regras da razão, como elas observam a natureza pelo que se faziam indignos de que aquelas criaturas os servissem, os acomodassem, pois maior infidelidade era neles defraudarem a glória de Deus por tantas vias, do que nelas furtarem a sua farinha. Item: que elas estavam de posse daquele sitio antes deles autores fundarem, e portanto não deviam ser dele esbulhadas; e da força que se lhes fizesse apelariam para a coroa da regalia do Criador, que tanto fez os pequenos como os grandes, e a cada espécie deputou o seu anjo conservador. E ultimamente concluíram que defendessem eles a sua casa de farinha, pelos modos humanos, que soubessem, porque isso não lhes tolhiam; porém que elas sem embargo haviam de continuar as suas diligências, pois do Senhor e não deles era a terra, e quanto esta cria: Domini est terra, et plenitudo ejus. Sobre esta contrariedade houve réplicas e contra réplicas, de sorte que o Procurador dos autores (as vítimas, que tiveram a farinha furtada pelas formigas) se viu apertado porque uma vez deduzida a contenda ao simples foro das criaturas, e abstraindo razões contemplativas com espirito de humildade não estavam as formigas destituídas de direito, pelo que o Juiz, vistos os autos, e pondo-se com ânimo sincero na equidade, que lhes pareceu mais racionável, deu sentença que os frades fossem obrigados a assinalar dentro da sua cerca sítio competente para vivenda das formigas, e que elas sob pena de excomunhão mudassem logo habitação, visto que ambas as partes podiam ficar acomodadas sem muito prejuízo, maiormente, porque estes religiosos tinham vindo ali (ao Maranhão) por obediência a semear o Grão Evangelho, e era digno o operário do seu sustento, e o das formigas podia consignar-se em outra parte, por meio de sua indústria, a menos custo. Lançada esta sentença, foi outro religioso de mandado do Juiz intimá-lo em nome de Deus àquele povo em voz sensível nas bocas dos formigueiros. Caso maravilhoso, e que mostra como se agradou deste requerimento aquele Supremo Senhor, de quem está escrito, que brinca com as criaturas: Ludens in orbe terrarum!


Imediatamente ‘Id nigrum complet agmen (Prov.), saíram a toda pressa milhares daqueles animalejos, que formando longas e grossas fileiras, demandaram em direitura o assinalado campo, deixando as antigas moradas; e livres de sua modestíssima opressão aqueles santos religiosos, que renderam a Deus as graças por tão admirável manifestação de seu poder e providência”.) ? (…) João Lisboa, que viu o processo no Arquivo do Convento, conta que faltavam as primeiras folhas “em que deviam vir a proposição da ação e a contrariedade das rés formigas”. (Informa que “a parte que se conservou começa pelo autuamento de uns embargos de contraditas com que as mesmas rés, por seu curador ad litem, vieram contra as testemunhas que haviam jurado por parte dos reverendos autores. Este autuamento tem a data de 17 de janeiro de 1713, entretanto que “A Nova Floresta”, de Bernardes, que já dá conta da sentença final, foi impressa em Lisboa (Portugal) em 1706. É de crer que o processo, começado alguns anos antes, estivesse paralisado até então. (…) Os artigos de contraditas consistem na alegação de serem as testemunhas dos autores Irmãos terceiros da ordem de São Francisco, e por isso suspeitas de parcialidade. Por despacho de 24 de janeiro, o Juiz que era o reverendo padre Vigário Geral, o licenciado José Teixeira de Morais, deprecou os embargos, houve as inquirições por abertas e públicas e mandou dar vistas às partes para dizerem afinal. Segue-se a inquirição das rés (as formigas), que se havia realizado em diversos dias do mês anterior.

Juraram por parte delas cinco testemunhas. Pelo depoimento do Capitão Urbano Rodrigues, de idade que disse ser de noventa e quatro anos, pouco mais ou menos, far-se-á idéia dos demais. Ei-lo: – “E perguntado ele testemunha pelo conteúdo na contrariedade das rés, disse ao primeiro artigo que sabe serem as rés umas criaturas, que não pode haver nelas malícia, por não terem uso da razão, e assim que não podem saber de bem nem de mal, e mais não disse deste nem do segundo. E do terceiro artigo disse ele testemunha que sabia serem as rés-formigas naturais da terra, e que nela sempre viveram espalhando-se por todos os lugares desta cidade e matos, e que no tempo em que os reverendos autores tem o seu convento ou cerca perto dele, conforme sua lembrança, e mais não disse deste, nem dos seguintes, etc”.

Passaram-se depois mais seis meses sem falar-se no feito, e requerendo os autores a reinstauração da instância perempta, o Vigário forâneo (sim, representava Deus e, como muitos hoje, era também Juiz), o licenciado Manuel Homem deferiu-lhes como pediam. Em virtude do seu despacho procedeu-se à diligência, que consta da seguinte certidão: “Eu escrivão do Eclesiástico, abaixo assinado, e sendo lá sua cerca citei as formigas em sua própria pessoa, por todo o conteúdo da petição e as formigas em sua própria pessoa, por todo conteúdo na petição e despacho acima, lendo-lhes tudo de verbo ad verbum, havendo-lhes nesta forma a citação por feita, em fé que passei a presente em S. Luís 19 de junho de 1714, Joseph Guntardo Beckmannz”.

Segue-se o termo de juramento aos Santos Evangelhos deferido a um novo curador ad litem dado às rés, e o termo de vista dada aos autores em 20 de junho. E aqui parou o processo sem mais ter andamento até hoje.

Posto que seja passado um lapso de quase cento e cinquenta anos (mais de trezentos, hoje), se, alegando os autores de um lado pertencerem a uma ordem mendicante, e as rés de outro serem pessoas desvairadas e miseráveis, invocassem o benefício da restituição, o processo poderia continuar. O caso é que achassem juiz que hoje, (em 1855), se quisesse prestar a essa sacrílega farsa.” II Sermão do Bom Ladrão22 Padre Antônio Vieira. Seleção e introdução de Frederico Barbosa. Landy Livraria Editora e

Distribuidora Ltda. SP ? SP. 2000. No Sermão do Bom Ladrão, o Padre Antonio Vieira não só defende que todo ladrão deve restituir ao Estado ou ao particular o que furtou. Denuncia também a hipocrisia de reis e de príncipes no lidar com a corrupção no poder público.

(“Todos devem imitar o Rei dos Reis; e todos tem muito o que aprender nesta última ação da sua vida. Pediu o bom ladrão a Cristo, que se lembrasse dele no seu Reino. E a lembrança que o Senhor teve dele foi que ambos se vissem juntos no Paraíso. Esta é a lembrança que devem ter todos os reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são ouvidos mais de perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo. Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis.(…)

Levarem os reis consigo ao Paraíso os ladrões, não só não é companhia indecente mas ação tão gloriosa e verdadeiramente real, que com ela coroou e provou o mesmo Cristo a verdade do seu reinado, tanto que admitiu na cruz o título de rei. Mas o que vemos praticarem os reinos do mundo, é tanto pelo contrário, que em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao Inferno. (…)


Se o alheio que se tomou ou retém, se pode restituir e não se restitui, a penitência deste e dos outros pecados não é verdadeira penitência, senão simulada e fingida, porque se não perdoa sem se restituir o roubado, quando quem roubou tem possibilidade de o restituir. Esta única exceção da regra foi a felicidade do bom ladrão, e esta a razão por que ele se salvou, e também o mau (ladrão) se pudera salvar sem restituírem. Como ambos saíram do naufrágio desta vida despidos e pegados a um pau, só esta sua extrema pobreza os podia absolver dos latrocínios que tinham cometido, porque impossibilitados à restituição, ficavam desobrigados dela. Porém se o bom ladrão tivera bens com que restituir, ou em todo, ou em parte o que roubou, toda sua fé e toda sua penitência tão celebrada dos Santos, não bastara a o salvar, se não restituísse. Duas coisas lhe faltavam a este venturoso homem para se salvar, uma como bom ladrão que tinha sido, outra como cristão que começava a ser. (…) Vejam agora, de caminho, os que roubaram na vida; e nem na vida nem na morte restituíram, antes da morte testaram de muitos bens, e deixaram grossas heranças a seus sucessores; vejam onde irão, ou terão ido suas almas, e se se podiam salvar.

Era tão rigoroso esse preceito da restituição na Lei velha, que se o que furtou não tinha com que restituir mandava Deus que fosse vendido, e restituísse com o preço de si mesmo. De modo que enquanto um homem era seu, e possuidor da sua liberdade, posto que não tivesse outra coisa, até que não vendesse a própria pessoa, e restituísse o que podia com o preço de si mesmo, não o julgava a Lei por impossibilitado à restituição, nem o desobrigaria dela. Que uma tal Lei fosse justa, não se pode duvidar porque era a Lei de Deus, posto que o mesmo Deus na lei da graça derrogou esta circunstância de rigor, que era o direito positivo; porém na lei natural, que é indispensável, e manda restituir a quem pode, e tem com que, tão fora esteve de variar ou moderar coisa alguma, que nem o mesmo Cristo na cruz prometeria o Paraíso ao ladrão, em tal caso, sem que primeiro restituísse. Ponhamos outro ladrão à vista dele, e vejamos admiravelmente no juízo do mesmo Cristo a diferença de um caso a outro.

Assim como Cristo, Senhor nosso, disse a Dimas: Hoje serás comigo no Paraíso; assim disse a Zaqueu: Hoje entrou a salvação na tua casa. Mas o que muito se deve notar é que a Dimas prometeu-lhe a salvação logo, e a Zaqueu não logo, senão muito depois. E por que, se ambos eram ladrões, e ambos convertidos? Porque Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir o que roubara; Zaqueu era ladrão rico, e tinha muito com que restituir. (…) Dimas era ladrão condenado e se ele fora rico, claro está que não havia de chegar à forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado, e a sua mesma riqueza era a imunidade que tinha para roubar sem castigo, e ainda sem culpa.(Leia-se impunidade) E como Dimas era ladrão pobre, e não tinha com que restituir, também não tinha impedimento a sua salvação, e por isso Cristo lha concedeu no mesmo momento. Pelo contrário: Zaqueu como era ladrão rico, e tinha muito com que restituir, não lhe podia Cristo segurar a salvação antes que restituísse, e por isso lhe dilatou a promessa. (…)

O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz: que entre os tais reinos e as covas dos ladrões (a que o santo chama de latrocínios) só há uma diferença. E qual é ? Que os reinos são latrocínios ou ladroeiras grandes e os latrocínios ou ladroeiras são reinos pequenos. (…)

Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar as Índias; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andarem em tão mau oficio; porém ele que não era o medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, Senhor, que eu porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador?” Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas; o roubar com muito (poder) faz os Alexandres. (…) Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos tem o mesmo lugar, merecem o mesmo nome. (…)

O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá mas também das partes d’aquem, se usa geralmente a mesma conjugação. Conjugam por todos os modos o verbo rapio; porque furtam por todos os modos da arte, não falando em outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato, nem Despautério. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhe apontem e mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo.


Furtam pelo modo imperativo, porque como tem o mero e misto império, todo ele implicam despoticamente às execuções da rapina.

Furtam pelo modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os que não mandam não são aceitos.

Furtam pelo modo optativo porque desejam quanto lhes parecem bem; e gabando as coisas desejadas aos donos delas, por cortesia sem vontade as fazem suas.

Furtam pelo modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros da ganância.

Furtam pelo modo potencial, porque sem pretexto, nem cerimônia usam de potência.

Furtam pelo modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as permissões. (A gênese da propina).

Furtam pelo modo infinitivo, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.

Estes mesmos modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua, as segundas os seus criados e as terceiras, quantas para isso tem industrias e consciências.

Furtam juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem quando dá de si o triénio; e para incluírem no presente o pretérito e futuro, do pretérito desenterram crimes, de que vendem os perdões e dívidas esquecidas, de que se pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os contratos, com que tudo o caído, e não caído lhe vem cair nas mãos.

Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais que perfeitos, e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse. Em suma que o resumo de toda essa rapante conjugação vem a ser supino do mesmo verbo: furtar para furtar.

E quando eles tem conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportando toda a passiva, eles, como se o tiveram feito grandes serviços, tornam carregados dos despojos e ricos; e elas ficam roubadas, e consumidas.

É certo que os reis não querem isto, antes mandam em seus regimentos tudo o contrário; mas como as patentes se dão aos gramáticos destas conjugações tão peritos, ou tão cadimos nelas; que outros efeitos se podem esperar dos seus governos? Cada patente destas em própria significação vem a ser uma licença geral in scriptis, ou um passaporte para furtar.(…)

O que só digo e sei, por teologia certa, é, que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: os teus príncipes são companheiros de ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões porque os consentem; são companheiros de ladrões porque talvez o defendem; e finalmente seus companheiros, porque acompanham e hão de acompanhar ao Inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo. (…) E tudo porque há príncipes que correm com ladrões e concorrem com eles.

Correm com eles porque os admitem à sua familiaridade e graça; e concorrem com eles porque dando-lhes autoridade e jurisdições, concorrem para o que eles furtam. Se estes ladrões foram ocultos, e o que corre e concorre com eles não os conhecera, alguma desculpa tinha; mas se eles são ladrões públicos e conhecidos, se roubam sem rebuço e cara descoberta, se todos os vêem roubar, e o mesmo que o consente e apoia, o está vendo: que desculpa pode Ter diante de Deus e do mundo?

Cuidas tu, ó injusto, diz Deus, que hei de ser semelhante a ti, e que assim como tu dissimulas com esses ladrões, hei eu de dissimular contigo? Enganas-te. Dessas mesmas ladroíces, que tu vês e consentes, hei de fazer um espelho em que te vejas; e quando vires que és tão réu de todos esses furtos, como os mesmos ladrões, porque não os impedes; e mais que os mesmos ladrões, porque tens obrigação jurada de os impedir, então conhecerás que tanto e mais justamente que a eles te condeno ao Inferno. (…)

Grande lástima será naquele dia (do Juízo Final) ver como os ladrões levam consigo muitos reis e se quiserem, podem levar consigo os ladrões ao Paraíso. (…) O bom ladrão pediu a Cristo, como a rei, que se lembrasse dele no seu reino; e o mau ladrão, que lhe pediu ? Se sois o rei prometido, como cré meu companheiro, salvai-nos a vós e a nós. Isto pediu o mau ladrão a Cristo, e o mesmo devem pedir todos os ladrões a seu rei, posto que sejam tão maus como o mau ladrão.. (…)

O que costumam a furtar nestes ofícios e governos os ladrões, de que falamos, ou é a fazenda real, ou a de particulares: e uma e outra tem obrigação de restituir depois de roubada, não só os ladrões que a roubaram, senão também os reis: ou seja porque dissimularam e consentiram os furtos, quando se faziam, ou somente (que isso basta) por serem sabedores deles depois de feitos.


E aqui se deve advertir uma notável diferença entre a fazenda dos reis, e as dos particulares. Os particulares se lhes roubam a sua fazenda, não só não são obrigados à restituição, antes terão nisso grande merecimento se o levarem com paciência, e podem perdoar o furto a quem os roubou. Os reis são de muito pior condição nesta parte, porque depois de roubados tem eles obrigação de restituir a própria fazenda roubada, nem podem demitir, ou perdoar os que os roubaram. A razão da diferença é porque a fazenda do particular é sua, a do rei não é sua, senão da república. (…)

Se trazem muito, como ordinariamente trazem, já se sabe que foi adquirido contra a lei de Deus, ou contra as leis, e regimentos reais, e por qualquer desta cabeças, ou por ambas injustamente. Assim se tiram da Índia quinhentos mil cruzados, de Angola duzentos, e ate do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele. E que se ha de fazer desta fazenda ? Aplicá-la o rei à sua alma e às dos que roubaram, para que umas e outras se salvem.

Dos governadores que mandava as diversas províncias o Imperador Maximino, se dizia com galante e bem apropriada semelhança, que eram esponjas. A traça ou astucia, com que usava destes instrumentos, era toda encaminhada a fartar a sede da sua cobiça. Porque eles, como esponjas, chupavam as províncias que governavam, tudo como podiam; e o imperador, quando tornavam, espremia as esponjas, e tomava para o fisco real quanto tinham roubado, com que ele ficava rico e eles castigados.

Uma coisa fazia mal a esse imperador, outra bem, e faltava-lhe a melhor. Em mandar governadores às províncias, homens que fossem esponjas, fazia mal: em espremer as esponjas quando tornavam, e ele confiscar o que traziam, fazia bem justamente; mas faltava-lhe a melhor como injusto e tirano que era, porque tudo o que espremia das esponjas, não o havia de tomar para si, senão restitui-lo às mesmas províncias donde se tinha roubado. Isto é o que são obrigados a fazer em consciência os reis que se desejam salvar, e não cuidar que satisfazem ao zelo e obrigação da justiça como mandar prender em um castelo o que roubou a cidade, a província, o Estado.

Que importa, que por alguns dias, ou meses, se lhe dê esta sombra de castigo, se passados eles se vai lograr do que trouxe roubado, e os que padeceram os danos não são restituídos?

Há nesta, que parece justiça, um engano gravíssimo, com que nem o castigado, nem o que castiga, se livram da condenação eterna; e para que se entenda, ou queira entender este engano, é necessário que se declare.

Quem tomou o alheio fica sujeito a duas satisfações: à pena da lei e à restituição do que tomou. Na pena pode dispensar o rei como legislador; na restituição não pode porque é indispensável.

E obra-se tanto pelo contrário, ainda quando se faz, ou se cuida que se faz justiça, que só se executa a pena, ou alguma parte da pena, e a restituição não lembra, nem se faz dela caso. (…) Se para satisfazer a restituição, basta restituir outro tanto quanto foi o que se tomou. E depois de resolver que basta, porque a restituição é ato de justiça, e a justiça consiste em igualdade, argumento contra a mesma resolução com a lei do capitulo vinte e dois do Êxodo, em que Deus mandava, que quem furtasse um boi, restituísse cinco: logo, ou não basta restituir tanto por tanto, senão muito mais do que se furtou; ou se basta, como está resoluto, de que modo se há de entender esta lei? Há de se entende-la, diz o Santo (Tomás de Aquino), distinguindo na mesma lei duas partes; uma enquanto lei natural, pelo que pertence à restituição, e outra enquanto lei positiva para castigar o crime de furto, acrescentou em pena mais quatro tantos e por isso manda pagar cinco por um.

Há-se porém de advertir que entre a restituição e a pena há uma grande diferença; porque à satisfação da pena não está obrigado o criminoso, antes da sentença; porém à restituição do que roubou, ainda que não o sentenciem, nem obriguem, estará sempre obrigado.

Daqui se vê claramente o manifesto engano ainda dessa pouca justiça, em que poucas vezes se usa. Prende-se o que roubou e mete-se-lhe em livramento. Mas o que segue daí ? O preso que tanto se livrou da pena do crime fica muito contente: o rei cuida que satisfaz à obrigação da justiça, e ainda se não tem feito nada, porque ambos ficam obrigados à restituição dos mesmos roubos, sob pena de não se poderem salvar; o réu porque não restitui, e o rei porque não o faz restituir.

Tire pois o rei executivamente a fazenda de todos os que a roubaram, e faça as restituições por si mesmo, pois eles não a fazem, nem hão de fazer, e deste modo (que não há nem pode haver outro) em vez de os ladrões levarem os reis para o Inferno, como fazem, os reis levarão os ladrões ao Paraíso, como fez Cristo. (…)”.

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