Plano de racionamento

Conheça a defesa do racionamento apresentada pelo governo ao STF

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27 de junho de 2001, 0h00

O Supremo Tribunal Federal suspendeu o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade, depois da sustentação oral do advogado-geral da União, Gilmar Mendes (leia a defesa do governo ao final desta notícia). Nesta quinta-feira (28/6), o julgamento será retomado.

Entre as hipóteses possíveis, cogita-se de que os ministros possam aceitar a adoção de sobretaxa na tarifação da energia elétrica, mas não o corte de fornecimento para os consumidores que não atingirem as metas propostas pelo governo.

Como se trata, ainda, de julgamento liminar, o plenário pode adiar a decisão, negando o pedido que só seria respondido no julgamento de mérito, em agosto. Como o dano irreparável estaria no corte de fornecimento de energia (já que a sobretaxa pode ser devolvida) há a possibilidade de suspender-se o corte e adiar a decisão em relação à sobretaxa.

O governo, no entanto, aposta que a maioria dos ministros declare a constitucionalidade de todos os artigos da Medida Provisória.

Logo na abertura da sessão desta quarta-feira, o relator, ministro Néri da Silveira, propôs que o exame da matéria começasse pela Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 9 e depois envolvesse as Ações Diretas de Inconstitucionalidade. O plenário aprovou a proposta.

Os ministros examinarão, basicamente, os artigos 14 a 18, que prevêem a sobretaxa de 50 ou 200% sobre a tarifação da energia e o corte de fornecimento para os consumidores que não atingirem a meta de contenção.

Embora haja três Adins a serem apreciadas, assim que for aprovado um posicionamento a respeito da ADC, estará definida a questão.

Mais complexa que a questão jurídica, contudo, é a situação política envolvida. Ao mesmo tempo em que apostou no “tudo ou nada”, ao propor a ADC, o Palácio do Planalto transferiu a responsabilidade pelo equacionamento da crise ao STF.

Depois da apreciação da ADC, os ministros examinarão as Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra o Plano (impetradas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, pelo Partido Social Liberal e pelos partidos de oposição).

Por cautela, o presidente do STF já convocou sessão extraordinária para a sexta-feira. A expectativa é a de que, ainda que haja pedido de vista, adote-se a “vista em mesa”, ou seja, o exame é feito dentro da própria sessão.

Leia a defesa da Medida Provisória nº 2.152-2 feita pelo advogado-geral da União:

Sustentação Oral do ministro Gilmar Mendes

Senhor Presidente, Senhor Relator, Senhores Ministros,

A UNIÃO, por seu Advogado-Geral, volta a essa Tribuna para manifestar-se acerca da constitucionalidade da Medida Provisória n.º 2.152-2, de 2001.

ADC: As incontáveis decisões anexadas à inicial e a aditamentos comprovam, à exaustão, o requisito da controvérsia constitucional relevante, havendo decisões contraditórias e que abarcam todos os dispositivos sob exame.

Como sabido, depara-se a República com uma situação hidrológica crítica.

Ao final de 2000, previa o Operador Nacional do Sistema Elétrico para o ano de 2001 condições hidrológicas mais favoráveis que aquelas previstas, ao final de 1999, para o ano de 2000. Tal quadro previsto não se confirmou, contudo.

No início de 2001, verificaram-se chuvas no Sul, até São Paulo, deslocando-se então as frentes frias para o oceano.

Houve, assim, poucas chuvas em Minas Gerais e Leste de Goiás, onde estão os grandes reservatórios do Sudeste/Centro-Oeste e as nascentes dos rios São Francisco e Tocantins, dos quais dependem as usinas que atendem ao Norte e ao Nordeste.

Deu-se a seguir um agravamento da situação, nos meses de março a abril de 2001.

Considerando o Histórico de Energia Natural Afluente – ENA, que se estende de 1931 a 2000, ou seja, abrange um período de 70 anos, constata-se que:

a) no subsistema Sudeste/Centro-Oeste, o valor alcançado de 70% da MLT (Média de Longo Prazo) é o 11º pior, contando com 86% de ocorrência de valores superiores;

b) na bacia do Rio Grande, o valor de 48% da MLT é o 2º pior, com 99% de ocorrência de valores superiores;

c) na bacia do Rio Paranaíba, o valor de 60% da MLT é o 7º pior, com 91% de ocorrência de valores superiores;

d) no subsistema Nordeste, o valor verificado, de 37% da MLT realizado em março/abril é o mais crítico do histórico, sendo ainda pior que o do ano de 1971, quando foi de 40% da MLT.

Essa situação hidrológica crítica instituiu uma circunstância de escassez do bem energia elétrica, revelando-se um imperativo factual que impossibilita, em absoluto, a manutenção dos níveis atuais de consumo de energia elétrica.

Se se tem presente que a energia elétrica é um bem de uso comum ou um recurso comum, parece evidente que, em condições de escassez, seu consumo precisa vir a ser administrado. Nesse contexto, a redução do consumo de energia elétrica constitui medida adotada no interesse de todos e, em verdade, um modelo de proteção do consumidor frugal em face do dano agregado decorrente de um eventual comportamento egoístico e anti-solidário do consumidor perdulário. Um tal contexto de escassez determina, portanto, seja entendido como serviço adequado aquele que assegura, de modo planejado, a manutenção e a universalização do consumo ainda que e necessariamente em níveis inferiores. Ao contrário do que alegaram alguns, um programa de redução do consumo opera, em verdade, em defesa dos usuários do serviço – sobretudo dos pequenos consumidores.


Para fazer frente a tais circunstâncias, instituiu-se o Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica firmado em três instrumentos básicos: 1) a fixação de metas de consumo decorrentes da atual situação hidrológica crítica; 2) o pagamento de uma tarifa especial por aqueles que ultrapassarem a respectiva meta e 3) a suspensão do fornecimento de energia elétrica na hipótese de descumprimento reincidente da meta. Analisemos cada um desses instrumentos.

META

Para o cálculo da meta de cada consumidor, tomou-se como parâmetro fundamental o consumo verificado nos meses de maio, junho e julho do ano 2000, para se determinar, no art. 14 da Medida Provisória, que os consumidores residenciais cuja média mensal seja superior a 100 kWh deverão observar a meta de 80% (oitenta por cento) da média do consumo mensal verificados naqueles meses.

O montante de 20% (vinte por cento) estabelecido como meta de redução do consumo de energia elétrica funda-se em análises técnicas tais como aquela integrante do Relatório do Operador Nacional do Sistema – ONS, anexado a Memorial a todos distribuído, que assim assevera, na folha 27: “Este montante é considerado como necessário a fim de que sejam respeitados os níveis de segurança do final do período seco, previamente estabelecidos, de modo a se assegurar a controlabilidade do sistema”.

Foram adotados os meses de maio, junho e julho de 2000 por corresponderem ao período semelhante àquele em que se iniciaria o programa de redução de consumo de energia elétrica, constituindo três meses um período minimamente representativo do consumo de cada unidade.

Como se tal não bastasse, introduziu-se na MP 2.152-2 autorização para que as concessionárias considerassem os consumidores sujeitos a situações excepcionais. Obedecendo esse imperativo de proporcionalidade em concreto das medidas ora adotadas, editaram-se as Resoluções nos 4, 5 e 16 da Câmara de Gestão da Crise, que prevêem uma série de situações especiais, tais como impossibilidade de cálculo, consumos atípicos ou extraordinariamente reduzidos, mudanças de endereço, novas ligações, hospitais, escolas, serviço público, unidades hospitalares domiciliares, férias e a cláusula geral que assegura revisão das metas mediante procedimento prévio instaurado por meio de pedido do consumidor à concessionária a ser oferecido até 15 de julho de 2001. Cuida-se, destarte, de um notável esforço de acomodação a situações particulares, o que legitima o imperativo de conceder-se capacidade regulatória à Câmara de Gestão da Crise.

A definição de metas de consumo consiste uma aposta na autogestão da redução do consumo pelo próprio consumidor, revelando-se as medidas compulsórias como instrumento absolutamente subsidiário – embora rigorosamente indispensável.

TARIFA

Nos termos do inciso III do parágrafo único do art. 175 da Constituição, o poder concedente encontra-se autorizado a introduzir, por lei, uma “política tarifária”, o que, como se sabe, comporta eleições entre distintos modelos de tarifação.

Segundo a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, será tarifa todo o valor que se destine a 1) remunerar a concessionária e 2) fazer frente aos custos do serviço – ainda que se trate de custos futuros, tais como investimentos. É conhecida de todos a a claríssima lição do Min. Moreira Alves no RE nº 117.315/RS (RTJ 132/888).

A ninguém deveria surpreender a circunstância de que, em situação de escassez, o preço de determinado bem eleva-se – o que constitui um axioma fundamental do pensamento econômico.

Nos termos do art. 20 da MP nº 2.152-2, destina-se a tarifa especial a:

1) remunerar custos administrativos das concessionárias acrescidos com os procedimentos de racionamento: elaboração de nova contabilidade, revisão dos sistemas de software e de contabilidade, ampliação de call center, ampliação das equipes de trabalho externo e visitação, etc.

2) remunerar o bônus a ser creditado nas contas dos consumidores que economizarem para além da própria meta de consumo. Observe-se que a concessão de um bônus não afasta a natureza tarifária da tarifa especial introduzida. Com efeito, os recursos não se destinam ao consumidor, mas são incorporados pela concessionária – a prova definitiva de que não se subtraem à arrecadação da concessionária reside no fato de que o limite para o bônus concedido encontra-se exatamente no valor da conta mensal, inexistindo hipótese de percepção de valores monetários pelos consumidores poupadores. Em verdade, a concessão de bônus constitui mera operação contábil da concessionária que se remunera integralmente com todo o valor arrecadado das tarifas normais e especiais, redistribuindo a remuneração dos custos de seu serviço sobre os consumidores que inobservam a meta de consumo. Cuida-se, portanto e tão-somente, de uma nova política tarifária fortemente assentada em uma idéia de justiça social e em um imperativo factual. O imperativo factual decorre da necessidade de reduzir, em média, o consumo em 20% e assim assegurar que exista uma poupança ainda maior para o fim de compensar a poupança insuficiente dos consumidores anti-solidários. A esse imperativo factual, soma-se a idéia de justiça social consistente no fato básico de que a poupança do consumidor frugal a ser utilizada pelo consumidor anti-solidário exige a remuneração da poupança do consumidor frugal de modo a transferir custo da sua poupança para o consumidor perdulário. Com efeito, o consumidor que poupa além da própria meta está prestando um serviço ao consumidor perdulário e é absolutamente evidente a razoabilidade de que este remunere a poupança daquele por essa disponibilização de poupança. Importa observar, contudo, que os valores arrecadados jamais são destinados ao consumidor que poupa, mas antes à concessionária que redistribui seus custos no sentido de onerar o consumidor perdulário;


3) por fim, eventuais recursos remanescentes serão amplamente compensados em reajustes tarifários futuros, o que revela novamente a destinação da tarifa para remunerar a concessionária pelos custos do serviço.

No que toca ao acréscimo de custos das concessionárias, observe-se ainda que, em condições de escassez, as próprias distribuidoras vêem seus custos elevados. Com efeito, em condições de escassez, as geradoras não se encontrarão em condições de fornecer às distribuidoras toda a energia entre elas contratada – observando-se que os contratos de fornecimento entre geradora e distribuidora autorizam tal redução. Assim, as distribuidoras, para continuar a fornecer energia aos consumidores finais, ver-se-ão obrigadas a comprar a energia excedente àquela fornecida pelas geradoras no denominado Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE. Nesse mercado, o valor da energia é até 1000% superior àquele praticado nos contratos de fornecimento regular entre geradoras e distribuidoras. Nessa medida, é evidente o aumento dos custos das distribuidoras a justificar a criação da tarifa especial e legitimar a sua destinação.

Essa circunstância desfaz, assim, outro mito. Com efeito, já se afirmou que os percentuais em que introduzida a tarifa especial seriam excessivos e desproporcionais. Tal alegação é absolutamente carente de qualquer embasamento técnico ou empírico. Em verdade, os consumidores não-residenciais (isto é, industriais, comerciais, etc.) encontram-se sujeitos – caso excedam a meta – a pagar não a tarifa especial de 50% ou 200%, mas sim o preço da energia elétrica praticado no já referido Mercado Atacadista de Energia Elétrica que varia entre 400% e 1000% acima dos preços normalmente contratados. Parece evidente, destarte, que o custo da energia excedente é em muito superior aos 50% ou 200% da tarifa especial aplicável aos consumidores residenciais, o que demonstra não só a manifesta razoabilidade e isonomia de tal tarifa especial como também e sobretudo seu caráter de preço ainda amplamente subsidiado em favor dos consumidores residenciais.

A isso, acrescente-se que nas experiências de racionamento da década de 1980, introduziram-se tarifas especiais que chegaram a até 2.500% e que sequer foram estabelecidas por lei, mas antes e tão-somente por Portarias do DNAEE.

Segundo o art. 175 da Constituição Federal, a tradição de nosso direito e mesmo a Lei nº 9.427, o valor da tarifa jamais integrou ato jurídico perfeito, quedando sempre alterável unilateralmente pelo poder concedente e ainda hoje o é mesmo inexistindo um programa de racionamento.

Observe-se ainda que a jurisprudência do STJ já legitimou a elevação de tarifa em condições de racionamento pela voz autorizada do Ministro Ilmar Galvão (RESP nº 8.564/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 11/11/1991, p. 16140).

Por fim, também a doutrina, pela voz de Marçal Justen Filho autoriza expressamente a tarifação extrafiscal para fins de racionamento como legítima e estrita política tarifária levada a cabo pelo poder concedente.

CORTE

O último pilar do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica reside na possibilidade subsidiária de suspensão do fornecimento de energia elétrica.

Talvez seja essa a mais incompreendida das medidas adotadas.

Como se disse de início, a aposta inicial do Programa reside na autogestão individual da redução do consumo de energia elétrica segundo a eleição de consumos prioritários pelo próprio consumidor. Já o corte corresponde a uma subsidiária e indispensável redução compulsória do consumo de energia elétrica para aqueles que não a levarem a cabo de modo voluntário. Em verdade, ao suspender o fornecimento de energia elétrica para o consumidor perdulário, a concessionária administra um conflito entre agentes privados e opera em defesa do consumidor poupador. Com efeito, caso não se promova a redução compulsória do indivíduo incapaz de administrar o próprio consumo, a conseqüência será o corte inevitável do fornecimento para todos os indivíduos, inclusive para aqueles que observaram as respectivas metas de consumo. Nessa hipótese, perpetrar-se-ia a máxima injustiça: aquele que poupou seria atingido pelo apagão geral e não administrado decorrente do comportamento anti-solidário do consumidor perdulário. A suspensão individual do fornecimento ao consumidor perdulário constitui, destarte, medida de justiça social e de defesa do consumidor frugal.

Em verdade, a suspensão do fornecimento de energia elétrica é a única maneira de trazer o anti-solidário, o anti-social ao programa.

De fato, a própria jurisprudência do STF, pela voz autorizada do Ministro Evandro Lins e Silva, legitima a supensão do fornecimento de energia elétrica:

“ENERGIA ELÉTRICA – RACIONAMENTO DEVIDO A ESCASSEZ DE ENERGIA.

Ausência de direito líqüido e certo para compelir a concessionária a consentir no aumento de consumo. Recurso de mandado de segurança não provido.” (RMS nº 16.094-MG, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 27/05/66, p. 01786).

O caráter subsidiário da suspensão do fornecimento de energia elétrica revela-se no fato de que, após a primeira inobservância da meta, não há ainda corte, mas tão-somente advertência. O corte somente se dará após a segunda inobservância da meta.

A isso, acrescente-se que o corte é temporário, alcançando, no máximo, três dias na primeira suspensão e, no máximo, 6 em eventual suspensão subseqüente.

Ademais, o eventual corte dar-se-á em ordem decrescente de desvio absoluto, repito, absoluto, da meta, o que reduz em muito a probabilidade do corte de fornecimento a pequenos consumidores.

A duração máxima do corte temporário e a preservação dos pequenos consumidores, além de medida isonômica, afastam o caráter punitivo do corte, que se destina tão-somente a promover a inexorável redução de consumo e não a sancionar quem quer que seja.

Observe-se, por fim, que a ampla possibilidade de revisão das metas fixadas concedida aos consumidores constitui um devido processo legal prévio à fixação da meta e assim legitima sua observância compulsória.

Em atenção ao princípio da proporcionalidade, observe-se, por fim, que a alternativa ao corte individual é o colapso geral e não administrado, o que, do ponto de vista individual, é a maior das injustiças e, do ponto de vista coletivo, o maior dos males.

CONCLUSÃO

ADC: Confia, destarte, a União no reconhecimento da procedência dos pedidos postos na presente Ação, concedendo-se a liminar requerida.

ADIN: Confia, destarte, a União no reconhecimento da improcedência dos pedidos postos na presente Ação, denegando-se a liminar requerida.

Muito obrigado.

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