Relação de consumo

Plano de saúde não pode eximir-se de dever, diz advogada.

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12 de junho de 2001, 0h00

Em fiel concordância com a observação do notável Ministro Ruy Rosado Aguiar que “…a previdência privada assume a cada dia maior importância no país. As dificuldades encontradas pela Previdência Social para atuação eficaz no âmbito da saúde têm levado grande número de pessoas à proteção complementar na área da previdência privada, que hoje já atinge a 35 milhões de pessoa, das quais 28 milhões são ligadas a empresas.” e como conseqüência da precariedade que vem sendo vítima a saúde pública, a grande maioria da população transfere sua saúde e sua vida a uma das 900 empresas que prestam serviço de prevenção e controle das doenças a que estamos todos sujeitos.

Hoje, a associação a um serviço de saúde não mais é objetivo inatingível. Cada vez mais se constata o crescimento progressivo dos serviços de saúde reformulando seus “planos” ou “seguros” a fim de atingir todas as classes sociais, proporcionando a seus usuários atendimento médico-hospitalar, odontológico e laboratorial em todos os níveis e orçamentos.

E enganam-se os que pensam que estas empresas podem estar em processo de falência ao reduzir os custos de seus serviços porque, com isto, facilitam a agregação de outros milhões de consumidores.

Uma das grandes estratégias para a conquista destes novos associados é o benefício, a eles possibilitados, do abatimento do valor pago, mensalmente, ao fornecedor de serviço de saúde, nas declarações do Imposto de Renda. Em decorrência, estas empresas logram o status de filantrópicas sendo-lhes permitido usufruir isenções tributárias.

A Diferença entre “seguro” e “plano” de saúde e a relação de consumo, entre estas empresas e o destinatário final, através dos contratos de saúde.

Com verdadeiro brilhantismo e clareza, o Procurador de Justiça e Coordenador da Defesa do Consumidor do Ministério Público de Pernambuco, Dr. Nelson Santiago Reis, em seu artigo O Consumidor e os Seguros ou Planos de Saúde, difere ambos serviços ao classificar os “seguros de saúde” como sendo os serviços fiscalizados pela SUSEP – Superintendência de Seguros Privados, no qual os segurados têm livre escolha sobre os médicos, hospitais e laboratórios pelos quais e nos quais desejam ser atendidos.

Já os “planos de saúde” não são fiscalizados pelo Órgão acima mencionado, ficando o associado restrito aos profissionais e estabelecimentos credenciados pela Empresa.

Em quaisquer dos serviços contratados, constata-se uma relação de consumo onde a empresa propõe cobertura ao tratamento das enfermidades diagnosticadas e, em contraprestação, compromete-se ao pagamento mensal de parcelas que variam quanto a quantia cobrada.

É indiscutível esta relação jurídica de consumo onde os “seguros” e os “planos” de saúde são fornecedores de serviços (incluídos, assim, no art. 3, parágrafo 2º do CDC) e os “segurados” e os “associados” são consumidores finais destes serviços, conforme o art. 2º do mesmo diploma legal.

As decisões favoráveis ao consumidor antes mesmo da vigência do Código de Defesa do Consumidor.

Reconhecendo-se o ser humano, dos séculos XX e XXI, como representante dos direitos fundamentais de quarta geração, em que a sociedade vive com base no modelo de associativismo, caracterizado pelo consumo crescente de produtos e serviços, e, devido ao trabalho quase “hipnótico” do marketing, a Justiça não pode ficar cega à posição de força imposta na relação de consumo pelo fornecedor, em face à vulnerabilidade do consumidor.

Carente de informações sobre qualidade, preço, crédito e técnica dos produtos e serviços, ou, como já caracterizado “hipossuficiente”, o consumidor vê-se, através do CDC, “em tese”, amparado, enquanto o futuro aproxima-se não “a passos”, mas sim “a jato”.

Antes mesmo da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, ou até mesmo antes da Constituição Federal de 1988, os consumidores já eram “protegidos” em face dos abusos praticados pelas empresas de seguro de saúde.

Não necessariamente pioneiro, entretanto, publicamente defensor incansável da extinção da situação de vulnerabilidade, na qual já era acometido o “hipossuficiente” consumidor, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos anos 70, já se pronunciava neste sentido através de seus magníficos (e não menos atuais) juristas, como pode-se destacar voto do Ilustre Dr. Athos Gusmão Carneiro, atualmente Ministro aposentado do STJ e Advogado, nos Embargos Infringentes nº 17.286, distribuído ao Segundo Grupo de Câmaras Cíveis do Rio Grande do Sul:

” … Ora, Sr. Presidente, sempre que determinadas cláusulas contratuais oferecerem a possibilidade de mais de uma interpretação, parece-me cumpre seja adotada a interpretação em desfavor do outorgante… no caso, é um contrato de adesão. São cláusulas estipuladas previamente pela empresa seguradora. Se elas as estipulou de uma forma a propiciar divergências, a ensejar dúvidas, creio que essas dúvidas hão de ser resolvidas em favor da parte que confiou no texto e contratou o seguro. Nesses termos, Sr. Presidente, com a devida “venia”, nego provimento aos embargos.”


Desejando proteger o cidadão, com maior proporção, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais (mais precisamente em seu art. 5º, XXXII) que o Estado promoveria a defesa do consumidor, e, em setembro de 1990 (apesar da previsão de 120 dias da promulgação da Constituição, para elaboração do CDC pelo Congresso Nacional, conforme o art. 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias) a denominada Lei 8.078/90 transformou-se no popular Código “de não agressão” ao Consumidor.

A boa fé nas relações de consumo e a regra da interpretação mais favorável ao consumidor, principalmente nos contratos de adesão.

Nas relações de consumo, além dos típicos contratos de “dar” previstos pelo Código Civil, existem os contratos de “fazer” onde as empresas fornecedoras de serviços vendem segurança, como no caso dos seguros (e mais especificamente em se tratando dos seguros de saúde), onde a contraprestação da empresa contratada pode dar-se de imediato ou a longo prazo.

A escolha, pelo consumidor, da empresa contratada, investindo financeiramente mês a mês na credibilidade de seus serviços, é frustrada quando o conveniado não obtém as vantagens que aparentemente acreditava possuir, não recebendo o tratamento desejado, seja porque o contrato, na maioria das vezes de adesão, vem redigido com cláusulas que dificultam seu entendimento (o que é expressamente proibido pelo art. 46 do CDC), seja porque a redação do contrato guarda interpretações dúbias, sem o esclarecimento necessário (situação igualmente vedada pelo art. 54, parágrafo 3º do CDC).

Tais normas vêm proteger os consumidores, ávidos por segurança, conforto, rapidez, que aceitam um contrato sem discutir seu conteúdo por não possuir conhecimento técnico ou jurídico para analisar suas cláusulas.

Às vezes nem o conhecimento jurídico é suficiente para o entendimento dos contratos de seguro ou plano de saúde, fato verificado quando nós, profissionais do Direito, nos colocamos na posição de consumidores, haja vista as incompreensíveis nomenclaturas técnicas constantes nas principais cláusulas dos contratos. Neste prisma podemos analisar a verdadeira situação de “hipossuficiência” da maioria dos consumidores cujo percentual de analfabetismo é alarmante.

Neste sentido, Sônia Maria Vieira de Mello in O Direito do Consumidor na Era da Globalização: a Descoberta da Cidadania. Renovar: Rio de Janeiro, 1998, p. 112:

“De modo geral, o consumidor necessita de determinado bem ou serviço e por isso “adere” a alguma oferta existente no mercado, anúncio televisivo, jornal, cartazes, etc. Ao tentar discutir as condições contratuais, se depara com a padronização das cláusulas contratuais, escritas com linguagem de difícil entendimento, o consumidor, muitas vezes não compreende muito bem o que está contratando, nem como está contratando; exatamente sendo justamente esta a questão mais delicada quanto aos contratos de adesão: o conhecimento do conteúdo e extensão do contrato por parte do cliente, o consumidor.”

Na prática, esta abusividade contratual (combatida a cada dia pelo CDC) representa um desequilíbrio na relação de consumo, com a transposição de riscos profissionais, inerentes ao fornecedor, para o consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor, através de seu artigo 47, busca resgatar o equilíbrio nas relações jurídicas ao normalizar que as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor, reconhecendo a vulnerabilidade do mesmo, a transparência e manutenção da boa fé nas relações de consumo e, finalmente, coibindo os abusos embutidos nas cláusulas previamente e unilateralmente redigidas.

A responsabilidade civil da seguradora, ao “comprar” carências de planos de saúde, independentemente de preexistência de doença.

O conceito de doença preexistente, com os avanços da genética, torna-se assustadoramente amplo, pois qualquer distúrbio pode ser doença preexistente ou preexistente na carga genética do indivíduo. Tal afirmativa é revelada, na prática, com os intermináveis questionamentos acerca dos antecedentes familiares do consumidor.

Em se tratando de empresa de seguro de saúde que “compra” carência de plano de saúde, ao formalizar a contratação, não lhe é permitido alegar a preexistência da doença para negar senha autorizativa quando solicitado internamento hospitalar e posterior cirurgia do segurado.

Ao substituir o “plano” pelo “seguro” se saúde, o consumidor, na maioria das vezes não tem o conhecimento da doença, e por este motivo tal fato não foi mencionado na declaração requerida.

À seguradora que, ao “comprar” as carências, duvidasse das declarações do consumidor, caberia promover exames médicos capazes de detectar a doença questionada, eis que o fato em questão é de interesse da mesma.


Porém, com a “cobiça” de associar mais um cidadão, a maioria dos seguros de saúde não exige cuidados mínimos e essenciais para excluir-se de qualquer responsabilidade civil.

Passado o momento, não pode a seguradora alegar a preexistência da doença para eximir-se de seu dever de assistir o segurado.

Jurisprudências pertinentes.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto à responsabilidade das seguradoras de saúde de indenizar os segurados, ainda que preexistente a doença, assim se pronunciou:

“A seguradora que compra carência de plano de saúde a que o segurado estava anteriormente vinculado, assume os riscos de cobrir as despesas havidas com qualquer doença que o acometa, ainda que preexistente à adesão do seguro-saúde.”

( TJSP – 8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)

“Se a empresa de seguro-saúde não submete o segurado a prévia avaliação médica e nem averigua junto ao plano de saúde a que anteriormente era vinculado, a existência de problemas de saúde, assume os riscos de cobrir as despesas hospitalares com doença preexistente à adesão ao seguro-saúde.”

(TJSP – 8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)

“Se não houvesse omissão do segurado-consorciado acerca de seu estado de saúde, sobre o que nem a seguradora nem a administradora do consórcio indagou, e se nada indica que ele soubesse do risco que corria por causa das moléstias, não vinga a alegação de má-fé, que não se presume. Logo, à seguradora incumbe honrar o dever de indenizar pouco importando írrita cláusula de isenção.”

(2º TACSP – 4ª C. Ap. Rel. Celso Pimentel, j. 12.8.97, Bol. AASP. 2.054/3)

” Cabe à seguradora provar que o segurado à época em que aderiu ao seguro-saúde, não ignorava o seu verdadeiro estado de saúde, pois, tratando-se de típico contrato de adesão para prestação de serviços médico-hospitalares, a ele são aplicáveis as disposições contidas nos arts. 46, 47 e 51 IV do CDC, devendo sua interpretação ser feita de maneira mais favorável ao consumidor.”

(TJSP – 8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)

VII – Considerações conclusivas.

A consideração mais importante sobre a responsabilidade dos fornecedores de seguro de saúde diz respeito ao caráter objetivo da mesma, o que diverge totalmente da instituída no art. 159 do Código Civil.

Por se tratar de relação de consumo em massa, qualquer ato praticado pelo fornecedor que crie risco para o indivíduo, ou uma coletividade, é expressamente repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor, com o devido direito à reparação pelos danos sofridos.

A identificação do CDC com a teoria do risco, bem como com a desconsideração da culpa na reparação dos danos, ratifica a desnecessidade de investigação do grau de “abuso” do fornecedor para que este seja obrigado a reparar o dano causado.

Vale lembrar que somente as relações de consumo (entre fornecedores e consumidores) são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, prevalecendo a norma específica do CDC. Porém, no caso de omissão do referido Código, são aplicáveis às relações de consumo, as normas dos Códigos Civil, Processo Civil, Penal, Processo Penal, Comercial e outras leis extravagantes, por extensão ou analogia.

Bibliografia.

Grinover, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

Mello, Sônia Maria Vieira de. O Direito do Consumidor na Era da Globalização: a Descoberta da Cidadania. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

Pacheco, J. E. de Carvalho. Jurisprudência Brasileira: Cível e Comércio. Paraná: Juruá Editora, vol. 3, 1976.

Reis, Nelson Santiago.O Consumidor e os Seguros ou Planos de Saúde. Artigo.

Stoco, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: RT, 4ª ed, 2ª tiragem, 1999.

Theodoro Júnior, Humberto Responsabilidade Civil. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1986.

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