Constituição e cultura

Eros Grau invoca Constituição na proteção da cultura brasileira

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27 de julho de 2001, 14h46

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, haveria de ser chamada, de modo mais adequado, de “Constituição do Brasil”. É que, em verdade, ela é a Constituição da sociedade brasileira.

Assim, os objetivos definidos no seu artigo 3º – construção de uma sociedade livre, justa e solidária; garantia do desenvolvimento nacional; erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outra formas de discriminação – consubstanciam os objetivos do Brasil, vale dizer, da sociedade brasileira.

Por isso mesmo nenhum governo ou Chefe do Executivo pode, sob pena de afronta à Constituição e aos brasileiros, empreender qualquer programa ou política que não esteja rigorosamente comprometido com a realização desses objetivos.

Outro ponto a ser enfatizado está em que a Constituição do Brasil, como qualquer Constituição, não pode ser lida aos pedaços, em tiras. Daí porque a sua interpretação é atribuída aos operadores do Direito, juízes, advogados, membros do Ministério Público, pessoas que freqüentaram Faculdades de Direito, nelas sendo preparados para o desempenho dessa função.

Bastasse a leitura do seu texto, bem assim dos textos das leis, para que pudesse ser ela aplicada e os cursos de Direito seriam inteiramente inúteis. A mera alfabetização é insuficiente para habilitar pessoas a aplicar a Constituição e as leis, tal como não basta o conhecimento do manejo de lâminas para que o leigo pratique operações cirúrgicas no ser humano sem colocar em sério risco sua vida.

Essas premissas iluminam a compreensão da importância conferida pela Constituição do Brasil à cultura nacional e ao acesso a ela. Nesse sentido dispõem, largamente, seus artigos 215 e 216 e parágrafos.

Mas não apenas aí, visto que – repito – não se interpreta a Constituição em tiras, ela confere efetiva proteção à cultura nacional. Também o artigo 1º, desdobrado no inciso I do artigo 170, e o artigo 222 a protegem.

Deveras, como a cultura nacional é um dos elementos sobre os quais tem assento a soberania nacional, a consagração desta última pressupõe sua defesa intransigente. E, de outra banda, a imposição de que a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens seja privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual – como define o artigo 222 – instrumenta aquela defesa.

A cultura brasileira é muito, muito mais do que um elenco de curiosidades regionais. É o cimento da brasilidade. Ela é muito nossa, de modo a expressar diferenças, do Norte ao Sul, de Leste ao Oeste, que são a liga de nossa unidade. Brasil branco, moreno, mulato, amarelo, negro, Brasil de todas as cores, como o cantou Ronald de Carvalho. Brasil de braços abertos aos imigrantes do mundo inteiro, aqui caldeados na cordialidade da forja que os acolheu. A cultura que produzimos é muito nossa, mais bonita do que o porquinho da Índia que Manuel Bandeira ganhou quando tinha seis anos.

A respeito dela diz o físico (e poeta inédito) Cláudio Mammana que bom mesmo é olhar o oceano em Itapoan, cuja tonalidade varia a cada quarto de hora, ouvindo os versos de Vinícius: “Enquanto o mar inaugura/Um verde novinho em folha/Argumentar com douçura com uma cachaça de rolha”. Qual, entre a hierarquia dos mais inspirados poetas de outras plagas, seria capaz de compor essa beleza, tão bela como o canto das aves que aqui gorjeiam?

Somos o que somos, apesar de dissabores e, hoje, de uma certa escuridão, no sentido literal do termo, porque herdamos dos nossos maiores, e reelaboramos, uma cultura autenticamente nacional. Ensinou-nos Sérgio Buarque de Holanda que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas quando estas encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida.

Por isso mesmo o transplante de padrões culturais estranhos ao que somos, que a orientação intelectual alienígena dos meios de comunicação fatalmente importaria, consubstanciaria inconcebível agressão à sociedade brasileira e a sua Constituição.

A globalização, esse fenômeno histórico produzido pela revolução da informática, da microeletrônica e das telecomunicações, evidentemente irreversível, pode conduzir, como observou o Primeiro-Ministro da França, em conferência que recentemente pronunciou no Rio de Janeiro, a um novo universalismo, aquele dos direitos humanos. Uma globalização com rosto humano, isto é, humanizada, o que supõe o respeito e a preservação de cada cultura nacional, especialmente as por ela ameaçadas quando posta a serviço das nações hegemônicas.

Isso é imprescindível a que – retorno ao poeta inédito – isso é imprescindível a que não venhamos a nos sentir exilados em nossa própria pátria.

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