Semântica racial

Editor nazista defende-se no STJ dizendo que judeu não é raça

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9 de julho de 2001, 13h24

Acusado de escrever livros e, também, por editar e vender obras com mensagens anti-semitas de incitação ao “sentimento de ódio, desprezo e preconceito contra o povo de origem judaica”, o editor de livros Siegfried Ellwanger, sócio-diretor da Revisão Editora, de Porto Alegre, foi condenado por racismo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a dois anos de reclusão com sursis (suspensão condicional da pena).

A pena está prevista no artigo 20 da Lei 7.716/89 que classifica como crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Os advogados do editor de livros impetraram habeas-corpus no STJ, com pedido para mudar os termos da condenação proferida pelo TJ, trocando a acusação de racismo por práticas discriminatórias.

Assim, o réu estaria em condições de requerer extinção da pena, o que é inviável na atual situação porque o racismo é crime imprescritível. A apologia de idéias contra a comunidade judaica não pode ser caracterizada de tal forma porque “os judeus não são raça”, afirmam os advogados.

Segundo eles, Ellwenger foi condenado por crime “contra os judeus, contra o judaísmo, contra a comunidade judaica, não podendo à luz da palavra autorizada dos antropólogos, dos rabinos e dos intelectuais judeus ser inserido entre os decorrentes da prática de racismo”.

Com essa tese, fundamentada em citações de escritos de conceituados antropólogos e intelectuais como Moacyr Scliar e Darcy Ribeiro, a defesa quer demonstrar que o crime pelo qual Ellwanger foi condenado já está prescrito.

O Ministério Público Federal (MPF) contesta a tese, com citação do apóstolo São Paulo, em parecer encaminhado ao relator do processo, ministro Gilson Dipp, há confusão do significado antropológico do vocábulo racismo com o seu significado jurídico, afirma o subprocurador-geral da República, Eitel Santiago de Brito Pereira, que assina o parecer.

O MPF manifesta-se, entretanto, favorável ao pedido de habeas-corpus porque, em Direito Penal, “salvo disposição expressa, a instigação não é, de regra, punível, se o delito não chegou sequer a ser tentado”.

Siegfried Ellwanger foi condenado a dois anos de reclusão com sursis no dia 31 de outubro de 1996, quatro anos, 11 meses e 17 dias depois do recebimento da denúncia.

O TJ não considerou o prazo de prescrição de quatro anos por julgar o crime imprescritível (artigo 5º, XLII da Constituição) e impôs a pena alternativa de quatro anos, com prestação de serviços à comunidade no primeiro ano e comparecimento trimestral ao juízo de execução no período subseqüente para informar e justificar suas atividades.

Para sustentar a alegação de que o réu não cometeu crime de racismo, os advogados do editor citam, inicialmente, um trecho da declaração da Unesco sobre as diferenças raciais: “Os muçulmanos, os judeus não formam uma raça, assim como os católicos ou os protestantes…”.

Eles dizem que a definição de judeu como raça “encontra sempre o veemente repúdio de toda a comunidade judaica, tanto pelos antropólogos judeus, pelos rabinos e pela sua intelectualidade” Foi o ditator Adolf Hitler, na obra “Mein Kampf”, quem pretendeu impor o caráter racial dos judeus, afirmam.

Trechos da obra do antropólogo Miguel Asheri, residente em Israel, também são citados para reforçar a tese: “São os judeus uma raça, um grupo religioso, um grupo lingüístico, uma nacionalidade, ou o que? Raça não são: existem judeus louros e de olhos azuis, judeus negros, judeus morenos, judeus amarelos e de todos os tons que se possa imaginar entre estas cores. Os judeus são um povo, assim como, por exemplo, os armênios são um povo. Os irlandeses, uma mistura de muitas raças, duas línguas e duas religiões, são um povo”.

Da obra do rabino Morris Kertzer, os advogados destacam o trecho no qual ele afirma que “como parte de inegável importância de qualquer definição válida, deve-se dizer o que o judeu não é.

Os judeus não são raça. Judeu é todo aquele que aceita a fé judaica”. Do livro “A Condição Judaica”, de Moacyr Scliar, grifa-se outra frase: “O que quer que sejamos, nós, os judeus, não somos uma raça”.

A defesa recorre também à obra “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro, na qual define-se que “a característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da pele”.

Em seu parecer, o subprocurador Eitel Santiago contra-argumenta que a palavra racismo empregada na legislação serve para identificar quaisquer doutrinas segregacionistas. “Na verdade, invocando, em seu preâmbulo, a proteção de Deus, o legislador constituinte revelou a influência dos ensinamentos do cristianismo no seu espírito”, afirma.

O parecer cita trecho da Epístola aos Gálatas, na qual o apóstolo São Paulo adverte que “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”

Para representante do MPF, a linguagem técnico-jurídica da Constituição configura racismo não apenas o preconceito provocado pela diferença de raça.

Assim, segundo ele, também é racismo qualquer discriminação ilegal em relação a grupos de pessoas, sejam ligadas por uma cultura e religião comuns, nacionalidade, origem regional semelhante ou até por outros traços emocionais ou psicológicos.

O subprocurador conclui que se o réu foi condenado por crime contra a comunidade judaica, “não há como desprender o racismo do seu comportamento delituoso”.

Mesmo assim, segundo o subprocurador Eitel Santiago, não é legítimo ampliar a interpretação da norma constitucional que faz da prática de racismo um crime inafiançável e imprescritível para ter como, igualmente, imprescritível o delito de quem “apenas incitou a discriminação ou o preconceito contra os judeus”.

O parecer é favorável à extinção da punibilidade contra o editor de livros porque o delito praticado por ele não acarretou a prática de racismo. Sua condenação, segundo o representante do MPF, decorreu de “uma mera estimulação a um comportamento mais ofensivo, a prática do racismo”.

Processo: HC 15.155

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