Constituição rasgada

STF coloca interesses do governo acima da Constituição

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6 de julho de 2001, 17h07

A incompetência foi mais uma vez premiada. E com essa premiação, os gestores da nação podem se revigorar e aperfeiçoar sua política de empirismo administrativo, fazendo-nos de cobaias para seus mirabolantes projetos de governo e para a satisfação dos interesses internacionais (digo isso com a plena consciência de não se tratar de um discurso meramente panfletário, mas de triste espelho da realidade), em detrimento da adoção de uma política de governo que, mesmo correndo o risco de não vingar, pelo menos se sujeitasse à ordem constitucional.

Essa afirmação decorre do fato de que a cúpula do Poder Judiciário mostrou mais uma vez que, ordinariamente, legítima os inaceitáveis atos autoritários do Poder Executivo. Agora, à guisa de permitir – esta foi a desculpa atual – a solução da crise de energia, acolheu uma excrescência legislativa denominada Medida Provisória nº 2.152/01 (arts. 14 a 18).

Crise. Esta é uma palavra que escuto nos meios políticos desde que me entendo por gente. Segundo o Aurélio, é uma manifestação violenta e repentina de ruptura do equilíbrio, ou, ainda, uma fase difícil, grave, na evolução das coisas.

No Brasil, todavia, a crise é sinônimo de normalidade. Sim, porque a existência rotineira e sucessiva das mais diversas espécies de crises (política, econômica, moral) são uma idiossincrasia de nossa nação.

Desta forma, se não houver no meio político, econômico e mesmo jurídico, uma crise de plantão, há algo de errado com o Brasil, e esta situação de anormalidade pode ser, ao que parece, perigosíssima para o destino promissor que nos aguarda.

Talvez comungando deste entendimento foi que o STF, mais uma vez, chancelou a mixórdia levada a cabo pelo Poder Executivo para, paradoxalmente, controlar a crise energética que assola o país.

Digo “mais uma vez”, porque foi assim que a Corte Suprema da Nação se portou ao convalidar o inacreditável confisco das contas correntes e cadernetas de poupança, perpetrado pelo ex-presidente megalomaníaco; foi assim que se portou ao inventar um liame jurídico que permitiria a reedição perpétua de medidas provisórias, umas, prolongando os efeitos jurídicos de outras já sem vigência (a Suprema Corte Italiana – país de onde foi importado o instituto da MP, lá com o nome de Decreto-lei – rejeitou a possibilidade de sua reedição); foi assim que se portou ao impedir a plena aplicação da Constituição, no tocante à limitação dos juros, ao estabelecer que o parágrafo 3º do art. 192 não era auto-aplicável, ferindo de morte este dispositivo constitucional.

Para não fugir à regra, o STF agora chancelou as medidas ditatoriais perpetradas pelo Poder Executivo, à guisa de se controlar os efeitos da crise energética. Dura lex, sed “latex”, como diria Fernando Sabino – a lei é dura, mas estica.

Aliás! Já era tão certa a vitória da União na Ação Declaratória de Constitucionalidade que manejou, que seu maior representante judicial teve a empáfia de se dizer surpreso com a existência de dois votos contrários à tese que desenvolveu.

Pasme-se! A União tinha plena convicção de que poderia empurrar esse imbróglio jurídico, rejeitado pela maioria esmagadora dos Juízes de Primeiro e Segundo Graus, com aprovação unânime do Supremo Tribunal Federal. Pior, quase conseguiu.

Pois bem! Essa rotineira tolerância da Alta Corte com os desmandos e desvarios do Poder Executivo, fazem emergir a conclusão de que a imperiosa missão institucional de se guardar a Constituição Federal e, reflexamente, todo ordenamento jurídico, não pode, segundo o entendimento que ao longo dos anos vem se mostrando vencedor, ser priorizada em relação à necessidade de se debelar as sazonais e reiteradas crises advindas da incúria do Poder de Administração. Sim, porque malgrado sejam “importantes”, as crises precisam ser combatidas para se dar uma satisfação à opinião pública (…) e para que outras, já embrionárias, possam finalmente nascer, fazendo com que a história se repita vocês sabem como o que…

Celebre-se a incompetência!

Rasgue-se a Constituição!

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