Competência dupla

DF tem condição jurídica de Estado e Município, diz advogado.

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25 de janeiro de 2001, 23h00

A questão proposta não é cerebrina, nem meramente acadêmica, pois tem implicações muito importantes, no campo das finanças públicas e nas relações com as unidades federativas.

A posição e a natureza jurídica da Capital do Império e, posteriormente, da República, tem variado muito, desde o alvorecer do Brasil independente.

A Constituição imperial de 25 de março de 1824, introduzida pela Carta de Lei desta mesma data, no artigo 72, fazia menção à Capital do Império e o Ato Adicional – Lei 16, de 12 de agosto de 1834, no artigo 1º, registrava que a autoridade da Assembléia Legislativa da Província, onde estivesse a Corte, não compreenderia a Corte nem o seu Município.

João Barbalho, comentando a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, advertia a necessidade do Governo Federal ter sua sede em território neutro, que não pertencesse a nenhum dos Estados, para estar em sua própria casa.

O artigo 2º da primeira Constituição republicana rezava que cada uma das antigas províncias formaria um Estado e o antigo Município neutro constituiria o Distrito Federal, continuando a ser a Capital da União, enquanto não se desse a execução da ordem prevista no artigo 3º, isto é, a mudança da Capital Federal, para o Planalto Central.

O parágrafo único fornecia um indicativo que não podia ser ignorado, ao determinar que, com a mudança, o Distrito Federal constituiria um Estado.O Congresso Nacional tinha competência privativa para legislar sobre a organização municipal do Distrito Federal, sendo administrado pelas autoridades municipais, cabendo-lhe as despesas de caráter local.

Rui Barbosa considerava-o um semi-estado ou quase-estado, visto que não tinha auto-organização nem participava, como os Estados, da qualidade de membro. Ensina Michel Temer que o Distrito Federal, na Constituição de 1891, sucedeu ao Município neutro.

Em 1934, a Constituição colocou o Distrito Federal entre os Estados e os Territórios, constituindo assim os Estados Unidos do Brasil. Fazia parte da união indissolúvel e perpétua dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

Já em 1937, a Constituição Federal, conquanto o manteve como parte indissolúvel da união dos Estados e dos Territórios, paradoxalmente, determinou que a União o administrasse, enquanto sede do Governo da República, por meio de um prefeito nomeado pelo Presidente da República, com a aprovação do Conselho Federal.

A Lei Constitucional número 9, de 28 de fevereiro de 1945, ordenou que o Distrito Federal enquanto sede do Governo da República seria organizado pela União.

A Lei Máxima democrática de 1946, sucessora da Carta centralizadora de 37, alçou o Distrito Federal – Capital da União – à mesma posição dos Estados, como partícipe da União, ofertando-lhe autonomia relativa, ao permitir ao DF manter a Câmara de Vereadores, elegendo os legisladores, mas seu prefeito era nomeado, pelo Presidente da República, com a aprovação do Senado Federal, e demissível ad nutum pelo Chefe do Executivo Federal.

Elegia, porém, deputados e senadores. Com a Emenda Constitucional nº 2, de 3 de julho de 1956, o Distrito Federal passou a ser administrado por um prefeito eleito, pelo sufrágio direto, da mesma forma como o eram os vereadores.

A capital situava-se no Rio de Janeiro, vindo a mudança, para o Planalto, ocorrer em 1961, com o Presidente Juscelino Kubitschek. Pela EC nº 3, de 8 de junho de 1961, porém, o Distrito Federal passaria novamente a ser administrado por um prefeito nomeado pelo Presidente da República, mediante aprovação do Senado da República, mas a Câmara seria eleita pelo povo, com as funções atribuídas pela lei federal.

Esse diploma previu a eleição de representantes para o Senado Federal, Câmara dos Deputados e Câmara do Distrito Federal. Narra Manoel Gonçalves Ferreira Filho que o Distrito Federal ficou sem representantes, por não haver o Congresso Nacional definido aquela eleição.

A Constituição de 1967 retrocede violentamente e, embora conceda ao Distrito Federal o status de partícipe, juntamente com os Estados e os Territórios, da República Federativa do Brasil, novo nome da República brasileira, deixando para trás a denominação anterior de Estados Unidos do Brasil, recusa-lhe a autonomia e assenta que a lei disporá sobre sua organização administrativa e judiciaria, cabendo ao Senado as funções legislativas sobre matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração.

Novamente, o Presidente da República detém a competência para nomear o prefeito, depois da anuência do Senado. Não obstante, é-lhe atribuída competência para arrecadar os impostos atribuídos aos Estados e aos Municípios, da mesma forma que aos Estados não divididos em Municípios.

A Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, mantém a mesma linha da Constituição de 1967, entretanto, essa Emenda é mais generosa que a Carta emendada e concede ao Distrito Federal o status de Estado sui generis, pois o Presidente da República nomeará um governador e não mais um prefeito.


Constituição vigente

José Afonso da Silva ensina que o Distrito Federal, atualmente, não é Estado nem Município, porém, de certa forma, é mais que Estado, mas diminui-lhe o tamanho político – institucional, porque algumas funções pertencem à União, como o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, a Polícia e o Ministério Público.

Todavia, reconhece-o como unidade federada, com autonomia parcialmente tutelada, abjurando a condição de autarquia, segundo sua concepção anterior.

A Constituição vigente produz uma significativa revolução na natureza jurídica e política do Distrito Federal. A República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e também do Distrito Federal.

Eis a novidade alvissareira: não só o Distrito Federal, mas também os Municípios constituem parte da união. Compõe-na. É a nota indicativa do artigo 1º.

Não se trata de declaração meramente formal, visto que o artigo 18 lhe confere autonomia político-administrativa, como o faz com relação à União, aos Estados e aos Municípios, no mesmo pé de igualdade.

Os Territórios, contudo, não passam de autarquia, porque integrantes da União. Embora não mais existam, poderão vir a ser criados.

Natureza jurídica

Sem dúvida, o Distrito Federal, na nova feição constitucional, é uma unidade da Federação, conquanto sofra algumas restrições que lhe não fere absolutamente as características de Estado e de Município, desenhadas pela Carta. É um Estado e também um Município. Daí a natureza singular. É a sede da Capital Federal. Brasília é a Capital do Brasil.

O Texto Constitucional oferece ao Distrito Federal as competências legislativas reservadas aos Municípios e aos Estados, elegendo o governador, o vice-governador e os deputados distritais e tem representação no Congresso Nacional, assim que a Câmara dos Deputados se compõe de representantes do povo eleitos pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal, enquanto o Senado Federal é integrado por representantes dos Estados e do Distrito Federal.

O Senado Federal é a câmara representativa dos Estados federados, daí porque a Constituição atual, como o faziam as Constituições de 1969, 1967, 1946 e 1891, comanda que o Senado se comporá de representantes dos Estados e do Distrito Federal.

A autonomia está expressamente prevista no artigo 32, quando assegura que se regerá pela Lei Orgânica votada e aprovada pela Câmara Legislativa, de conformidade com os princípios da Constituição.

Vale dizer: estão aí desenhadas as capacidades de auto-organização, autogoverno, auto-administração e autolegislação. A Lei Orgânica do Distrito Federal dita que este, no pleno exercício de sua autonomia política, administrativa e financeira, reger-se-á por esse diploma e Brasília é a Capital da República Federativa do Brasil, a sede do Governo do Distrito Federal.

O Distrito Federal acumula as competências legislativas estadual e municipal. Exerce atividades atribuídas ao Estado e ao Município, ou seja, aquelas reservadas a este pelo artigo 30 e àquele, previstas no artigo 25, da CF.

O Poder Legislativo é exercido pela Câmara Legislativa, o Executivo, pelo governador eleito e o Judiciário, pelos Tribunais e Juízes. Aqui, a anomalia ou o cochilo do constituinte, pois o artigo 22, inciso XVII, conferiu à União competência privativa para legislar sobre organização judiciária, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios, bem como organização administrativa destes.

Sem qualquer justificativa plausível, cometeu um retrocesso imperdoável, com relação a esse Poder, o mesmo ocorrendo com os juizados especiais e a justiça de paz. Isto, porém, não macula a autonomia nem desmancha sua dupla posição ou identidade de Estado e Município.

A Constituição atribui competência à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para instituir os tributos previstos no artigo 145 (impostos, taxas e contribuições de melhoria, decorrentes de obra pública) e ao Distrito Federal também os impostos municipais. Este participa da repartição das receitas tributárias.

O artigo 169, alterado pela E C 19/98, alerta que a despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

A Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101/ 2000 , no artigo 1º, § 3º, alínea b, inciso II, define que a Estados se entende considerado o Distrito Federal.

É de se assinalar que a Lei de Responsabilidade Fiscal, ao assemelhar o Distrito Federal ao Estado, simplesmente repetiu a Constituição, sem lhe retirar também as características de Município, no que concerne aos serviços municipais e competências que acumula. Não o fez e não poderia fazê-lo.


Se assim é nada mais lógico que interpretar a lei, de forma inteligente, como quer Carlos Maximiliano, com apoio decisivo de Celso, Savigny, Salvat, Windscheid, Sutherland, Bozi, Berriat Saint – Prix, Fabreguettes e Bernardo Carneiro, não podendo a exegese conduzir ao absurdo nem chegar a conclusão impossível, preferindo-se o sentido que se concilie com o resultado mais razoável e que melhor corresponda às necessidade da prática e seja mais humano e benigno, suave.

Conclusão

Na verdade, em se interpretando corretamente a Constituição, colocando o Distrito Federal na sua exata condição de Estado e de Município, não há o seu rebaixamento da posição de Estado para Município, como se tem propalado, nem se está ferindo o princípio fundamental da moralidade pública, um dos mais importantes e significativos princípios que norteia a Administração Pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

É sem dúvida o mais notável de todos. Nem se lhe está emprestando privilégio indevidamente, já que este lhe advém da Carta Maior, quando lhe concede a dupla cidadania ou identidade.

A questão toda deve ser enfocada não pelo ângulo da injustiça ou da angústia ou da pessoalidade das situações criadas, senão tendo em vista o aspecto da constitucionalidade e da moralidade.

É um equívoco muito grande e sofisma imperdoável pretender que essa interpretação produz o rebaixamento do Distrito Federal, se este ostenta a qualidade dupla e, portanto, exerce a competência de ambas as entidades políticas e, mais, exerce as atividades de um e de outro ente, inclusive aquelas que dizem respeito ao peculiar interesse local.

Assim, verifica-se que há um plus impossível de passar despercebido. Não legisla apenas sobre matéria estadual nem exerce somente atividades próprias do Estado, mas legisla também sobre matéria municipal e exerce atividades inerentes ao Município.

Com o maior respeito aos que divergem dessa opinião, ressalto que lei complementar ou ordinária não tem o condão de modificar a Constituição e rasurar a natureza dúplice que lhe foi delineada, por esta. Será um contra-senso interpretar-se de maneira diversa.

Ofertaria a Lei Máxima maiores atribuições sem lhe dar os meios respectivos? Não há como aceitar esta tese, por mais que se tente extrair da lei esse entendimento. Seria o mesmo que solicitar a alguém que compre dois produtos com recursos destinados a um só deles. Isto evidentemente contraria os princípios da lógica e do bom senso e até da matemática.

O legislador ordinário ou complementar não pode ultrapassar a lindes traçadas pelo constituinte nem desvirtuar a natureza que a Constituição lhe fixa.

Destarte, a Lei de Diretrizes Orçamentárias do Distrito Federal – Lei 2573, de 27 de julho de 2000, está em prefeita consonância com a Constituição, quando enuncia, no § 2º do artigo 36, caber ao Poder Legislativo a parcela de seis por cento do limite de sessenta por cento da receita corrente líquida para a despesa total com pessoal do Distrito Federal, previsto na LC 102 cit.

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