Defesa da AGU

Continuação – União é favorável…

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5 de fevereiro de 2001, 23h00

Em verdade, como já observado em item anterior, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afirmou que o acesso a dados relativos a operações financeiras está sujeito a regulação infralegal, não se encontra protegido por uma reserva absoluta de jurisdição, é admitido diante de autorizações constitucionais expressas (tais como aquelas dos arts. 58, § 3º e – acreditamos – 145, § 1º, da Constituição Federal), é facultado quando houver interesse público, recursos ou dinheiros públicos, imperativos lógicos, naturais ou funcionais da vida social ou ainda – e sobretudo – bens, valores, direitos ou princípios constitucionais a realizar por meio do acesso a tais informações.

Ignorando todas essas múltiplas e analíticas circunstâncias, a impugnação pretende perpetrar um evidente sofisma. Sabendo ausente do texto constitucional uma proteção expressa e deliberada do sigilo bancário ou fiscal, a inicial pretende valer-se de uma via transversa para conferir ao sigilo bancário ou fiscal status constitucional e, assim, abandonando o exato conteúdo dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição, substituir tais dispositivos constitucionais por uma fictícia cláusula geral de proibição absoluta de divulgação de toda e qualquer informação bancária, cumulada com uma igualmente inexistente e imaginosa reserva de jurisdição.

O mecanismo opera por meio de uma série de derivações cujo objetivo é substituir o texto constitucional por uma criativa e oportunista concessão de status constitucional a uma inexistente proibição de acesso a informação bancária. De início, afirma-se cabalmente, em uma primeira derivação: o sigilo bancário ou fiscal está contido na proteção constitucional da intimidade, da vida privada e das comunicações de dados.

A seguir, procede-se a uma segunda derivação: o sigilo bancário ou fiscal – já artificialmente constitucionalizado – impede a divulgação de toda e qualquer informação bancária. Em terceiro lugar, acrescenta-se: essa proibição só admite uma única flexibilização, a prévia ordem judicial. Em quarto lugar, conclui-se: será inconstitucional toda e qualquer norma que, sem a prévia autorização judicial, conceder acesso a toda e qualquer informação bancária. Por fim, em quinto e último lugar, alega-se inconstitucionais as normas impugnadas.

É fácil perceber o sofisma a que conduz tal construção: ela afasta o cotejo da norma impugnada diretamente com as normas constitucionais invocadas por meio da concessão aos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal de um sentido e alcance que ele não possui.

Com efeito, ainda que os referidos incisos protegessem contra a divulgação de determinadas informações financeiras, não seria possível equiparar tal proteção a uma proibição absoluta de divulgação de toda e qualquer informação bancária. Sabidamente, não se pode presumir que toda e qualquer informação bancária seja necessária e gravemente reveladora da intimidade e da vida privada de alguém ou, por outro lado, decorra de uma supostamente inexorável interceptação da comunicação de dados.

Do mesmo modo, a reserva de jurisdição prevista no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal aplica-se tão-somente à interceptação telefônica e não à comunicação de dados, asseverando-se que o acesso a dados constantes de registros não está protegido pela reserva de jurisdição.

Assim, ao substituir o efetivo conteúdo dos incisos do art. 5º da Constituição Federal pela inexistente e absolutamente artificial “Norma Constitucional Derivada do Sigilo Bancário ou Fiscal” alcança-se a desinibida invenção da seguinte cláusula constitucional: “Será inconstitucional o acesso a toda e qualquer informação bancária, sem prévia autorização judicial”. Essa absurda formulação convola-se em parâmetro autônomo de controle de constitucionalidade, substituindo as normas efetivamente constantes do texto constitucional.

É simples e clara como os argumentos leais costumam ser a forma ortodoxa de superação de um tal sofisma. Para fazê-lo, basta submeter as normas impugnadas a um cotejo direto e imediato com o conteúdo dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, afastando-se a norma artificiosamente interposta e criada pelo Requerente.

Em o fazendo, resta manifesta a legitimidade da norma impugnada. Como demonstrado acima, a norma impugnada simplesmente autoriza a autoridade tributária federal a promover um “cruzamento de dados” que sempre lhe foram devidos e dos quais já dispõe, sem acrescer informação alguma àquela que já lhe era oferecida.

Assim, em medida alguma tal norma pode revelar-se gravosa ao suposto “sigilo bancário” e muito menos à intimidade ou à privacidade, pois, em face do Fisco, tais informações já não eram sigilosas e nem afetadas à intimidade ou privacidade do sujeito passivo da obrigação tributária.


Ainda mais surpreendente e absurda revela-se, por sua vez, a tentativa de opor o sigilo fiscal à própria fiscalização tributária, que, por evidente, é exatamente a fiel depositária de tais informações e de seu caráter sigiloso. É simplesmente curial que o sigilo fiscal constitui um dever da autoridade tributária em face de terceiros e não um impedimento para o exercício de suas próprias competências rotineiras e constitucionalmente consagradas no § 1º do art. 145 da Carta Magna. De resto, caso assim não fosse, não se vislumbraria razão alguma para haver-se inicialmente prestado tais informações para a própria autoridade tributária.

Assim, se cotejado tal dispositivo com o disposto nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, resta evidente inexistir violação alguma da intimidade, da vida privada, do sigilo das comunicações de dados ou da reserva de jurisdição para a interceptação das comunicações telefônicas.

De fato, considerados os elementos recolhidos da análise anteriomente levada a efeito acerca dos referidos direitos fundamentais, parece possível concluir que a norma impugnada (a) atende ao requisito da reserva legal, (b) observa o caráter relativo e sujeito à conformação dos preceitos constitucionais invocados, (c) preserva a intimidade, a vida privada, o sigilo das comunicações de dados e a reserva de jurisdição da interceptação telefônica, (d) leva a efeito sua ponderação com valores constitucionais contrapostos e imperativos funcionais das relações massificadas de crédito das sociedades contemporâneas, (e) não constitui gravame algum nem alcança qualquer informação antes imune ao alcance da autoridade tributária e (f) simplesmente, dada a sua natureza, destinação e titularidade, torna desprovida de sentido a tentativa de opor à própria fiscalização tributária eventual sigilo fiscal. Muito embora a exposição anterior e a consideração detida da norma invocada já tenham explicitado, à exaustão, a legitimidade da norma impugnada e a precariedade da impugnação, a rejeição definitiva da impugnação dar-se-á com a aplicação do princípio da proporcionalidade (ou do devido processo legal em sentido material) pretendida pelo Requerente, como passamos a expor.

6.2) Da Legitimidade da Norma Impugnada em Face do inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal

Sustenta-se ainda na inicial uma suposta violação da garantia constitucional relativa ao devido processo legal em sua acepção substantiva, como exigência material em face do conteúdo das leis restritivas de direitos ou outros valores constitucionais. A absoluta carência de consistência e sistematicidade da inicial omite a circunstância de que a invocação do princípio da proporcionalidade (ou da cláusula do devido processo legal em sentido material, inserida no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal) não constitui propriamente uma impugnação autônoma. Como se demonstra a seguir, o princípio da proporcionalidade exige que se considere a razoabilidade de determinada restrição a direito fundamental em face de outros fins, valores, bens, direitos ou princípios constitucionais a perseguir.

A impugnação julga-se, em verdade, suficientemente consumada com a simples invocação de norma constitucional que, ao ver do Requerente, afigura-se afetada pela disciplina normativa introduzida pelo objeto de controle. Essas circunstâncias exigem – embora se trate de ônus incidente sobre o Requerente – seja a questão constitucional adequadamente posta como requisito prévio à demonstração da legitimidade da norma impugnada. Cuidaremos agora de fazê-lo, evidenciando não só a impertinência bem como a precariedade da impugnação.

Inicialmente cumpre esclarecer o sentido e o alcance do princípio da proporcionalidade.

Como sabido, o princípio do devido processo legal em sentido substantivo constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo das leis restritivas de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um “limite do limite” ou uma “proibição de excesso” na restrição de tais direitos (vide, a respeito, CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 622 e s.).

Entre nós, assevera Willis Santiago Guerra Filho que o princípio da proporcionalidade não se confunde com a mera exigência de razoabilidade, pois aquele possui conteúdo material próprio e positivo e institui um procedimento racional de edição de atos normativos (Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo, Celso Bastos, 1999, pp. 66-67, nota 60). O princípio – ou máxima, segundo Robert Alexy (Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, p. 111) – da proporcionalidade coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy (op. cit., p. 286).


Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. Para além de sua vinculação aos direitos fundamentais, parcela da doutrina admite a extensão da aplicação do princípio da proporcionalidade de modo a alcançar também as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais.

Em tais circunstâncias, chega-se a sustentar que as exigências do princípio da proporcionalidade assumiriam mesmo a função de um construto metodológico geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é solvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, seria possível aplicar o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

Dito isso, parece evidente que a aplicação do princípio da proporcionalidade somente se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade.

São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como leciona Gilmar Ferreira Mendes (“A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos, p. 72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, a norma impugnada afigura-se adequada (isto é, apta para produzir o resultado desejado), necessária (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto). Adequadamente colocada, nos planos teórico, metodológico e prático, a questão, impõe-se demonstrar a compatibilidade da norma impugnada com as exigências do princípio da proporcionalidade.

Como visto, os direitos fundamentais supostamente submetidos a restrição excessiva são aqueles previstos nos incisos X e XII do art. 5o da Constituição Federal. Não se esclareceu, contudo, o rol dos princípios constitucionais contrapostos e que ensejam a ponderação ínsita a toda e qualquer aplicação do princípio da proporcionalidade, o que passamos a fazer.

O acesso por parte das autoridades tributárias a informações relativas a operações financeiras representa a efetivação de valores constitucionais de caráter fundamental. Em primeiro lugar efetiva o poder de tributar do Estado. Mais especificamente, efetiva a faculdade conferida pela Constituição à Administração Tributária com relação ao acesso a dados referentes ao patrimônio, aos rendimentos e às atividades econômicas do contribuinte bem como a realização qualificada dos princípios da eqüidade ou justiça tributária, da capacidade contributiva do contribuinte e do caráter pessoal dos tributos (art. 145, § 1º). Note-se que a previsão de acesso das autoridades tributárias a dados patrimoniais do contribuinte é expressa, ao contrário do chamado “sigilo bancário”, que, como visto acima, não encontra expressão em disposição constitucional alguma.

A discutida “quebra de sigilo” torna eficaz, da mesma forma, a determinação constitucional no sentido de que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios – no exercício de competência comum – devem zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas, assim como conservar o patrimônio público (art. 23, I).

Atende também aos objetivos fundamentais traçados no art. 3º da Constituição. De fato, a referida “quebra de sigilo” permitirá a ampliação das receitas tributárias, um dos meios elementares para a promoção do desenvolvimento econômico, assim como para a redução de desigualdades sociais e regionais. Não há dúvida de que esta ampliação de receitas implica a expansão do limite financeiro necessário ao adimplemento das prestações positivas do Estado em favor dos cidadãos.

De fato, em um Estado em que operam regras de responsabilidade fiscal que limitam, acertadamente, o gasto público (o que foi reconhecido como princípio compatível com a ordem constitucional pelo Supremo Tribunal Federal), o endividamento público e a emissão de moeda, a receita passa a constituir o fator decisivo para a definição daquilo que o Estado poderá prestar.


Neste Estado fiscal, que não se encontra imediatamente engajado na atividade econômica, a fonte fundamental de recursos reside na imposição tributária. Em verdade, a eficiente imposição de tributos passa a constituir um instrumento fundamental – senão o único – de redistribuição de renda, integração e solidariedade social, qualificado pelo gasto público como insumo à promoção daquelas parcelas excluídas do gozo dos benefícios do desenvolvimento econômico. Responde a política pública adotada, portanto, ao imperativo elementar da isonomia na imposição tributária (art. 150, II).

A alcunhada “quebra de sigilo bancário ou fiscal” também observa o dever básico de lealdade da República Federativa do Brasil às obrigações firmadas no plano internacional. É notória a tendência internacional no sentido de se disciplinar a movimentação de capitais entre os Estados, seja sob imperativos de segurança econômica, seja sob as exigências de repressão a atividades ilícitas que, por vezes, encontram na garantia de absoluto sigilo bancário um meio seguro para um regime de impunidade. Um tal dever de lealdade nas relações internacionais imporia, também e para fins extrafiscais, a eliminação de eventuais vantagens comparativas decorrentes da redução da carga tributária e da sublimação de recursos oriundos de atividades ilícitas.

Por fim, torna eficaz o dever constitucional de adimplemento das obrigações tributárias, dever que, em princípio, alcança a todos. Com efeito, refere-se a doutrina portuguesa a um “dever fundamental de pagar impostos” (José Casalta Nabais, in: O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra, Almedina, 1998). O poder de tributar titularizado pelo Estado, método constitucional utilizado por este organismo político para auferir os meios econômicos para o exercício de suas tarefas fundamentais, certamente está a depender de disciplina infraconstitucional que lhe dê efetividade.

É necessário reconhecer que o complexo normativo que vigorava anteriormente aos atos impugnados não se demonstrou idôneo ao exercício minimamente eficaz das prerrogativas constitucionais da Administração Tributária. Tal ineficiência mostra-se, especialmente, no que se refere à movimentação de certos bens móveis por meio de instituições financeiras. Na proporção em que a propriedade mobiliária tem, de certo modo, se tornado a principal expressão da riqueza privada, é natural que o Estado disponha de meios adequados à realização de seu poder-dever de tributar também em relação a este tipo de bens.

Este é um imperativo não só de eficiência mas também de isonomia. Isto porque não se afigura razoável que parcela extremamente significativa da propriedade privada disponha de um sistema que a subtraia a qualquer atividade estatal de fiscalização e controle para a realização daquela decisão constituinte fundamental que garante o poder de tributar.

Tal não ocorre, vale dizer, em relação à propriedade imóvel, cuja transferência submete-se a um complexo normativo garantidor de amplo acesso ao Poder Público assim como a qualquer cidadão, independentemente de demonstração de qualquer interesse, ou sem sujeitar-se a qualquer restrição no que toca à sua publicidade – vide, a respeito, o art. 1.137 do Código Civil, e arts. 17, 47, 167 e 289 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. O referido art. 289 da Lei de Registros Públicos, por exemplo, estipula que, no exercício de suas funções, “cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício”.

Estas disposições de Direito Civil, certamente, atendem aos valores acima referidos, assim como representam concretização inequívoca do dever constitucional de tributar. E mais, configuram a idéia de auto-executoriedade que pauta a atividade administrativa, o que obviamente não implica um afastamento do controle judicial. Ali não se reconhece qualquer sigilo em relação a atos manifestamente subsumíveis à legislação tributária. Tais normas oferecem, evidentemente, transparência e segurança em relação à prática de determinados atos que geram o direito estatal de exigir tributos.

Lembre-se, por oportuno, que, no âmbito privado, é prática assente o estabelecimento de mecanismos destinados a garantir segurança ao empresariado em geral, de modo a se reduzir o risco do não-recebimento de créditos – e.g., as taxas de juros e os diversos serviços de proteção ao crédito. A adequação destes mecanismos é patente.

Estes métodos privados de garantia de segurança jurídica e econômica, atendem a imperativos da economia contemporânea, e não são, por si, incompatíveis com um regime de proteção aos direitos fundamentais. O direito à intimidade, por exemplo, não resta violado pela simples existência de instrumentos destinados a conferir segurança a certo domínio da vida privada. Para eventual abuso no exercício de tal direito – como ocorre em relação a inúmeras outras liberdades conferidas às pessoas privadas (e.g., liberdade de manifestação, liberdade de expressão intelectual, artística, cientifica, etc.) – prevê o sistema meios de proteção e reparação.


O risco de abusos, em verdade, encontra-se presente em relação a inúmeros outros direitos fundamentais conferidos aos indivíduos. Nesse contexto, a demonstrar que a proteção à intimidade e os chamados “arquivos de consumo” são instituições que não se excluem mutuamente, merece nova transcrição o seguinte pronunciamento do Ministro Sepúlveda Pertence, in verbis:

“A convivência entre a proteção da privacidade e os chamados arquivos de consumo, mantidos pelo próprio fornecedor de crédito ou integrados em bancos de dados, tornou-se um imperativo da economia da sociedade de massas: de viabilizá-la cuidou o CDC, segundo o molde das legislações mais avançadas.” (ADI 1.790, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 8.9.2000)

A disciplina objeto de impugnação na presente Ação encontra justificativa na necessidade de se conferir ao Estado meios seguros para garantir a participação isonômica dos agentes privados no financiamento das atividades públicas.

Considerando exatamente os valores constitucionais cuja realização fundamenta a adoção das normas impugnadas, afirma a da Secretaria da Receita Federal, após encarecer a repercussão do princípio da moralidade administrativa na matéria, verbis:

“61. A lei em comento atende, ainda, aos preceptivos constitucionais referentes à justiça fiscal, à igualdade tributária (CF, art. 150, II), à capacidade econômica ou contributiva (CF, art. 145, § 1º) e à livre concorrência (CF, art. 170, IV).

62. Seria admissível que poucos privilegiados, pessoas naturais e jurídicas, continuassem a agir, sob o manto protetor do sigilo bancário, direito pretensamente indevassável, com o fito de fugirem de suas obrigações tributárias, deixando recair sobre os que menos renda têm, os mais sacrificados, o ônus de suportarem carga tributária desproporcional à sua capacidade econômica ou contributiva? Seria razoável aceitar que um assalariado, com rendimentos anuais de vinte a trinta mil reais, pagasse mais tributos do que aqueles que auferem renda de um milhão de reais em igual período? Seria justo que o cidadão comum, que tem dificuldades de satisfazer suas necessidades básicas e, mesmo assim, pela forma com que obtém seus rendimentos, normalmente provindos do trabalho assalariado, com desconto de imposto de renda na fonte, que paga pontualmente seus tributos, fosse sobretaxado porque a administração tributária federal não pode identificar a ocorrência do fato gerador de tributos que deveriam ser pagos por algumas pessoas físicas e jurídicas do setor empresarial, de profissões liberais e de outros segmentos que lidam com atividades ilícitas, tais como, tráfico de entorpecentes, contrabando, etc?

63. Seria correto a lei permitir que, em nome de um direito supostamente absoluto ao sigilo bancário, determinadas empresas continuassem com suas práticas usuais de reduzir seus preços para restringir a concorrência? Que liberdade de concorrência haveria, se a lei permitisse que empresas concorrentes operassem em condições desiguais, umas pagando impostos, outras não, tudo sob a proteção de um certo direito à intimidade?

64. Quais valores constitucionais deveriam prevalecer na solução dessas questões angustiantes? Seriam aqueles que conflitam com o interesse público, com o interesse da coletividade?

65. Indiscutivelmente, a resposta a todas essas indagações está na Lei Complementar nº 105, de 2001.” (§§ 61 a 65 da anexa manifestação)

Ante o exposto, resta evidente o conjunto de valores constitucionais que inspira a disciplina legislativa ora impugnada. São estes os valores que devem ser considerados e contrapostos a uma eventual e remota afetação da intimidade decorrente das hipóteses acesso a informações relativas a operações financeiras pela autoridade tributária. Cabe analisar, portanto, se a norma veiculada pelo ato impugnado, ao buscar a realização daqueles princípios constitucionais, incorreu em excesso propiciador de violação de outros princípios de igual hierarquia.

Para fazê-lo, haver-se-á de invocar exatamente as já mencionadas máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Como visto, a adequação corresponde à eficácia, entendida no sentido de aptidão para produzir os resultados desejados – no caso, aptidão para a realização dos valores constitucionais dependentes vinculados à tributação. Cuida-se de questão eminentemente técnica ou empírica, razão pela qual se invocam, uma vez mais, as considerações oferecidas pela Secretaria da Receita Federal. Afirma a referida autoridade tributária acerca da “relevância das informações bancárias nos trabalhos de fiscalização tributária federal”:

“66. A necessidade de a administração tributária contar com informações sobre operações e movimentações financeiras para bem administrar tributos, especialmente o imposto de renda, a contribuição social sobre o lucro e a CPMF, apesar de ser fato notório, requer abordagem mais acurada.


67. MARCOS AURÉLIO PEREIRA VALADÃO, em “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar e Tratados Internacionais”, Editora Del Rey, BH, 2000, pág. 279, expõe sua preocupação com o sigilo bancário em relação à atuação do fisco, nos seguintes termos:

“Os problemas decorrentes do sigilo bancário em face das repercussões tributárias dispensam maiores comentários. Em muitos casos as informações de conhecimento das instituições financeiras são os elementos fáticos que provam a existência de obrigações tributárias descumpridas que, às vezes, estão camufladas nos dados apresentados pelo contribuinte à Administração Tributária ou, às vezes, simplesmente não são declaradas. Numa segunda hipótese, pode haver conluio com a própria instituição financeira (por meio de seus agentes), não só por conivência com a atitude de seu cliente, mas também, participando e tirando proveito da ação ilegal.”

68. Condicionar o fornecimento de informações sobre operações e serviços de instituições financeiras à previa autorização judicial significaria inviabilizar o próprio imposto de renda, que a Constituição discrimina como de competência da União. Seria, noutro passo, atribuir aos bancos a incumbência de fiscalizar a CPMF, em substituição ilegítima ao órgão da administração tributária federal, a que as leis, em decorrência de preceitos constitucionais, conferem competência para tal mister. Os dados bancários sobre contas de contribuintes são imprescindíveis à comparação dos valores declarados ao fisco com aqueles efetivamente movimentados em instituições financeiras. Sem esse elemento de apoio às atividades de fiscalização do imposto de renda e da contribuição social sobre o lucro ou o faturamento, o convite à sonegação de tributos estaria lançado e a arrecadação dos tributos, comprometida, com sérios transtornos de ordem financeira, que se refletiriam, inclusive, sobre os cofres dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, tendo em vista sua participação no produto da arrecadação do imposto de renda.

69. O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.729-4/DF (acórdão ainda não publicado), tendo como impetrante o Banco do Brasil e como impetrado o Procurador-Geral da República, reconheceu por maioria de votos que, em se tratando de créditos subsidiados, o Ministério Público pode requisitar diretamente à instituição financeira, sem prévia autorização judicial, os dados bancários de pessoas envolvidas em operações consideradas em princípio como ilegais. Os créditos subsidiados dizem respeito, indubitavelmente, a movimentação de dinheiro público. Esse entendimento pode, igualmente, ser aplicado aos impostos e contribuições, porque, a partir do momento em que são consignados no orçamento do Poder Público, são tidos como dinheiro público. Ora, se os bancos não podem servir de escudo para encobrir condutas ilícitas, praticadas com dinheiro público proveniente de empréstimo subsidiado, com mais forte razão não devem ser usados para encobrir sonegação fiscal de terceiros, uma vez que tal conduta configura crime contra a ordem tributária e causa danos irreparáveis às finanças do Estado.

70. Releva registrar que, no julgamento retromencionado, o Ministro ILMAR GALVÃO, embora não tenha acompanhado a posição adotada pela maioria dos membros do Tribunal, fez consignar em seu voto menção indicadora da imprescindibilidade de acesso pelo fisco a informações sobre contas bancárias e de que, se exceção houvesse à regra do sigilo, no seu respeitável entendimento, revestir-se-ia ela de muito mais plausibilidade relativamente ao fisco do que em relação ao Ministério Público, nos seguintes termos:

“Na verdade, se exceção houvesse à regra, revestir-se-ia ela, inegavelmente, de muito mais plausibilidade, v.g. relativamente à Fiscalização do Imposto de Renda, que há de estar em permanente vigilância, na busca de sinais de riqueza dos contribuintes, do que em relação ao Ministério Público, cuja iniciativa tem em mira casos específicos, em face dos quais o requerimento ao Juiz não acarreta maiores transtornos.” (grifei)

71. Se a Secretaria da Receita Federal dependesse de prévia autorização judicial para obter informações sobre movimentação bancária de contribuintes, sérios inconvenientes de ordem administrativa seriam criados. Além de outros aspectos negativos já salientados, pertinentes ao comprometimento da arrecadação tributária, imagina-se que o Poder Judiciário ficaria cada vez mais sobrecarregado, caso prevalecesse tal tese, pois os órgãos jurisdicionais passariam a constituir verdadeiros balcões de despacho de pedidos de fornecimento de informações, em prejuízo da solução ágil de litígios, tão reclamada ultimamente pela sociedade. Somente da Secretaria da Receita Federal, o Judiciário teria recebido em 1999 cerca de vinte mil pedidos de autorização para fornecimento de informações sobre movimentação bancária de contribuintes, tendo em vista que naquele ano o órgão de administração tributária empreendeu ações fiscais do imposto de renda em 7.819 pessoas físicas e do imposto de renda e da contribuição social sobre o faturamento em 12.840 pessoas jurídicas.


72. BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, em Compêndio de Direito Tributário, Forense, Rio de Janeiro, 1984, pág. 749, ao tratar do direito de o Fisco examinar livros, registros e documentos, transcreve comentário de ALIOMAR BALEEIRO, revestido de toda a pertinência com o tema em estudo, verbis:

“Se o Direito cerca o crédito tributário de garantias e privilégios erga omnes, dando-lhe preferências sobre a hipoteca, assegurando-o por processos judiciais expeditos, etc., seria absurdo que contra o interesse da coletividade, em nome da qual é exercido o poder fiscal, fosse permitido aos indivíduos subtrair ao reconhecimento da verdade, sobre sua indelicadeza para o Fisco, uma prova instituída com finalidade pública.” (grifei)” (§§ 66 a 72 da manifestação anexa).

Consideradas tais asseverações, parece evidente a adequação, eficácia ou aptidão da norma impugnada para permitir a efetiva verificação e constituição do crédito tributário. Este é, evidentemente, um dever indeclinável do Estado, e é razoável que tal dever seja exercido sob o imperativo da eficiência, tal como ocorre em relação a todos os atos administrativos. A ordem jurídica anterior aos atos ora impugnados certamente não atendia a esses imperativos, apresentando manifesta inadequação para a consecução daquele fim.

Ao contrário, ao admitir que parcela significativa dos contribuintes dispusessem de meios seguros para fraudar o sistema tributário, implicava não só a impossibilidade de o Estado fazer cumprir uma de suas funções constitucionais básicas, mas também um quadro de iniquidade, haja vista a indesejada proteção daqueles que não adimpliam, de modo correto, o dever fundamental de financiar as atividades do Estado (em contraposição a essa “imunidade”, é significativa, por exemplo, a situação dos servidores públicos, cujos dados relativos à renda estão permanentemente à disposição do Estado e que se sujeitam, de modo inevitável, ao imposto de renda e à contribuição previdenciária). Para que se tenha presente o absurdo constituído pela sistemática anterior e o sentido da disposição impugnada, considere-se a seguinte narrativa:

“49. Pode-se dizer que, com peculiar acerto, a Lei Complementar nº 105, de 2001, veio para permitir que se ponha cobro a situações insustentáveis, paradoxais, relativamente à observância do princípio constitucional da moralidade administrativa, insculpido no art. 37, caput, da Lei Maior. A título ilustrativo, cite-se o caso das informações referentes à Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – CPMF, em poder da Secretaria da Receita Federal, que, por força do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996, em sua redação original, não podiam ser utilizadas na fiscalização de outros tributos e contribuições de competência da União, também administrados pela Secretaria da Receita Federal. Parece incrível, mas estava grafado, com todas as letras, no referido texto normativo:

“A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua utilização para constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos”. (grifei)

50. Nesse particular, o Senhor Secretário da Receita Federal, em resposta ao Ofício nº 851/2000/5ª CCR, de 18 de setembro de 2000, oriundo 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a qual pretendia acesso às informações da CPMF, chegou a utilizar os termos “paradoxo” e “kafkiano”, para bem caracterizar e expressar situação de absoluto desconforto presente na administração tributária federal, verbis:

“………………………………………………………………………………………

6. Dispõe o art. 142 do Código Tributário Nacional que “Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido e identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade cabível”. Por sua vez, estabelece o art. 6º, I, a, da Medida Provisória nº 1.971-15, de 28 de agosto de 2000, que constitui atribuição privativa do cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal, em relação aos tributos e às contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, constituir, mediante lançamento, o crédito tributário.

7. Tem-se, assim, um paradoxo: a Secretaria da Receita Federal possui as informações que apontam indícios de irregularidade no cumprimento de obrigações tributárias referentes a impostos e a outras contribuições federais, dispõe de competência para efetuar o lançamento, mas não pode fazê-lo porque os dados não estão disponíveis para o fisco utilizá-los em procedimento fiscal conducente à constituição de crédito tributário da União, em virtude de expressa vedação legal.


……………………………………………………………………………………………..

12. Em nenhum momento, a Secretaria da Receita Federal identificou contribuinte, para fins de fiscalização de outros tributos. Se ela não pode, por imperativo legal, utilizar os dados da CPMF para efetuar lançamento de crédito tributário, exceto o lançamento da própria contribuição, não pode, também, adotar os procedimentos preliminares que conduziriam à constituição do crédito, tais como, identificação do sujeito passivo da obrigação tributária, verificação da ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinação da matéria tributável e cálculo do montante dos tributos eventualmente devidos.

……………………………………………………………………………………………..

14. Constrói-se um quadro rigorosamente kafkiano. A Secretaria da Receita Federal deseja, por dever de ofício, iniciar os trabalhos investigatórios, dispõe das informações e, em virtude de restrições legais, não consegue dar cumprimento a sua missão institucional, igualmente prevista em lei, para o que se torna indispensável o concurso do Ministério Público Federal.

…………………………………………………………………………………………….”

51. Inobstante todo o empenho governamental, na ocasião, para aprovar no Congresso Nacional a transferência legítima de informações da CPMF, das instituições financeiras para a Secretaria da Receita Federal, porque são dados de natureza e interesse estritamente tributários, nota-se que o preceito limitador de seu uso passou a funcionar como instrumento de proteção ao sonegador e ao praticante de outros ilícitos tributários repudiados pela sociedade. Nesse período de vigência da CPMF, em que era vedado utilizar suas informações para fiscalizar outros tributos federais, foi possível ao fisco constatar que os “laranjas” e os “fantasmas” vicejavam, com o beneplácito da lei. Assim, uma minoria, constituída de “espertos”, surrupiava recursos, que, em tese, seriam públicos, pois decorrentes de tributos que deveriam ser declarados e pagos à União, em prejuízo de toda a coletividade. Não é possível imaginar que a Constituição de 1988 tenha pretendido esse resultado.

52. Hoje, é fácil certificar-se de que a preocupação daqueles que sustentavam a qualquer preço a tese do direito absoluto ao sigilo bancário não se fundava exatamente nesse pretenso direito, mas, em verdade, no receio de que o fisco pudesse utilizar os elementos informativos da CPMF ou do extinto Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF) para produzir provas incontestes contra eles, com vistas a exigir-lhes o cumprimento de obrigações tributárias. De fato, concordavam com que o fisco tivesse acesso às informações, só não admitiam que fossem utilizadas para cobrança de outros tributos devidos.Em síntese, ficou patenteado que defendiam, no fundo, sob a aparência de um argumento válido, um direito inexistente, o de sonegar tributos.” (§§ 49 a 52 da manifestação anexa da Secretaria da Receita Federal).

As disposições impugnadas buscam, portanto, alcançar situações em que a Administração não dispõe de meio adequado para garantir a correta avaliação da ocorrência ou não de fato gerador da obrigação tributário. Não há dúvida de que a adoção de mecanismo destinado a identificar, de modo preciso, os atos que ensejam a incidência da norma tributária, é o meio adequado para se assegurar o cumprimento efetivo e isonômico do dever estatal de tributar.

Vencido o requisito da adequação, coloca-se a questão relativa à necessidade – isto é, a questão relativa a saber se o meio empregado para a realização dos fins constitucionais tributários não poderia vir a ser substituído, com menor gravame para os afetados, por alternativa igualmente eficaz. Nesse ponto, pretende-se promover nova inversão da correta posição da questão constitucional. Como já referido, parte a impugnação da pressuposição de que toda e qualquer informação bancária encontra-se sujeita à reserva de jurisdição. Com isso, chega-se mesmo a invocar – muito embora não o faça explicitamente o Requerente – o direito de proteção judiciária inserto no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal para sustentar que a dispensa da intervenção judiciária prévia deslegitimaria o acesso a informações relativas a operações financeiras. A alegação afigura-se absurda. De início, somente seria legítimo presumir ser menos gravoso o acesso a informações relativas a operações financeiras mediante prévia autorização judicial se fosse correta a presunção de ilegitimidade da atuação da administração tributária. Tal presunção afigura-se rigorosamente contrária à presunção de legitimidade de que são dotados os atos administrativos – por cuidar-se de lição básica do direito administrativo, vide, por todos, MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1993, 18ª ed., p. 141.


Se tal argumento fosse válido, seria sempre possível sustentar que a prévia manifestação judicial seria menos gravosa do que todo e qualquer exercício do poder de polícia pelo Estado, o que implicaria a eliminação definitiva da auto-executoriedade dos atos administrativos e lançaria séria dúvida sobre a eficiência de manter-se uma estrutura administrativa de fiscalização tributária (então plena e desejavelmente suscetível de substituição pelo Poder Judiciário). Cuida-se de uma claríssima inversão da ordem apta a assegurar o exercício de suas prerrogativas constitucionais pela Administração Pública e de uma falácia.

A inversão consiste na circunstância de que a presunção de legitimidade dispensa o recurso prévio a uma convalidação judicial dos atos administrativos – presumivelmente legítimos -, transferindo antes ao particular recalcitrante o ônus de impugná-los em juízo. A falácia, por sua vez, reside na circunstância de que a revisão judicial – inclusive àquela levada a efeito, em caráter cautelar, imediatamente após a edição e, em geral, antes da produção dos efeitos próprios do ato administrativo – jamais se encontrou vedada pela normação impugnada, restando intacto o direito inserto no art. 5º, XXXV, da Carta Magna.

A esse respeito, são precisas as lições de Hely Lopes Meirelles, que explicita todos os pontos invocados e evidencia os custos adicionais para a Administração tributária de recorrer a todo o momento à convalidação judicial de seus atos como condição de sua eficácia própria, verbis:

“A auto-executoriedade consiste na possibilidade que certos atos administrativos ensejam de imediata e direta execução pela própria Administração, independentemente de ordem judicial.

Os autores mais modernos não se cansam de apontar esse atributo nos atos administrativos que o possuem. Entretanto, as nossas Administrações se mostram tímidas na sua utilização e a nossa Justiça, nem sempre atualizada com o Direito Público, em pronunciamentos felizmente raros, tem pretendido condicionar a execução de atos tipicamente auto-executórios a prévia apreciação judicial. Mas, em contraposição a esses julgados esporádicos e errôneos, firma-se cada vez mais a jurisprudência da boa doutrina, reconhecendo à Administração – especialmente quanto aos atos de polícia – o poder de executar direta e imediatamente seus atos imperativos, independentemente de pedido cominatório ou mandado judicial.

Realmente, não poderia a Administração bem desempenhar sua missão de autodefesa dos interesses sociais se, a todo momento encontrando natural resistência do particular, tivesse que recorrer ao Judiciário para remover a oposição individual à atuação pública.

O que se faz necessário – como bem adverte Bielsa – é distinguir os atos próprios do poder administrativo, na execução dos quais é irrecusável a auto-executoriedade, dos que lhe são impróprios e, por isso mesmo, dependentes da intervenção de outro poder, como ocorre com a cobrança contenciosa de uma multa, que em hipótese alguma poderia ficar a cargo exclusivo dos órgãos administrativos. Mas as prestações tipicamente administrativas, principalmente as decorrentes da utilização do poder de polícia, podem ser exigidas e executadas imediata e diretamente pela Administração, sem necessidade de mandado judicial. Tal o que acontece com as interdições de atividades ilegais, como os embargos e demolições de obras clandestinas, com a inutilização de gêneros impróprios para o consumo e outros atos de polícia administrativa.

Ao particular que se sentir ameaçado ou lesado pela execução do ato administrativo é que caberá pedir proteção judicial para obstar à atividade da Administração contrária aos seus interesses, ou para haver da Fazenda Pública os eventuais prejuízos que tenha injustamente suportado.” (MEIRELLES, op. cit., pp. 143-145).

Crítica semelhante é veiculada pela Secretaria da Receita Federal, nos seguintes termos:

“48. Deve-se ter presente que a circunstância de a lei complementar não exigir prévia autorização judicial não significa violação de qualquer direito ou garantia individual. Primeiro, porque o sigilo das informações transferidas ao fisco é preservado em toda a sua integridade. A ele se obriga a administração tributária e seus agentes, sob pena de responsabilidade criminal e administrativa. Segundo, porque qualquer violação aos limites legalmente impostos às requisições do fisco ou qualquer abuso verificado na utilização das informações bancárias recebidas pelo fisco poderá e deverá ser sempre controlado pelo Poder Judiciário, mediante provocação do interessado, consoante disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição. Assim, não parece razoável imaginar a necessidade de um processo judicial de exibição de documentos ou apresentação de informações, envolvendo citação, defesa e recursos, para que a administração tributária federal possa obter cada documento e informação, necessários à apuração de cada fato que possivelmente venha a dar origem a um processo administrativo-fiscal, …” (§ 48 da manifestação anexa).


A necessidade do acesso por parte da Administração tributária a informações relativas a operações financeiras decorre assim do imperativo normativo de preservar a presunção de legitimidade e a auto-executoriedade dos atos administrativos, do imperativo factual de fazer frente a “relações massificadas de crédito” e da atuação da receita, ao contrário do Ministério Público, junto a um universo imensurável de operações em tese aptas a originar fatos geradores do tributo (tal como afirmaram os Ministros Sepúlveda Pertence e Ilmar Galvão, nos já referidos julgamentos da ADIn nº 1.790 e do MS nº 21.729-4/DF). Assim, o meio é necessário, porque a alternativa indicada reduz a eficiência da atuação administrativa (isto é, não é igualmente eficaz) e nem se afigura necessariamente menos gravosa que a atuação administrativa – que, além de presumivelmente legítima, constitui, na espécie, mera operação fundada em dados já disponíveis. Com efeito, o meio é necessário, pois somente se dotada da auto-executoriedade que lhe confere o texto constitucional poderá a administração e fiscalização tributária maximizar o princípio da eficiência e realizar, em toda a sua plenitude, os imperativos decorrentes do § 1º do art. 145 da Constituição Federal.

Por fim, impõe-se considerar a proporcionalidade em sentido estrito. Nessa esfera, impende cotejar os custos ou gravames para o atingido com os benefícios para a realização dos valores constitucionais contrapostos, com o escopo de determinar-se a existência de uma relação racional e justificada entre esses e aqueles. Nessa passagem, parece inegável a proporcionalidade das normas impugnadas. As considerações precedentes indicaram que a informação dotada de “transcendência econômica ou tributária” nenhuma relação mantém com a intimidade ou a privacidade de pessoa alguma e que, na hipótese específica sob exame, não se confere à administração tributária nenhuma informação adicional àquelas de que ela já dispunha, autorizando-se tão-somente o ato óbvio de cotejar todas as informações já disponíveis e preservando-se – sob a forma de sigilo fiscal – o caráter reservado dessas informações.

A isso, acrescente-se que a invocação de sigilo fiscal contra a fiscalização tributária constitui alegação absurda e materialmente insuscetível de produzir dano algum. Com isso, parece necessário reconhecer que será nula ou, se houver, mínima eventual imposição de gravames aos indivíduos em decorrência da adoção da norma impugnada. Por outro lado, o significado e a contribuição de tais normas para a eficiência da fiscalização tributária, o combate à sonegação e às demais atividades ilícitas, a arrecadação tributária, a justiça tributária, a realização dos imperativos constitucionais de observar-se a capacidade contributiva do contribuinte e o caráter pessoal dos tributos, por meio da precisa identificação da renda, do patrimônio e das atividades dos contribuintes, e, em última análise, as prestações sociais do Estado fiscal é, do ponto vista econômico, absolutamente extraordinário (como demonstra o documento anexado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional que expõe a gigantesca desproporção entre rendimentos e valores movimentados) e inigualável em volume, celeridade e eficiência, ao passo que, do ponto de vista moral, jurídico e institucional, o benefício propiciado pela medida é rigorosamente inestimável. Nessa medida, é inconstestável a proporcionalidade em sentido estrito da medida, que somente se haveria de por em dúvida em uma intolerável submissão da noção última de prevalência do interesse público.

7. DA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS À CONCESSÃO DE LIMINAR

As razões acima expostas acerca de cada impugnação explicitaram a absoluta ausência de plausibilidade jurídica das alegações, afastando o atendimento ao requisito consubstanciado no fumus boni iuris e inviabilizando a concessão da medida cautelar pleiteada. Do mesmo modo, encontra-se ausente o periculum in mora indispensável à concessão da medida cautelar.

No que toca ao pedido de liminar, mais uma vez se evidencia o déficit de fundamentação da presente Ação. Em especial, quanto à alegação de periculum in mora, o Requerente limita-se a afirmar que da aplicação dos dispositivos impugnados “já resultam sérias lesões dos direitos e garantias dos comerciantes e cidadãos que ficarão à margem da Constituição”, gerando as supostas inconstitucionalidades “indiscutíveis conseqüências negativas”, havendo “prejuízo para a cidadania decorrente de eventual retardamento da decisão postulada” pois a Lei 10.174 “permite, desde logo, a quebra dos sigilos fiscal e bancário pelas autoridades da Receita Federal, sob o argumento de combater a sonegação”, sem demonstrar em que medida essa alegação genérica evidenciaria a presença desse requisito para a concessão da cautelar.


Em hipótese bastante similar à dos autos, este Supremo Tribunal Federal, embora reconhecendo a relevância da matéria, entendeu não estar caracterizado o periculum in mora, a ensejar a concessão da liminar requerida. Cuidava-se do julgamento da ADIn 1.488, no qual se examinava a denominada lei da interceptação telefônica. Esta Corte, por unanimidade, acompanhou voto do Eminente Relator, Ministro Néri da Silveira, no seguinte sentido:

“Dá-se porém, que não se demonstrou a ocorrência de periculum in mora a justificar, desde logo, se suspenda a vigência do parágrafo único do art. 1º da Lei n.º 9296, de 1996. A matéria, por certo, está a merecer amplo debate, em face da necessidade de se definirem os limites conceituais do que efetivamente se tenha por definitivo como “comunicação de dados”, qual está posta esta fórmula no art. 5º, XII, da Constituição, inclusive, à vista do progresso acelerado das conquistas da informática e da constituição de redes de transmissão de dados ou de acesso a informações em bancos de dados, nos dias em curso.

[…] Não vejo, assim a inconveniência sequer prossiga em vigor essa norma legislativa, até o julgamento final da presente ação, esclarecendo, ademais, que as informações dos requeridos já se encontram nos autos.” (DJ 26.11.99, p. 83)

Igualmente, na presente Ação, conforme já demonstrado, não há uma posição definitiva deste Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, razão pela qual é plenamente aplicável o entendimento acima referido neste processo. Pelo mesmo motivo, não se verifica a conveniência de concessão da liminar.

Como se não bastasse, não se pode perder de vista que a legislação vergastada não impõe qualquer ato gravoso. Seu objetivo expresso é autorizar à Secretaria da Receita Federal cruzar dados que já possui, não implicando tal cruzamento em qualquer violação de direitos fundamentais de terceiros

Manifesta, portanto, a absoluta falta dos pressupostos para a concessão da liminar.

8. CONCLUSÃO

As razões ora expostas evidenciam inexistir os requisitos de plausibilidade jurídica da impugnação e do periculum in mora necessários à concessão da medida cautelar pretendida. Do mesmo modo, não se vislumbram razões para o deferimento definitivo dos pedidos cujo exame a Advocacia-Geral da União reserva-se ainda o direito de, oportunamente, levar a efeito.

Em virtude da relevância e da complexidade da matéria em questão e do inequívoco interesse público envolvido, seria oportuna, de logo, e antes da apreciação do pedido de liminar, a solicitação da manifestação do Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República.

Eram esses, Senhor Advogado-Geral da União, os elementos e considerações tomados por oportunos para consubstanciar as informações presidenciais preliminares a encaminhar, por Mensagem, ao Colendo Supremo Tribunal Federal, uma vez aprovados por Vossa Excelência.

Brasília, 05 de fevereiro de 2001.

André Serrão Borges de Sampaio

Consultor da União

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