Defesa da União

Continuação – AGU é favorável…

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6 de fevereiro de 2001, 13h51

Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.”

De início, importa considerar a espécie de normas a que pertencem os dispositivos transcritos.

7.1.a) Dos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001, como Normas Integrantes e Instituidoras de um Complexo de Organização e Procedimento

O caput do art. 5º – bem como o art. 6º – da Lei Complementar nº 105, de 2001, impõe ao Poder Executivo o dever de procedimentalizar o acesso a informações relativas a operações financeiras, isto é, o dever de adotar normas de organização e procedimento para o fim de determinar-se um devido processo legal administrativo para o acesso a tais informações e, com isso, evitar a lesão a quaisquer direitos, bens ou valores constitucionais, legitimando e submetendo à controle a atuação estatal.

Como sabido, os direitos à organização e ao processo constituem espécie dos direitos a prestações positivas, a saber, direitos a prestações positivas de caráter normativo, ou seja, o direito à edição de leis que estabelecem normas organizatórias e procedimentais que ampliem a proteção das posições jurídicas dos cidadãos. Cuida-se, portanto, de uma pretensão exigível frente ao Estado no sentido de que adote normas organizatórias e procedimentais aptas a garantir a observância de direitos, interesses e prerrogativas dos titulares de direitos fundamentais quando do exercício de prerrogativas administrativas ou judiciais, orientando direitos a prestações normativas com a teleologia dos direitos de proteção.

Corroborando tais considerações, a matéria viu-se assim tratada pelo principal teórico da análise jurídica dos direitos fundamentais na República Federal da Alemanha, verbis:

“Los derechos a procedimientos judiciales y administrativos son esencialmente derechos a una ‘protección jurídica efectiva’. Condición de una efectiva protección jurídica es que el resultado del procedimiento garantice los derechos materiales del respectivo titular de derechos.

Una comparación de los derechos a procedimiento en sentido estricto con los derechos a competencias de derecho privado muestra claramente los diferentes objetivos que se persiguen en el ámbito de la organización y el procedimiento. Mientras que los derechos a competencias de derecho privado aseguran, sobre todo, la posibilidad de que puedan realizarse determinadas acciones iusfundamentalmente garantizadas, los derechos a procedimiento en sentido estricto sirven, en primer lugar, para la protección de posiciones jurídicas existentes frente al Estado y frente a terceros. Por ello, es posible tratar a estos últimos también dentro del marco de los derechos a protección.” (ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 472 e 474).

É induvidoso, destarte, que o respeito aos direitos à organização e ao procedimento deve ser perquirido em face das normas que se editarem para o fim de introduzir-se a proteção a direitos fundamentais. De fato, somente o exame do conteúdo das concretas normas de organização e procedimento editadas é que haverá de permitir uma conclusão segura acerca da consistência da normação editada com os direitos fundamentais a tutelar. Traduz-se aqui, destarte, uma clara hipótese em que a compatibilidade de determinada regulação com o texto constitucional depende do exame de todo o complexo normativo afetado e, de modo algum, afigura-se compatível com a fixação de um juízo apriorístico acerca de determinadas exigências ou proibições absolutas decorrentes dos direitos fundamentais invocados.

Sempre que se verificam direitos à organização e ao procedimento, é preciso ter presente que a regulação editada, ao invés de restringir direitos fundamentais, assume antes a posição de conformá-los, concretizá-los e garanti-los. A lei passa a atuar, portanto, como instrumento de concretização e não de violação de direitos fundamentais. Acerca da “conformação de direitos fundamentais através da organização, procedimento e processo”, afirma Canotilho a óbvia necessidade de apreciação de todo o complexo normativo constitucional e infraconstitucional e das sutis e inexoráveis relações normativas decorrentes, verbis:

“As relações entre direitos fundamentais e direito legal discutem-se também, na recente dogmática constitucional, a propósito das formas de interacção entre direitos fundamentais, organização e procedimento.

O conceito de organização interessar-nos-á aqui como ordenação e conformação interna de unidades organizatórias (exemplo: organização do serviço público de radiodifusão, organização das universidades). O conceito de procedimento é acolhido no sentido de um complexo de actos: (1) juridicamente ordenados; (2) destinados ao tratamento e obtenção de informação; (3) que se estrutura e desenvolve sob a responsabilidade de titulares dos poderes públicos; (4) serve para a preparação da tomada de decisões (legislativas, jurisdicionais, administrativas). Fala-se, assim, em procedimentos disciplinar, procedimento de elaboração de planos urbanísticos, procedimento de concursos públicos” (CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 651).


Entre as várias espécies de direitos à organização e ao procedimento, opera, na espécie dos autos, aquela relativa ao procedimento como “pré-efeito da garantia do direito fundamental”, em que se evidencia a relação normativa que se desenvolve entre os direitos fundamentais a proteger e a normação relativa à organização e ao procedimento editada para tal fim. Uma vez mais, esclarece a matéria Canotilho:

“Neste caso trata-se do seguinte: em certos direitos impõe-se a existência, com valor preventivo, de um procedimento a criar por lei, e que sirva de ‘guarda de flanco’ de posições jurídico-materiais garantidas pelos próprios direitos fundamentais. … Neste caso, coloca-se ainda o problema de saber se a posição garantida por lei é ainda uma posição constitucional fundamental mediata (concretizada por lei) ou se estamos perante uma posição exclusivamente legal” (CANOTILHO, op. cit., p. 652).

Como visto acima (item 3 da presente manifestação), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é suficientemente complexa, matizada e analítica para afirmar que a proteção constitucional da intimidade, da privacidade e do sigilo das comunicações está sujeita à conformação por lei (RE 219.780, op. cit.), não é sinônimo absoluto de reserva de jurisdição (MS 23.480, op. cit. e manifestação do Ministro Moreira Alves, no MS 23.452, op. cit.), exige um procedimento que assegure a consistência da hipótese de quebra e a preservação do caráter sigiloso de tais informações (MS 23.452, op. cit. e inúmeras e notórias outras decisões sobre CPI’s).

As decisões oferecidas pelo Supremo Tribunal Federal admitem claríssima sistematização no sentido de exigirem-se normas de organização e procedimento que viabilizem o controle e a consistência da atuação do Estado bem como a proteção de prerrogativas individuais dos afetados.

Para tanto, basta examinar a circunstância de que mesmo as Comissões Parlamentares de Inquérito, expressamente autorizadas a proceder às referidas quebras, encontram-se sujeitas a deveres mínimos de consistência e preservação dos direitos individuais (a saber: dever de fundamentação de acesso à informação, consistência dessa fundamentação, finalidade própria e específica do acesso à informação e manutenção do sigilo das informações obtidas). Com isso, parece legítimo presumir que a proteção de tais direitos vincula-se à existência de um procedimento que os assegure e não a uma determinada forma específica para tal procedimento.

Tais considerações permitem explicitar o primeiro equívoco básico em que se funda a impugnação oferecida na inicial: a confusão ou a imprópria equiparação mecânica entre, por um lado, a existência de um procedimento que assegure a proteção dos direitos fundamentais dos cidadão e, por outro lado, a exigência de intervenção judicial. Ora, esse grande equívoco reside em presumir a ilegitimidade do devido processo legal administrativo e em exigir, de modo absoluto, um devido processo legal exclusivamente judicial.

Como adiante se demonstrará, uma tal formulação nulifica os atributos – unanimemente reconhecidos pela doutrina do direito público – de presunção de legitimidade e autoexecutoriedade do atos administrativos, contrariando e retirando qualquer eficácia aos princípios constitucionais da impessoalidade e da eficiência da Administração Pública.

A inicial comete a gravíssima incorreção de presumir que toda a atuação administrativa potencialmente apta a afetar indivíduos exigiria a intervenção judicial prévia, o que, firmado como precedente, descaracterizaria mesmo o poder de polícia administrativo e, por imposição do já mencionado princípio da eficiência inserto no caput do art. 37 da Constituição Federal, haveria de permitir a indagação sobre o sentido de manter-se a fiscalização tributária em âmbito administrativo.

Em uma palavra, deve existir um devido processo legal para o acesso a informações relativas a operações financeiras, mas nada exige seja judicial o caráter de tal procedimento, pois os direitos fundamentais não são sinônimo de reserva de jurisdição.

Tal procedimento prévio não só não precisa ser judicial como também não afasta o controle judicial a posteriori – a regra na atuação administrativa. De fato, a presunção de legitimidade e a autoexecutoriedade dos atos administrativos afasta o controle judicial prévio – assim como se dá com o controle de constitucionalidade de normas ou a fiscalização e controle pelos Tribunais de Contas. Ao contrário do que sugerem alguns, não se trata de opor a fiscalização tributária ao Poder Judiciário, mas antes de explicitar que o controle judicial dá-se, via de regra, a posteriori.

O argumento indemonstrado da inicial é a razão pela qual o devido processo legal prévio e necessário para o acesso a dados relativos a operações financeiras deva ser judicial e não administrativo. Haverá um devido processo legal administrativo e prévio, sujeito ao exame definitivo do Poder Judiciário em um devido processo legal judicial que, posterior à edição do ato administrativo, pode inclusive ser prévio a sua aplicação ou à produção de seus efeitos pela via do poder geral de cautela ínsito à jurisdição e plenamente eficaz – tal como o demonstra a experiência com as Comissões Parlamentares de Inquérito.


Assim, não adimple a inicial o dever mínimo de demonstrar porque se afiguraria inexorável a intervenção judicial prévia à própria edição do ato administrativo e de identificar – por meio do exame analítico do devido processo legal administrativo de acesso a informações sobre operações financeiras por parte da fiscalização tributária – eventuais ilegitimidades ou insuficiências nas normas de organização e procedimento que disciplinam o acesso a tais informações.

Apenas para oferecer uma ilustração breve da possibilidade de preservação administrativa do sigilo de informações bancárias, considere-se a ausência de desvio de finalidade e abuso de poder por parte do Banco Central do Brasil relativamente a essas mesmas informações que já se lhe encontram confiadas.

Nessa medida, a eventual existência de direitos fundamentais potencialmente afetados por qualquer atuação administrativa está a exigir a vigência de normas de organização e procedimento conformes à proteção de tais direitos individuais. O resultado normativo passa a ser, destarte, a necessidade de que sejam editadas tais normas de organização e procedimento – dever cujo inadimplemento haveria de ou tornar inaplicável a norma que autorizasse o acesso a informações ou mesmo caracterizar inconstitucionalidade por omissão a ser veiculada pela via própria do controle abstrato de normas – bem como de que tais normas afigurem-se aptas a proteger tais direitos fundamentais.

Os arts. 5º e 6º acima transcritos bem como as demais normas integrantes do complexo normativo em que se inserem constituem exatamente o reconhecimento desse direito à organização e ao processo, explicitando o dever interno à administração de disciplinar seus procedimentos bem como oferecendo já os parâmetros fundamentais e os fins a perseguir em tal disciplina.

Diante da existência de normas que disciplinam o devido processo legal administrativo de acesso a informações, a questão transfere-se para o exame analítico das normas disciplinadoras de tais procedimentos administrativos para o fim de averiguar sua compatibilidade e suficiência em face do dever de proteção de direitos fundamentais.

Assim colocada a questão relativa ao caráter das normas impugnadas, passamos a expor o sentido e o alcance das normas impugnadas.

7.1.b) Do Sentido e do Alcance das Normas Insertas nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar Impugnada e de sua Absoluta Compatibilidade com os incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal

É verdadeiramente inegável que o caput do art. 5º impõe ao Poder Executivo o dever de disciplinar “os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços”, adiantando já que, entre tais critérios, figurarão a “periodicidade” e os “limites de valor”. A seguir, introduz o § 1º do mesmo artigo, por meio de seus quinze incisos, a necessária, analítica e exaustiva caracterização das operações financeiras a que se refere o caput. Aqui importa considerar que a imensa maioria das operações financeiras ali caracterizadas jamais haverão de importar violação ou exposição da intimidade, da privacidade ou da comunicação de dados de pessoa alguma.

Com efeito, operações semelhantes a aplicações absolutamente padronizadas (e, portanto, generalizadas, difundidas e objetivas) jamais haverão de expor, em grau algum, a intimidade ou a vida privada alheias – e nenhuma relação mantém com a comunicação de dados. Assim se dá na hipótese de “resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança” (inciso IV do mesmo § 1º).

Também são rigorosamente impessoais, padronizadas ou generalizadas as operações de “descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito” (inciso VI), “aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável” (inciso VII), “aplicações em fundos de investimentos” (inciso VIII), “aquisições de moeda estrangeira” (inciso IX), “conversões de moeda estrangeira em moeda nacional” (inciso X), “operações com ouro, ativo financeiro” (inciso XII), as quais, em momento algum, haveriam, dada a sua já referida objetividade, de alcançar ou ferir direitos afetos à intimidade, à vida privada ou a quaisquer informações apta a revelar segredos de caráter pessoal.

A isso, acrescente-se que tais operações afiguram-se “intransitivas”, isto é, não se trata de estabelecer intercâmbios com outras pessoas individualizadamente identificadas, mas tão-somente de operar, de modo solipsista ou isolado, com fundos padronizados ou sistemas globais e novamente impessoais. Também se afigura intransitiva a operação de “depósitos à vista ou a prazo, inclusive em conta de poupança” (inciso I do referido § 1º do art. 5º da LC 105, de 2001) se os titulares de tais contas forem também os depositantes.


Relativamente às operações descritas nos incisos I (se distintos o titular da conta e o depositante), II, III, V, XI, XIII e XIV do mesmo § 1º do art. 5º da LC nº 105, de 2001, poder-se-ia argumentar – de modo fragmentário e incorreto – que se afiguram potencialmente transitivas ou reveladoras da natureza dos gastos efetuados. Tais riscos, todavia, restaram afastados pela imposição normativa constante do § 2º do mesmo artigo.

Com efeito, o mencionado § 2º afastou tais riscos ao restringir o alcance positivo das informações a serem prestadas bem como a vedar específica e expressamente a prestação de determinadas informações. Por meio desse § 2º, as informações transferidas “restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados”, quedando “vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados”.

Com isso, explicitou-se o caráter estritamente contábil e tributário da informação acessível à fiscalização e vedou-se expressamente já na própria Lei Complementar nº 105, de 2001, a possibilidade de conferir-se qualquer caráter transitivo ou revelador da natureza dos gastos quando da concessão das informações relativas às operações constantes dos incisos I (se distintos o titular da conta e o depositante), II, III, V, XI, XIII e XIV do § 1º do art. 5º acima transcrito. Parece evidente, por conseguinte, a impossibilidade de lesar-se direito algum com a concessão de informações sujeitas a tal disciplina.

O § 3º do mesmo art. 5º não mantém relação alguma com os direitos fundamentais constantes dos incisos X e XII da Constituição Federal invocados na inicial.

O § 4º, por sua vez, autoriza o acesso a informações e documentos complementares àqueles mencionadas no § 2º tão-somente na hipótese de detecção de “indícios de falhas, incorreções ou omissões” ou de “cometimento de ilícito fiscal”, o que constitui exigência igualmente adicional de consistência e finalidade específica no acesso a informações. Tal como relata a Secretaria da Receita Federal, “essa regra, conjugada com a do § 2º, objetiva racionalizar os trabalhos de prestação de informações bancárias ao fisco federal, na medida em que o detalhamento de dados sobre operações e serviços de instituições financeiras pode ser requisitado somente caso a caso e, assim mesmo, apenas na hipótese de haver indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, nas informações recebidas pelo órgão da administração tributária da União” (§ 11 da manifestação anexa).

Por fim, o § 5º do art. 5º acima transcrito evidencia que não se há de falar, na hipótese descrita, de quebra de sigilo bancário, mas tão-somente de sua transferência à autoridade tributária (tal como o sustenta a manifestação anexa da Secretaria da Receita Federal). Somente haveria efetiva quebra de sigilo se as informações acessíveis à fiscalização tributária passassem a circular livre e desembaraçadamente junto a terceiros – tal como ocorre com as informações comercializadas pelas entidades privadas de proteção do crédito ou de controle de risco de crédito, cujas práticas o Supremo Tribunal Federal considerou compatíveis com a Constituição Federal (ADIn 1.790, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 08.09.2000).

Na hipótese dos autos, existe uma típica norma de organização e procedimento que garante que “as informações a que se refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal”, observado o devido processo e as exigências decorrentes da “legislação em vigor”, o que implica tão-somente uma transferência do sigilo, que deixa de ser bancário e assume a forma de sigilo fiscal.

O mesmo dever de sigilo fiscal e a conseqüente restrição do acesso a informações a uma mera transferência do dever de sigilo alcança as autoridades e os agentes tributários. Com efeito, ao facultar-lhes “examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras”, o art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001, introduziu, em seu parágrafo único, o mesmo dever de guardar sigilo fiscal acerca de tais informações.

Do mesmo modo, o caput do referido dispositivo estabeleceu a obrigação geral de vincular-se à organização e ao procedimento ao determinar que o acesso a tais informações dar-se-á tão-somente “quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”, impondo não só o ônus de consistência da razões e especificidade do fim a perseguir, mas também, e sobretudo, o dever de observar as normas relativas aos procedimentos fiscal e administrativo.


A esta altura, deve restar manifesta a circunstância de que as informações a que terá acesso a autoridade tributária não só não alcançam a intimidade e vida privada como também não constituem – sobretudo, se se tem presentes as normas de organização e procedimento que disciplinam o acesso e o uso de tais informações – espécie alguma de interceptação da comunicação de dados. Ocorre, todavia, que tais normas integram um complexo normativo de organização e procedimento sobre cuja legitimidade somente se pode julgar após a apreensão de sua conformação integral.

Trata-se, de fato, de complexo normativo incindível, cuja compatibilidade com a Carta Magna deve ter presente a finalidade desse feixe de normas de organização e procedimento como um instrumento assecuratório de direitos fundamentais. Muito embora as demais normas integrantes desse complexo incindível ou não se encontrem mencionadas ou, muito menos, analítica e especificamente impugnadas na inicial, parece necessário explicitar seus conteúdos particulares, o que ora se faz por meio da consideração do sentido e do alcance do Decreto nº 3.724, de 10 de janeiro de 2001.

7.1.c) Do Complexo Normativo em que se Insere a Lei Complementar Impugnada: o Decreto nº 3.724, de 2001

O Decreto referido, por sua vez, constitui a concretização normativa última do dever de organização e procedimento decorrentes da norma inserta no art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001. Já o denuncia a sua ementa, segundo a qual o Diploma “regulamenta o art. 6o da Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, relativamente à requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas”.

A tal respeito, assevere-se que não se impugna o fato de tal normação haver sido veiculada por meio de Decreto. Com efeito, sequer seria possível fazê-lo, pois se cuida de norma de organização e procedimento interna à própria Administração Pública – e, portanto, de um típico regulamento de execução, nos termos do art. 84, IV, da Constituição Federal. A isso, acrescente-se que, tal como acima exposto, tal norma não opera a restrição de direitos fundamentais, mas antes vem estabelecer disciplina da organização e procedimento da fiscalização tributária exatamente em favor da máxima eficácia daqueles direitos.

Por fim, assevere-se que são a doutrina e a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que admitem a existência de regulamentos autorizados – espécie absolutamente distinta do regulamento autônomo – em que se legitima a adoção de regulamentos para operacionalizar prescrições legais responsáveis pela indicação das finalidades e das matérias a disciplinar. Admitindo a legitimidade do regulamento autorizado, leciona o Ministro Carlos Mário Velloso, eminente Presidente do Egrégio Supremo Tribunal Federal, forte na doutrina nacional e comparada bem como – e sobretudo – na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

“Já o regulamento delegado ou autorizado (item 5) intra legem, é admitido pelo Direito Constitucional brasileiro, claro, porém, que não podem ‘ser elaborados praeter legem, porquanto o seu campo de ação ficou restrito à simples execução de lei’.

Votando no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Aliomar Baleeiro traçou os contornos desse regulamento, exatamente como admitido pelo Direito brasileiro: se a lei fixa exigências taxativas, é exorbitante o regulamento que estabelece outras, como é exorbitante o regulamento que faz exigência que não se contém nas condições exigidas pela lei. Mas, acrescentou o Ministro Baleeiro:

‘Meu voto confirmaria o v. acórdão se a Lei 4.862 expressamente autorizasse o regulamento a estabelecer condições outras, além das que ela estatuir. Aí, não seria delegação proibida de atribuições, mas flexibilidade na fixação de standards jurídicos de caráter técnico, a que se refere Stati’.

Esse é, aliás, o tipo de regulamento que a Corte Suprema americana tem permitido, sem embargo de consagrar a Constituição dos EUA de 1787, a separação dos Poderes e estabelecer, expressamente, no seu art. 1º, Sec. I, que ‘All legislative powers herein granted shall be vested in a Congress of the United States, which consist of a Senate and House of Representatives’ (Todos os poderes legislativos conferidos por esta Constituição serão confiados a um Congresso dos EUA, composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes).

É que, como anota Bernard Schwartz, ‘segundo a atual teoria americana, o poder Legislativo pode ser conferido ao ramo executivo, desde que a outorga de autoridade seja limitada por determinados padrões’. Em United States v. Chicago, M., St. P. and. P.R.R., 282 U.S. 311, 324 (1931), a Suprema Corte decidiu que ‘o Congresso não pode delegar qualquer parte de seu poder legislativo exceto sob a limitação de um padrão estabelecido’. Acrescenta Schwartz: ‘O arbítrio conferido não pode ser tão amplo que se torne impossível discernir os seus limites. Outrossim, precisa haver certa intenção legislativa com a qual se deve harmonizar o exercício do poder delegado,’ certo que, ‘a menos que o ato de delegação de poderes contenha um padrão – limite ou orientação com respeito ao poder conferido que se possa exercer -, ele será inválido ou nulo’.


Em voto proferido no Tribunal Federal de Recursos, o Ministro Armando Rollemberg, em tema de imposto de renda, expressou a melhor doutrina e manteve decreto regulamentar que mandava excluir as provisões do capital invertido, por isso que, ao assim proceder, o regulamento não contrariou a lei regulamentada, mas apenas explicitou-a. Vale a transcrição do voto, para se verificar como o Ministro soube distinguir a delegação do poder de legislar, que é proibida, ‘da autorização para completar os contornos da lei, desenvolvendo-a dentro de órbita circunscrita’

Escreveu o Ministro Rollemberg:

‘Examinei, tendo em conta tais princípios, a regra do art. 44 do Decreto 24.239, de 1947, e, sem embargo dos fundamentos do voto vencido e das lúcidas razões do procurador da embargante, não me convenci de que ali houvesse exorbitância na regulamentação da Lei 154, do mesmo ano. Esta, ao fixar o critério para o pagamento do imposto de renda pelas empresas concessionárias de serviço público, utilizou como elemento o capital invertido para a obtenção do lucro, de cujo cômputo o regulamento excluiu as provisões. O que se há de indagar, portanto, é se tal exclusão é contrária à lei, ou se, ao invés disso, estava implícita na norma legal, o que afinal importa em perquirir se as provisões são ou não utilizadas pelas empresas para a obtenção de lucro.

A resposta há de ser buscada no exame da natureza das provisões.

Que são elas afinal? São fundos ‘destinados a amparar situações indecisas ou pendentes, que passam de um exercício para outro’, di-lo Miranda Valverde (Sociedade por ações, v. 2, n. 676), que ‘correspondem à existência de um risco efetivo, de sorte que sua inscrição no balanço corresponde a uma necessidade’, afirmam Hamel e Lagarde (Traité de droit commercial, 1954, v. 1, n. 722). Destinam-se a fazer face a perdas e encargos eventuais comprovados, esclarecem Duverger (Finances publiques, 5. ed., p. 533) e Louis Trotabas (Finances publiques, 1964, p. 408).

Ora, se as provisões têm por finalidade acudir perdas e encargos eventuais ou prováveis, as importâncias respectivas hão de estar sempre, senão em caixa, empregadas em títulos de pronta realização e, conseqüentemente, não são investidas no negócio para a obtenção de lucros.

É inafastável, a meu ver, assim, a conclusão de que o regulamento, ao excluir as provisões do capital invertido pelas empresas concessionárias para obtenção de lucro, não alterou a lei e sim explicitou-a, dando à expressão o seu real alcance’.

Esse voto foi acolhido pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 74.589-SP, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque.

Já no AI 51.085 – (AgReg) – GB, Relator o Ministro Barros Monteiro, a Corte Suprema liquidou com o regulamento que, extravasando a legislação regulamentada, extinguiu benefício cuja concessão era prevista em lei.

É que, conforme leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘o regulamento mais não poderá fazer além de expedir comandos intra legem, pois nem contra, nem extra, nem praeter, nem ultra legem caber-lhe-á introduzir qualquer determinação. Sobretudo, no direito brasileiro – ante os preceptivos reiteradamente citados -, é evidente tal limitação’.” (VELLOSO, Carlos Mário da Silva, Temas de Direito Público, Belo Horizonte, Del Rey, 1994, pp. 432-434).

Na hipótese dos autos, parece evidente que o caput bem como o parágrafo único do art. 6º cuidam de prever a ampla regulamentação do acesso a tais informações – o que, de qualquer maneira, decorreria da exigência de determinada organização e procedimento assecuratórios de direitos fundamentais – ao referir-se a “processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso” e à “legislação tributária”. Parece evidente cuidar-se, portanto e na mais drástica das interpretações que se lhe poderia conferir, de regulamento autorizado, destinado a estabelecer normas de organização e procedimentos internos à Administração Pública (e, assim, verdadeiro regulamento de execução) e cuja matéria e finalidade decorrem de incontestáveis prescrições legais.

Consideremos as características fundamentais da disciplina da organização e procedimento assecuratórios de interesses e posições jurídicas de terceiros quando do acesso a informações relativas a operações financeiras por parte das autoridades tributárias.

O art. 1º do Decreto impugnado explicita seu objeto (“requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal e seus agentes, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas”) e sua finalidade (“bem assim estabelece procedimentos para preservar o sigilo das informações obtidas”), em clara e expressa manifestação de sua vinculação ao imperativo de organização e procedimento.

O art. 2º, por sua vez, qualifica o servidor ao qual se concede o acesso a informações relativas a terceiros – a saber, o ocupante do cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal – e restringe sua atuação às hipóteses em que “houver procedimento de fiscalização em curso e tais exames forem considerados indispensáveis”. Após essa explicitação da competência e do cabimento do acesso a tais informações, conceitua-se no § 1º do referido Diploma o “procedimento de fiscalização” como a “modalidade de procedimento fiscal a que se referem os arts. 7º e seguintes do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, que dispõe sobre o processo administrativo fiscal”, para o fim definir-se o paradigma e evitar-se risco de ambigüidades na aplicação da norma.


A seguir, introduz-se, no § 2º do mesmo artigo a necessidade de que o procedimento de fiscalização – cuja instauração é prévia ao acesso a informações relativas a operações financeiras – sujeite-se a “ordem específica denominada Mandado de Procedimento Fiscal (MPF), instituído em ato da Secretaria da Receita Federal”. Tal Mandado de Procedimento Fiscal constitui a primeira garantia sob cuja forma desenvolve-se modalidade própria, específica e suficientemente densa de proteção dos direitos fundamentais daqueles sujeitos à fiscalização, pois, acerca dele, define-se já a autoridade competente para sua expedição (o “ocupante do cargo de Coordenador-Geral, Superintendente, Delegado ou Inspetor, integrante da estrutura de cargos e funções da Secretaria da Receita Federal”) bem como seu conteúdo mínimo.

Com a definição da autoridade, elimina-se a possibilidade de todo e qualquer agente da fiscalização tributária proceda ao acesso a tais informações, restritas aos postos de hierarquia superior da fiscalização tributária federal e cuja guarda e responsabilidade a esse grupo restrito será imputada.

No que toca ao conteúdo, o Mandado de Procedimento Fiscal revela-se ainda mais apto a assegurar as posições jurídicas e interesses dos cidadãos, pois dele constarão, no mínimo, informações suficientes para restringir o objeto e o alcance do objeto da fiscalização e conseqüentemente do acesso a informações (“a denominação do tributo ou da contribuição objeto do procedimento de fiscalização a ser executado, bem assim o período de apuração correspondente”), a duração da fiscalização (“prazo para a realização do procedimento de fiscalização, prorrogável a juízo da autoridade que expediu o MPF”), a identificação dos agentes públicos e de seus superiores hierárquicos (“nome e matrícula dos Auditores-Fiscais da Receita Federal responsáveis pela execução do MPF”, “nome, número do telefone e endereço funcional do chefe imediato dos mesmos” e “nome, matrícula e assinatura da autoridade que expediu o MPF”) bem como a absoluta transparência e certeza acerca da existência e consistência do próprio procedimento (“código de acesso à Internet que permitirá ao sujeito passivo, objeto do procedimento de fiscalização, identificar o MPF”). Tais requisitos e conteúdos mínimos impedem a prática de ato por autoridade incompetente, asseguram o caráter material e temporalmente limitado e exclusivamente vinculado aos fins próprios ao procedimento de fiscalização do acesso às informações (afastando as figuras do abuso de poder e do desvio de finalidade), permitem responsabilizar os agentes públicos bem como certificar-se acerca da existência, consistência e veracidade do procedimento de fiscalização bem como do próprio MPF expedido.

Somente se excepcionam da prévia expedição do MPF, as circunstâncias rigorosamente pontuais de flagrante delito e atuação cautelar (inclusive para a preservação da prova), sujeitas à expedição do competente MPF no prazo de cinco dias que se seguir o início do procedimento, assegurada igualmente ciência ao interessado. O MPF será ainda inexigível em hipóteses específicas cuja própria natureza impede a expedição do referido Mandado, tais como procedimento de fiscalização (I) realizado no curso do despacho aduaneiro, (II) interno, de revisão aduaneira, (III) de vigilância e repressão ao contrabando e descaminho, realizado em operação ostensiva e (IV) relativo ao tratamento automático das declarações (malhas fiscais) – sendo que, nessa última hipótese, sequer se aplica o exame de que trata o caput.

É manifesta, destarte, a idoneidade e a relevância do Mandado de Procedimento Fiscal para assegurar-se a ampla defesa, a ciência pelo interessado, a proteção a seus direitos e interesses bem como a impossibilidade de abuso de poder e de desvio de finalidade.

O art. 3º do mesmo Decreto, a seu turno, esclarece as hipóteses em que se consideram indispensáveis os exames referidos no caput do art. 2º, esclarecendo circunstâncias em que se verificam indícios de fraude tributária e/ou hipóteses em tudo alheias à preservação da intimidade ou da vida privada de qualquer cidadão.

São suscetíveis de qualificação como óbvios indícios de fraude tributária todas as hipóteses insertas nos incisos I a XI do art. 3º do Decreto impugnado. A isso, acrescenta-se a necessidade de qualificação adicional de tais indícios ao se afastar, por determinação do § 1º do mesmo artigo, a aplicação do disposto nos incisos I a VI, “quando as diferenças apuradas não excedam a dez por cento dos valores de mercado ou declarados, conforme o caso”. Do mesmo modo, a hipótese prevista no inciso XI é ainda qualificada, nos termos do § 2º do mesmo artigo, nas circunstâncias em que (a) “as informações disponíveis, relativas ao sujeito passivo, indicarem movimentação financeira superior a dez vezes a renda disponível declarada ou, na ausência de Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda, o montante anual da movimentação for superior ao estabelecido no inciso II do § 3o do art. 42 da Lei no 9.430, de 1996” ou (b) “a ficha cadastral do sujeito passivo, na instituição financeira, ou equiparada, contenha informações falsas quanto a endereço, rendimentos ou patrimônio, ou ainda rendimento inferior a dez por cento do montante anual da movimentação”. Parece evidente, destarte, que a intervenção somente se dará em hipóteses excepcionais e em que se manifesta absolutamente denso o indício de fraude.


Esse indício de fraude tributária revela ainda algo decisivo para afastar-se a alegada inconstitucionalidade. O acesso por parte da autoridade tributária a tais informações consiste em um mero teste de veracidade e consistência das informações já anteriormente oferecidas à administração tributária, pois, em verdade, aquele sujeito à fiscalização encontra-se já obrigado a prestá-las originariamente à autoridade tributária.

Assim, o acesso a tais informações longe se encontra de constituir quebra de sigilo ou prerrogativa excepcional de acesso a informações, mas tão-somente a possibilidade de testar a consistência e veracidade de informações (por exemplo, aquelas relativas a rendimentos) que orginária e adequadamente deveriam ter sido oferecidas pelo próprio sujeito passivo da obrigação tributária. Com isso, quer-se afirmar inexistir um direito a omitir da autoridade tributária informações aptas a permitir o adequado lançamento tributário, mas antes e ao contrário um expresso dever de fornecê-las direta, prévia, atempada e corretamente.

Os indícios de fraude tributária denunciam, em verdade, a omissão de um tal dever de prestar informação integral e fidedigna, o que autoriza a fiscalização tributária a acessar aquelas informações a cujo recebimento sempre fez jus e que lhe fora ilegitimamente negado pelo sujeito passivo da autoridade tributária. Não se trata, destarte, do acesso excepcional a informações a que não faria jus a administração tributária, mas antes do exame da veracidade e consistência de informações que já lhe eram devidas e lhe foram prestadas de modo deficiente, omisso ou fraudulento. Um tal exame de consistência e veracidade das informações indispensáveis ao adequado lançamento de tributos é, de resto, o mister próprio e a razão última da existência dos órgãos e entidades consagrados à fiscalização tributária, o que corrobora sua manifesta legitimidade.

Em acréscimo às disposições retromencionadas, o art. 4º do Decreto impugnado condiciona a obtenção das informações mencionadas no caput do art. 2o a sua requisição pelas autoridades competentes para expedir o MPF a ser formalizada mediante documento denominado Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) e dirigida àqueles mencionados nos incisos I a IV do § 1º do referido art. 4º. Ainda em atenção à procedimentalização da proteção dos interesses e posições jurídicas dos cidadãos, o § 2o exige seja a RMF precedida de intimação ao sujeito passivo para apresentação de informações sobre movimentação financeira, necessárias à execução do MPF.

Passa o operar então o indispensável exame da consistência das informações prestadas pelo sujeito passivo, que, nos termos do § 3o do mesmo artigo, “responde pela veracidade e integridade das informações prestadas”, cuja verificação poderá ser levada a efeito “por intermédio do Banco Central do Brasil ou da Comissão de Valores Mobiliários, bem assim de cotejo com outras informações disponíveis na Secretaria da Receita Federal” (§ 4º do mesmo dispositivo).

O dever de consistência e veracidade aplica-se igualmente às autoridades tributárias, pois a “RMF será expedida com base em relatório circunstanciado, elaborado pelo Auditor-Fiscal da Receita Federal encarregado da execução do MPF ou por seu chefe imediato” (§ 5º do mesmo artigo) e, de tal relatório, “deverá constar a motivação da proposta de expedição da RMF, que demonstre, com precisão e clareza, tratar-se de situação enquadrada em hipótese de indispensabilidade prevista no artigo anterior, observado o princípio da razoabilidade”.

A seguir, insere-se, a exemplo do que consta do MPF, um rol mínimo de informações que a autoridade tributária deve inserir na RMF e que serão dirigidas às entidades financeiras, entre as quais a delimitação do objeto e da extensão da matéria requisitada, a identificação das autoridades responsáveis pela prática do ato e do “código de acesso à Internet que permitirá à instituição requisitada identificar a RMF”. A seguir, explicita-se e reitera-se a idéia de que a “expedição da RMF presume indispensabilidade das informações requisitadas”.

O art. 5o explicita a extensão das informações requisitadas como concernentes a “dados constantes da ficha cadastral do sujeito passivo” e “valores, individualizados, dos débitos e créditos efetuados no período” bem como a sua finalidade e uso – restritos ao procedimento de fiscalização em curso e ao processo administrativo fiscal instaurado e, em se tratando de documentos relativos aos débitos e aos créditos, aos casos previstos nos incisos VII a XI do art. 3o. O § 3º imputa responsabilidade àquele que deixar de prestar ou prestar indevidamente as informações requisitadas, enquanto o § 2º impõe o dever de entregar ao sujeito passivo, destruir ou inutilizar as informações não empregadas no processo administrativo fiscal.


A seu turno, o art. 6o determina a comunicação à Secretaria da Receita Federal de eventuais irregularidades e ilícitos administrativos detectados, sempre que tais fatos puderem configurar qualquer infração à legislação tributária federal.

No art. 7º, prevê-se a necessidade de manter-se sigilo fiscal acerca das informações, dos resultados dos exames fiscais e dos documentos obtidos em função do disposto neste Decreto, o que comprova a mera transferência do sigilo e sua convolação de sigilo bancário em sigilo fiscal. Tal dever é procedimentalizado por meio de controle de acesso ao processo administrativo fiscal de que conste registro do responsável pelo recebimento, nos casos de movimentação (§ 1º), de sistema que assegure o lacre e a preservação do conteúdo dos documentos contra terceiros (§ 2º), da rotina a ser seguida pelos destinatários de documentos sigilosos (§§ 3º a 5o), da exigência de condições especiais de segurança para a guarda de documentos sigilosos (§ 6º) e da criptografia de informações enviadas por meio eletrônico (§ 7º).

Por fim, os arts. 8º a 11 qualificam como infrações os atos de abuso de poder ou desvio de finalidade decorrentes do mau uso e guarda ou da quebra do sigilo fiscal, ainda que decorrente de ato meramente culposo, de que cobertas as informações transferidas à guarda da Secretaria da Receita Federal. O complexo normativo destinado a instaurar normas de organização e procedimento assecuratórias dos interesses e posições jurídicas dos afetados encontra complemento com a admissão de representação do sujeito passivo que considerar prejudicado por uso indevido das informações requisitadas.

Dúvida não há, destarte, acerca da existência de complexo normativo rigoroso, específico e suficiente para prestar as garantias de organização e procedimento necessárias à tutela de quaisquer direitos e posições jurídicas dos sujeitos passivos de obrigações tributárias.

7.2 Da Compatibilidade do Complexo Normativo Regente da Organização e Procedimento Concernentes ao Acesso a Informações Relativas a Operações Sigilosas com os Direitos Fundamentais Insertos nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal

Como visto acima, os direitos fundamentais insertos nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal não constituem prerrogativas absolutas e encontram-se sujeitas a inúmeras considerações analíticas.

Com efeito, as lições doutrinárias e jurisprudenciais permitiram alcançar as seguintes conclusões acerca do direito à intimidade e à vida privada inserto no inciso X do art. 5º da Constituição Federal:

* não faz sentido algum vincular um suposto direito ao sigilo bancário ao direito à intimidade, pois a intimidade não resguarda esta possibilidade nem se pode atribuir ao texto constitucional uma interpretação que, de forma alguma, pode ser retirado do que ele dispõe (uma vez que o limite da interpretação constitucional é o sentido literal possível do texto a interpretar);

* o mesmo se aplica ao direito à privacidade. Este como esfera mais ampla, diferencia-se de fato do direito à intimidade, como a própria Constituição deixa claro. Não é possível, contudo, afirmar que desta distinção pode-se retirar a inviolabilidade do sigilo bancário. Em verdade, ainda que se cogitasse, de modo bastante remoto e indireto, uma afetação reflexa ao direito à privacidade com o acesso a determinadas informações (e nada há de essencial, a tal respeito, em informações financeiras), a mera convolação do sigilo bancário em sigilo fiscal não permitiria a circulação da informação relevante e assim preservaria os direitos fundamentais reclamados. Por fim, ainda que se afigurasse a afetação, em determinadas e raríssimas circunstâncias, de aspectos da vida privada com a só transferência do sigilo para as autoridades tributárias, haver-se-ia de proceder a um sopesamento deste direito fundamental com outros bens, direitos, valores e princípios constitucionais, o que reitera o caráter relativo de tal direito e sua sujeição a uma reserva legal implícita;

* Em relação às pessoas jurídicas, não há que se falar em qualquer violação do direito à intimidade ou à privacidade, uma vez que falta a elas a singularidade necessária para serem titulares destes direitos;

* A proteção de tais direitos encontra-se sujeita à disciplina da organização e do procedimento necessários à preservação de seu núcleo essencial.

Continuação.

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