Defesa da União

Continuação – AGU é favorável…

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6 de fevereiro de 2001, 13h49

Tenho dificuldade extrema em construir, sobre o art. 5º, sobre o rol constitucional de direitos, a mística do sigilo bancário somente contornável nos termos de outra regra da própria Carta”.

No mesmo Mandado de Segurança, o eminente Ministro Sepúlveda Pertence deixou claro em seu voto:

“Não entendo que se cuide de garantia com status constitucional. Não se trata da ‘intimidade’ protegida no inciso X do art. 5º da Constituição Federal. Da minha leitura, no inciso XII da Lei Fundamental, o que se protege, e de modo absoluto, até em relação ao Poder Judiciário, é a comunicação ‘de dados’ e não os ‘dados’, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse’.

Destarte, o sigilo bancário não se incorpora nem é manifestação do direito à intimidade ou à privacidade. A mais qualificada doutrina, a maciça experiência judicial estrangeira e este próprio colendo Tribunal já ressaltaram inúmeras vezes que a quebra do sigilo bancário não significa qualquer atentado a tais direitos constitucionalmente consagrados.

Por outro lado, a obtenção de dados por parte da administração tributária não acontece em violação ao direito à intimidade ou à privacidade, uma vez que somente é possível falar neste campo em transferência do sigilo, o que foi corroborado, como já dito, em julgamento deste próprio Tribunal (RMS 15925).

Como bem ressaltou a Suprema Corte Americana, o indivíduo que sujeita certos dados aos bancos não pode invocar o “right to privacy” em caso de a Administração Tributária requerer dados bancários. Isto não seria interferência no direito à intimidade ou à privacidade, uma vez que este dados são livremente fornecidos pelos cliente dos bancos, que por sua vez (os bancos) terão acesso às diversas movimentações feitas pelos clientes. O dever de manter o sigilo a que se vincula o funcionário do banco e também o juiz (em caso de quebra de sigilo por ele autorizada) também se aplica ao funcionário da administração tributária.

Portanto, nem mesmo sob o ângulo do direito à privacidade – âmbito menos restrito, é possível defender uma posição que torne defesa a possibilidade de a administração tributária observar transações bancárias com o fito de combater a sonegação fiscal, o que também não viola o direito à intimidade.

O direito è privacidade – onde se incluiria também o direito à intimidade – enquanto direito de defesa, também se manifesta como direito à organização e ao procedimento. Isto é evidente diante da necessidade de os direitos de defesa exigirem normas infraconstitucionais específicas a fim de se concretizarem. Nesse sentido, veremos posteriormente que as normas impugnadas oferecem exatamente a necessária disciplina organizatória e procedimental apta a garantir a adequada proteção de posições jurídicas fundamentais, bem como provêem situações em que não se caracteriza ofensa à intimidade ou à privacidade.

Já de pronto, pode-se rechaçar a possibilidade de atribuição de direito à intimidade ou à privacidade às pessoas jurídicas.

Isto é o que pode inferir-se da própria jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal Federal.

É conhecida a jurisprudência do Tribunal no que tange à possibilidade de as pessoas jurídicas serem sujeitos passivos do crime de difamação, mas nunca dos crimes de calúnia ou injúria. Assim, no INQ 800-RJ, Rel. Min. Carlos Velloso, Julgado em 10/10/94, Publicado no DJ de 19/12/94, por unanimidade, no Tribunal Pleno, ficou sustentado:

“(…). A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime de difamação, não, porém, de injúria ou calúnia. Precedentes do Supremo Tribunal Federal”.

E em seu voto vencedor, o Ministro Carlos Velloso cita os seguintes precedentes: RHC 6993-RS, Rel. Min. Francisco Rezek, RTJ 113/88; RHC 59290-RS, Rel. Min. Rafael Mayer, RTJ 103/578; RHC 57668-SP, Rel. p/acórdão Min. Rafael Mayer, RT 543/444.

A fundamentação para se considerar as pessoas jurídicas como sujeitos passivos do crime de difamação se liga estritamente à noção de reputação e respeitabilidade que devem elas possuir para garantir sua posição no mercado.

Assim, não se pode admitir que as pessoas jurídicas possam vir a ser sujeitos passivos dos crimes de calúnia e injúria.

No primeiro caso, porque não se pode conceber uma pessoa jurídica com estrutura psíquica para cometer um crime. A responsabilização da pessoa jurídica se dará sempre em nome daquelas pessoas naturais que conduziram-na no sentido do cometimento do ilícito penal.

No que toca ao crime de injúria, falta à pessoa jurídica um sentimento de dignidade a ser ofendida pelo crime. Dado o caráter subjetivo do crime de injúria, seria descabido reconhecer na pessoa jurídica a consciência de que determinada atribuição feita a ela por alguém ofendesse sua própria dignidade. Portanto, não é possível cogitar a existência de dignidade ou mesmo estrutura psíquica da pessoa jurídica para cometer crimes, o que desfigura a possibilidade de injúria ou calúnia.


Os direitos de personalidade, aí se inserindo o direito à intimidade e o direito à privacidade, são típicos das pessoas naturais. Embora não se possa afirmar que as pessoas jurídicas sejam absolutamente desprovidas de todo e qualquer direito de personalidade, nesta seara, são eles aplicados de modo bastante reduzido se comparados aos direitos de personalidade das pessoas naturais, dada as próprias características das pessoas jurídicas.

Ora, nos casos previstos em que a Administração tributária poderá requisitar, acessar e utilizar informações referentes a operações e serviços da instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas no que tange a pessoas jurídicas, não há que se falar em preservação da intimidade ou vida privada desta. Isto simplesmente se explica pelo fato de que o acesso e a utilização destas informações nada tem a ver com a circulação das mesmas. É claro que somente é possível falar em atentado à reputação (o que acontece no caso do crime de difamação) quando um terceiro tem acesso à tal informação, ou seja, quando há circulação da informação, o que jamais ocorrerá com a convolação do sigilo bancário em sigilo fiscal.

A jurisprudência – inclusive a deste Tribunal – é pacífica ao condicionar a consumação do crime de difamação à divulgação a outrem que não a própria pessoa ofendida.

Assim dispõe a ementa do RHC 61706-MG (Rel. Min. Alfredo Buzaid, DJ 10.08.84):

“Penal. Crime de Difamação por haver o denunciado escrito carta a Promotora de Justiça em termos grosseiros, desrespeitosos e ofensivos.

Consuma-se o crime de Difamação quando a imputação chega ao conhecimento de outrem que não a vítima.

Recurso de Habeas Corpus para trancar a Ação Penal”.

A divulgação de dados colhida pela Administração Tributária simplesmente não circulará porque será vedada a sua divulgação. Não havendo divulgação, não há que se falar em preservação da reputação e muito menos da preservação de um suposto direito à intimidade ou à privacidade, inexistente em relação às pessoas jurídicas.

Pessoas jurídicas não têm e nem podem ter um direito à intimidade ou à privacidade. Como se disse, a personalidade jurídica comporta alguns direitos de defesa, semelhantes em muitas medidas aqueles atribuídos às pessoas naturais. Todavia, tal atribuição será excepcional, sendo exemplo disto a proteção da reputação e da credibilidade da pessoa jurídica.

Quanto ao direito à intimidade e ao direito à privacidade, não obstante, não podem dele gozar as pessoas jurídicas, uma vez que há aqui uma total falta do sentimento de preservação daquela esfera mais afeita à vida privada. A característica que diferencia a intimidade e a privacidade é exatamente o seu caráter rigorosamente singular, singularidade esta que não se encontra nas pessoas jurídicas, mas apenas nas pessoas naturais.

Este problema já foi muito bem colocado pelo Ministro Francisco Rezek no já citado MS 21.729:

“O inciso X do rol de direitos fala assim numa intimidade onde a meu ver seria extraordinário agasalhar a contabilidade, mesmo a das pessoas naturais, e por melhor razão a das empresas”.

J. L. Saldanha Sanches, ao se referir à atuação do empresário enquanto tal, mesmo quando ele atua em nome individual, é enfático ao afirmar:

“(..) a sua esfera empresarial, não tem, nem pode ter, um espaço de intimidade. Só a sua vida pessoal o tem e aí tem que ser colocado o limite” (SALDANHA SANCHES, J. L. Segredo Bancário e Tributação do Lucro Real. In SALDANHA SANCHES, J. L. Estudos de Direito Contabilístico e Fiscal. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 108).

Não gozam, pois, as pessoas jurídicas, do direito à intimidade ou do direito à privacidade.

Conclui-se portanto que:

a) Não faz sentido algum vincular um suposto direito ao sigilo bancário ao direito à intimidade. A intimidade não resguarda esta possibilidade nem se pode atribuir ao texto constitucional uma interpretação que, de forma alguma, pode ser retirado do que ele dispõe;

b) O mesmo se aplica ao direito à privacidade. Este como esfera mais ampla, diferencia-se de fato do direito à intimidade, como a própria Constituição deixa claro. Não é possível, contudo, afirmar que desta distinção pode-se retirar a inviolabilidade do sigilo bancário. De modo bastante remoto e indireto, poder-se-ia visualizar uma afetação ao direito à privacidade. Neste caso, entretanto, proceder-se-ia a um sopesamento deste direito fundamental com outros bens, direitos, valores e princípios constitucionais;

c) Em relação às pessoas jurídicas, não há que se falar em qualquer violação do direito à intimidade ou à privacidade, uma vez que falta a elas a singularidade necessária para serem titulares destes direitos.

5.2 Do Sentido e do Alcance do Inciso XII do art. 5º da Constituição Federal


Como visto, o exame das prerrogativas implícitas em determinado direito fundamental refere-se, entre outros parâmetros, a identificação de seu âmbito de proteção.

No âmbito de proteção, inserem-se todas as “hipóteses de aplicação ou incidência” do direito fundamental, isto é, todas as “situações juridicamente protegidas” por um determinado direito fundamental (CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1991, 5ª ed., p. 646). Como dito acima, para cogitar a efetiva afetação de um direito fundamental por uma norma infraconstitucional, impõe-se determinar o alcance de seu âmbito de proteção. Passemos a defini-lo no que toca à norma inserta no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal.

Determina o inciso XII do art. 5º da Carta Magna:

“XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

Constitui a referida norma um status negativo na classificação de Georg Jellinek (ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993), sob a forma específica de um direito à não-intervenção em situações juridicamente protegidas (CANOTILHO, op. cit., p. 549). A não-intervenção aqui prevista reside na preservação do sigilo de quatro distintas situações juridicamente protegidas: a) o sigilo da correspondência, b) das comunicações telegráficas, c) das comunicações de dados e d) das comunicações telefônicas. O bem jurídico protegido reside, portanto, na preservação da incolumidade das comunicações.

Sob esse primeiro aspecto, parece evidente a impropriedade da impugnação oferecida na inicial. Funda-se, de fato, a impugnação na presunção de que o parâmetro constitucional em questão dirige-se à proteção de dados constantes de registro e não antes da incolumidade da comunicação de dados. Desconsidera-se a manifesta circunstância de que o status negativo decorrente da norma constitucional invocada refere-se tão-somente à proibição da interceptação da comunicação de dados. Esse equívoco é simplesmente flagrante e, claríssima a sua demonstração.

Assim se manifestou sobre a matéria Celso Bastos, verbis:

“Uma inovação da Constituição foi estender a inviolabilidade aos ‘dados’. De logo faz-se mister tecer críticas à impropriedade desta linguagem. A se tomar muito ao pé da letra, todas as comunicações seriam invioláveis, uma vez que versam sempre sobre dados. Mas pela inserção da palavra no inciso vê-se que não se trata propriamente do objeto da comunicação, mas sim de uma modalidade tecnológica recente que consiste na possibilidade das empresas, sobretudo financeiras, fazerem uso de satélites artificiais para comunicação de dados contábeis” (MARTINS, Ives Gandra e BASTOS, Celso, Comentários à Constituição do Brasil, 1989, 2º vol., São Paulo, Saraiva, p. 73)

No mesmo sentido, leciona Tércio Sampaio Ferraz Júnior:

“Em primeiro lugar, a expressão dados” manifesta uma certa impropriedade (Celso Bastos/Ives Gandra; 1989:73). Os citados autores reconhecem que por “dados” não se entende o objeto de comunicação, mas uma modalidade tecnológica de comunicação. Clara, nesse sentido, a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990:3 9) – “Sigilo de dados. O direito anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui são os dados informáticos (v. incs. XIV e LXXII)”. A interpretação faz sentido.

O sigilo, no inciso XII do art. 50 está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo “da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”. Note-se, para a caracterização dos blocos, que a conjunção e une correspondência com telegrafia, segue-se uma vírgula e depois, a conjunção de dados com comunicações telefônicas. Há uma simetria nos dois blocos. Obviamente o que se regula é comunicação por correspondência e telegrafia, comunicação de dados e telefônica.

O que fere a liberdade de omitir pensamento é, pois, entrar na comunicação alheia, fazendo com que o que devia ficar entre sujeitos que se comunicam privadamente passe ilegitimamente ao domínio de um terceiro. Se alguém elabora para si um cadastro sobre certas pessoas, com informações marcadas por avaliações negativas, e o torna publico, poderá estar cometendo difamação, mas não quebra sigilo de dados.

Se estes dados, armazenados eletronicamente, são transmitidos, privadamente, a um parceiro, em relações mercadológicas, para defesa do mercado, também não estará havendo quebra de sigilo. Mas se alguém entra nesta transmissão, como um terceiro que nada tem a ver com a relação comunicativa, ou por ato próprio ou porque uma das partes lhe cede o acesso indevidamente, estará violado o sigilo de dados.


A distinção é decisiva: o objeto protegido no direito a inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas a sua comunicação restringida (liberdade de negação). A troca de informações (comunicação) privativa é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação.” (Op. cit., pp. 81-82).

Em verdade, o próprio Supremo Tribunal Federal já afirmou, em mais de uma ocasião, que a disposição referida acima possui como objeto a comunicação e não o registro de dados. Lê-se no claríssimo voto proferido pelo Ministro Nelson Jobim no julgamento do RE nº 219.780/PE:

“Passa-se, aqui, que o inciso XII não está tornando inviolável o dado da correspondência, da comunicação, do telegrama. Ele está proibindo a interceptação da comunicação dos dados, não dos resultados. Essa é a razão pela qual a única interceptação que se permite é a telefônica, pois é a única a não deixar vestígios, ao passo que nas comunicações por correspondência telegráfica e de dados é proibida a interceptação porque os dados remanescem; eles não são rigorosamente sigilosos, dependem da interpretação infraconstitucional para poderem ser abertos. O que é vedado de forma absoluta é a interceptação da comunicação da correspondência, do telegrama. Por que a Constituição permitiu a interceptação da Comunicação telefônica? Para manter os dados, já que é a única em que, esgotando-se a comunicação, desaparecem os dados. Nas demais, não se permite porque os dados remanescem, ficam no computador, nas correspondências etc” (RE nº 219.780/PE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10.09.99, p. 00023).

Nessa medida, o âmbito de proteção do direitos fundamentais previstos no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal concerne à comunicação e não ao registro de dados.

Esse entendimento viu-se corroborado pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence, que assentou:

“Da minha leitura, no inciso XII da Lei Fundamental, o que se protege, e de modo absoluto, até em relação ao Poder Judiciário, é a comunicação ‘de dados’ e não os ‘dados’, o que tornaria impossível qualquer investigação administrativa, fosse qual fosse’.” (MS 21.729, Rel. Min. Marco Aurélio, Julgado em 05/10/95).

Em outra oportunidade, o Colendo Supremo Tribunal Federal não só procedeu à distinção entre as comunicações e os registros de dados como também afirmou, de modo inequívoco, a legitimidade da existência de registros de dados relativos a operações financeiras. Cuidava-se ademais de sistemas de registro de dados de amplo acesso público destinados à proteção de créditos privados – cujos serviços prestados eventualmente são remunerados. Tratava-se, portanto, de bancos de dados, inclusive privados, que preservavam interesses eminentemente privados e comerciais e exploravam economicamente a divulgação ilimitada a terceiros de informações relativas a operações financeiras de crédito.

A isso, acrescente-se a circunstância de que tais informações, elas sim, afiguravam-se altamente gravosas para intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, pois tratava-se de informações relativas à inadimplência em relações de crédito e, portanto, de informações aptas a influir negativamente na reputação, honra e imagem dos atingidos, a restringir suas possibilidades de intercâmbio social bem como a indicar suas opções pessoais de consumo. Nada obstante, identificando a necessidade de proteção da riqueza financeirizada ou, nos termos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.790/DF, da “economia fundada nas relações massificadas de crédito”, afirmou o Supremo Tribunal Federal não só a necessidade funcional (ou mesmo a inexorabilidade do acesso a registro de dados), mas a legitimidade normativa de ponderar-se a proteção da privacidade com o imperativo econômico decorrente dos chamados “arquivos de consumo, mantidos pelo próprio fornecedor de crédito ou integrados em bancos de dados” – asseverando-se que tais registros de dados encontrariam expressa previsão constitucional no inciso LXXII do art. 5º da Constituição Federal. Afirmou-se então, pela voz sempre autorizada do Ministro Sepúlveda Pertence:

“A convivência entre a proteção da privacidade e os chamados arquivos de consumo, mantidos pelo próprio fornecedor de crédito ou integrados em bancos de dados, tornou-se um imperativo da economia da sociedade de massas: De viabilizá-la cuidou o CDC, segundo o molde das legislações mais avançadas: ao sistema instituído pelo Código de Defesa do Consumidor para prevenir ou reprimir abusos dos arquivos de consumo, hão de submeter-se as informações sobre os protestos lavrados, uma vez obtidas na forma prevista no edito impugnado e integradas aos bancos de dados das entidades credenciadas à certidão diária de que se cuida: é o bastante a tornar duvidosa a densidade jurídica do apelo da argüição à garantia da privacidade, que há de harmonizar-se à existência de bancos de dados pessoais, cuja realidade a própria Constituição reconhece (art. 5º, LXXII, in fine) e entre os quais os arquivos de consumo são um dado inextirpável da economia fundada nas relações massificadas de crédito.” (ADIn nº 1.790, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 08.09.2000).


No decisum, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a legitimidade da existência de registros de dados pessoais e de seu amplo, ilimitado e público acesso, o que reforça a circunstância de que o inciso XII do art. 5º refere-se à comunicação de dados e não de acesso a bancos de registro desses mesmos dados.

A isso, acrescente-se que a decisão admitiu ainda a ponderação entre a privacidade eventualmente afetada por tais dados e o imperativo da economia privada, em uma sociedade de massas, no sentido de autorizar o acesso a tais informações, nos termos da expressa admissão, pelo inciso LXXII da Carta Magna, de acesso a sistemas de registros de dados pessoais. Por fim, o Pretório Excelso admitiu ainda que tais registros são “um dado inextirpável da economia fundada nas relações massificadas de crédito”, o que denota que o acesso a tais sistemas de dados decorre das exigências de eficiência da economia financeira.

Assim, se a economia privada capitalista necessita do acesso a dados eventualmente gravosos à imagem das pessoas para o fim de proceder à eficiente proteção da reprodução do capital por meio dos juros devidos nas operações de crédito, maior dependência de um igualmente eficiente sistema ostentará o Estado, dado o caráter universal ou insuperavelmente “massificado” de sua interação com os seus habitantes.

Ora se as entidades capitalistas e privadas encontram-se autorizadas a acessar e fazer circular, de modo ilimitado, informações acerca de transações financeiras realizadas por indivíduos (e inclusive vender serviços de obtenção e difusão de tais informações) por imperativo factual de eficiência econômica na sociedade de massas, razão alguma haverá para não reconhecer a mesma legitimidade aos órgãos públicos de fiscalização tributária, que, além de impedidos de revelar a terceiros tais informações e sujeitos a rigoroso devido processo legal administrativo, encontram-se constitucionalmente autorizados a acessar tais informações no sentido de assegurar efetividade ao dever fundamental de pagar impostos e aos princípios constitucionais do caráter pessoal e da capacidade contributiva.

Para corroborar tal exata interpretação do dispositivo referido, é ainda decisiva a leitura do que se encontra em sua parte final. Admite expressamente uma reserva legal o art. 5º, XII, in fine: “salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Cuida-se de exceção à preservação do sigilo das comunicações relativa exatamente às comunicações telefônicas (o “último caso” previsto no referido inciso).

A ratio do dispositivo é manifesta. Admite-se tão-somente a interceptação telefônica exatamente por não se encontrar esta sujeita a registro. O conteúdo de uma conversação telefônica é fugaz ou unisubsistente, consumindo-se com a sua própria ocorrência. Assim, permite-se já a interceptação da conversação telefônica e não o acesso posterior ao conteúdo de seu registro, porque um tal registro simplesmente inexiste.

É tão-somente por essa razão – a saber, a impossibilidade de um posterior acesso a registro do conteúdo da conversação telefônica – que se conferiu a excepcional faculdade de interceptação da conversação telefônica. Caso assim não fosse, seria impossível explicitar a razão pela qual o direito consubstanciado na preservação do sigilo das comunicações não haveria de alcançar exatamente a comunicação telefônica, exatamente a hipótese mais gravosa de interceptação das comunicações.

Do mesmo modo, a reserva de jurisdição decorre exatamente do caráter excepcional dessa faculdade, que, como já repetida à saciedade, refere-se antes à interceptação da comunicação e não ao acesso a seu registro.

A interceptação telefônica, a justificar a excepcionalidade da reserva de jurisdição, implica o acesso a toda e qualquer informação constante da comunicação – ainda que alheia às razões que justificaram a intervenção estatal.

De resto, considere-se ainda a circunstância de que a comunicação telefônica, por seu caráter direto ou independente de intermediação, espontâneo, oral, em tempo real e teoricamente ilimitado, afigura-se mais apta a permitir a revelação de informações diretamente afetadas à intimidade que seus congêneres consubstanciados nas comunicações telegráficas, nas comunicações de dados e na correspondência (que não ostentam tais atributos).

Dito isso, parece legítimo supor que a relativização do sigilo da comunicação telefônica – evidentemente mais afeta à intimidade que as demais formas de comunicação – decorre da pressuposição legal da legitimidade da distinção entre comunicação de dados e registro de dados.

A inconsistência da tese relativa à reserva de jurisdição é ainda manifesta se se tem presente a circunstância de que, se o inciso XII do art. 5º protegesse, de fato, o sigilo de dados, tal proteção não se encontraria excepcionada pela parte final do mesmo dispositivo – cujo alcance restringe-se à interceptação telefônica. Nessa hipótese, produzir-se-ia o resultado absurdo de que as informações bancárias sequer poderiam vir a ser obtidas por meio de ordem judicial.


Ciente do inaceitável despautério que uma tal tese representaria, oferece-se sua versão mitigada, que consiste em sustentar a admissibilidade do acesso a informações relativas a operações bancárias se autorizado por decisão judicial. A inconsistência teórica e dogmática de uma tal tese, contudo, encontra óbice intransponível na própria literalidade do inciso XII do art. 5º da Carta Magna, revelando toda a sua precariedade e incorreção.

Do mesmo modo, importa ainda definir o que se considera como violação do sigilo para o fim de caracterizar uma eventual ofensa ao inciso XII do art. 5º da Constituição Federal. Com efeito, o acesso a informações por parte de autoridades tributárias simplesmente transfere-lhe a responsabilidade pelas informações sigilosas mas não implica a quebra do sigilo constitucionalmente protegido. Tal quebra somente ocorreria na hipótese de circulação ou comunicação de tais informações a terceiros.

Uma tal divulgação da informação junto a terceiros não ocorre com o acesso às informações pelas autoridades tributárias. Pois, não só tais informações mantêm-se sigilosas como também é impessoal a atuação da Administração tributária, nos termos do caput do art. 37 da Constituição Federal. Por fim, importa dizer que, em face das autoridades tributárias, inexiste sigilo oponível. Para assim concluir, basta considerar as hipóteses já conformadas em nosso ordenamento jurídico.

De fato, são os incisos II e III do art. 10 da Lei nº 6.835, de 22 de junho de 1978, que estabelecem exceções ao alcance do sigilo da correspondência, afirmando inexistir um tal sigilo em face de autoridades tributárias:

“Art. 10. Não constitui violação do sigilo da correspondência postal a abertura de carta:

II – que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos;

III – que apresente indícios de conter valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega proibidos;

Parágrafo único. Nos casos dos incisos II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do destinatário.”.

Tais disposições legitimam a admissão de hipóteses que simplesmente não constituem violação de sigilo – tais como a fiscalização tributária em havendo indícios de ilícitos ou ausência de veracidade nas declarações relevantes para fins tributários – e cuja disciplina encontra-se deferida à lei.

No mesmo sentido, opera a disciplina legal do sigilo da correspondência prevista em razões de outros fins de interesse público, obviamente preservado e tido como limite implícito a qualquer disposição constitucional. A tal respeito, são consabidas as prescrições contidas nos arts. 40 e 41 da Lei nº 7.210 (Lei de Execução Penal), de 11 de julho de 1984, onde se lê:

“Art. 41. Constituem direitos do preso:

XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e dos bons costumes.

Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do diretor do estabelecimento.”.

É evidente, destarte, a possibilidade de regulação e restrição por lei do sigilo da correspondência.

Nem se diga, de resto, que a citada norma, por ser pré-constitucional, não se afiguraria compatível com a Constituição Federal de 1988. Como sabido, já constava da Emenda Constitucional nº 01/1969 previsão praticamente idêntica àquela constante do inciso XII da Carta vigente e eventualmente ainda mais rigorosa e absoluta. De fato, dispunha o § 9º do art. 153 da EC nº 01/69: “§ 9º É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas”. Dito isso, é manifesta a legitimidade da norma citada, que evidencia o caráter relativo do sigilo bem como sua conseqüente sujeição à reserva legal e à conformação pelo legislador.

Para assim concluir, basta considerar o que asseverou o Egrégio Supremo Tribunal Federal ao assentar a constitucionalidade da violação da correspondência de sentenciados e conseqüente a recepção da Lei pré-constitucional acima transcrita. Afirmou o Pretório Excelso, verbis:

“A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública, de disciplina prisional ou de preservação da ordem jurídica, pode, sempre excepcionalmente, e desde que respeitada a norma inscrita no art. 41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.” (HC 70.814-SP. Rel. Min. Celso de Mello. Julgamento: 1.3.1994 – 1ª Turma. DJ: 26.06.1994, p. 16649).


Em verdade, o Supremo Tribunal Federal já afirmou o caráter relativo das prerrogativas relativas ao sigilo, asseverando que a cláusula constitucional apenas assegura a existência genérica da prerrogativa e não antes sua absoluta rigidez e alcance ilimitado. Nesse sentido, afirmou o Ministro Carlos Velloso:

“A questão, portanto, da quebra do sigilo, resolve-se com a observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário.”

“A questão, portanto, não seria puramente constitucional. A quebra do sigilo bancário faz-se com observância, repito, de normas infraconstitucionais, que subordinam-se ao preceito constitucional.”

(…)

“Na verdade, a Constituição, no art. 145, §1º, estabelece que é ‘facultativo à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas dos contribuintes.’

“Está-se a ver, da leitura do dispositivo constitucional, que a faculdade concedida ao Fisco, pela Constituição, exerce-se com respeito aos ‘direitos individuais e nos termos da lei’.

“Tem-se, novamente, questão infraconstitucional que deveria ser examinada, o que inviabiliza o recurso extraordinário.” (RE nº 219.780/PE, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 10.09.99, p. 00023).

No julgamento do AGRPET nº 1.564-5/RJ, reiterou a possibilidade de conformação legal do sigilo bancário o Ministro Octavio Gallotti, verbis:

“De seu turno, tem o Supremo Tribunal reiteradamente recusado, na interpretação do disposto nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição, o caráter absoluto do sigilo bancário, cuja dispensa se acha regulada pelo §1º do art. 38 da Lei nº 4595-64 (cfr. Pet. 577, T. pleno, DJ 23-4-93 e RMS 23.002, 1ª T., DJ 27-11-98), achando-se presente, no caso, o interesse relevante público empenhado na providência.” (AGRPET nº 1.564-5/RJ, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 27.08.99, p. 00058).

Nessa medida, o inciso XII do art. 5º da Carta Magna ou não asseguraria o sigilo dos registros de dados ou ainda, em o fazendo, admitiria ampla conformação legislativa de seu sentido e alcance (cedendo, sobretudo, em face do interesse público, de recursos ou dinheiros públicos e de outros bens, valores, direitos ou princípios constitucionais eventualmente contrapostos) e, em nenhuma leitura minimamente compatível com o sentido literal possível da linguagem em que vazado, jamais constituiria uma reserva de jurisdição.

6. DA EXISTÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL PARA A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSAR DADOS REFERENTES A OPERAÇÕES FINANCEIRAS

Ainda que fosse possível cogitar o sigilo bancário como prerrogativa assegurada pela Constituição Federal de 1988, em contrapartida, há uma expressa autorização constitucional a que a administração tributária tenha acesso aos dados referentes a operações financeiras. Com efeito, dispõe o art. 145, § 1º, da Constituição Federal:

“§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”

Logo, diferentemente do Ministério Público, ao qual este Excelso Tribunal não reconheceu autorização constitucional para ter acesso aos registros bancários das pessoas (RE 215.301, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 28.05.99), há um dispositivo constitucional específico a conferir essa prerrogativa ao Fisco (tal como ocorre com as comissões parlamentares de inquérito), inclusive com a expressa determinação de, por meio desse mecanismo, dar-se a máxima efetividade aos objetivos que indica, quais sejam, o caráter pessoal dos impostos e a capacidade contributiva.

Acontece que, também por força constitucional, tal acesso há que ser feito nos “termos da lei”. E o que significa essa expressão? Significa que o constituinte determinou que qualquer restrição a esse direito – que, conforme reiterada jurisprudência desta Corte, abundantemente exposta na presente manifestação, não é absoluto – há de estar prevista em lei, como igualmente estabelece, por exemplo, em relação à proteção aos locais de culto e de suas liturgias (art. 5º, VI). Há, portanto, a possibilidade de fixação de limites estabelecidos em lei, mediante expressa autorização da Constituição.

Assim é que o Ministro Carlos Velloso, Relator do RE 219.970, consignou em seu voto:

“A questão, portanto, da quebra do sigilo, resolve-se com a observância de normas infraconstitucionais, com respeito ao princípio da razoabilidade e que estabeleceriam o procedimento ou o devido processo legal para a quebra do sigilo bancário.


A questão, portanto, não seria puramente constitucional. A quebra do sigilo bancário faz-se com observância, repito, de normas infraconstitucionais, que subordinam-se ao preceito constitucional.” (DJ 10.09.99, p. 23).

Mas não é só. A Constituição impõe uma reserva legal qualificada, isto é, “a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo, também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados” (MENDES, Gilmar Ferreira.

A doutrina constitucional e o controle de constitucionalidade como garantia da cidadania – necessidade de desenvolvimento de novas técnicas de decisão: possibilidade da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade no direito brasileiro. In: Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos, 1999, p. 38).

Assim é que a lei que possibilite ao Fisco a identificação das operações bancárias do contribuinte há que estar voltada à consecução das finalidades que a própria Constituição aponta: a máxima efetividade do caráter pessoal dos impostos e da capacidade contributiva. É a este fim constitucional que deve estar voltada a atividade da administração tributária, sendo-lhe autorizado, na sua consecução, identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

A esse propósito, vale transcrever a lição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (op. cit., p. 85):

“Esta faculdade de identificar está ligada à implementação de um princípio. Note-se que o constituinte usa a expressão especialmente para conferir a faculdade referida. Este advérbio, em português, significa ‘de modo especial; particularmente; principalmente; nomeadamente’ (Aulete: verbete especialmente). Ou seja, pode significar exclusivamente (só para aquela espécie) ou principalmente (sobretudo, mas não só para aquela espécie).

Ora, tendo em vista a função fiscalizadora da administração tributária, parece-nos que o advérbio está usado no segundo e não no primeiro sentido. Ou seja, o constituinte, de um lado, escreveu especialmente porque a mencionada faculdade de identificar não é de presunção óbvia para o efeito de assegurar efetividade àquele princípio e, se não fosse aí inscrita, não se poderia inferir a sua autorização. De outro lado, porque o fez expressamente, admitiu, ao fazê-lo, implicitamente e a contrário sensu que a identificação de patrimônio, rendimento e atividades econômicas do contribuinte é uma presunção da função fiscalizadora da administração tributária. Interpretar de outro modo é tornar impossível a exigência de declaração de bens, de rendimentos, etc.”

Destarte, é inerente à atividade da administração ter acesso a esses dados a fim de poder desempenhar o seu poder-dever de fiscalização. E isso para a perseguição de objetivos que a própria Constituição lhe impõe na concretização da justiça fiscal e, em última instâcia, do princípio da igualdade que consagra.

De fato, a capacidade contributiva consiste “em legitimar a tributação e graduá-la de acordo com a riqueza de cada qual, de modo que os ricos paguem mais e os pobres, menos” (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 334).

Cada contribuinte, portanto, deve pagar impostos de acordo com a capacidade de suportá-los. Mas como a Receita poderá efetivar esse princípio se não pode confirmar os valores declarados pelos contribuintes?

Como poderá fazer com que os ricos paguem mais e os pobres menos, se não tem como aferir as informações que são declaradas ou verificar eventuais demonstrações exteriores de riqueza?

O dispositivo acima transcrito também estabelece, sempre que for possível, o caráter pessoal dos impostos, em que se atendem às condições pessoais dos contribuintes. Mais uma vez aqui se impõe ao Fisco a máxima efetivação da eqüidade tributária, pela qual os que têm mais devem pagar mais impostos.

Como leciona Saldanha Sanches: “Os sistemas de tributação com base no rendimento e a atribuição de uma igualdade de tratamento a todos os contribuintes, constituem assim uma concretização do princípio da igualdade fiscal na medida em que a ‘igualdade fiscal exige não apenas a igualdade na legislação mas também a igualdade na aplicação da lei'” (Estudos de direito contabilístico e fiscal. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 96)

Para tanto, a ordem constitucional brasileira conferiu à administração tributária o poder de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, desde que respeitados os direitos individuais e nos termos da lei. Ocorre que essa ressalva não deve importar na absoluta inaplicabilidade do dispositivo em questão, senão o preceito citado não teria razão de existir. A esse respeito é esclarecedor o Parecer do Subprocurador-Geral da República Paulo de Tarso Braz Lucas, proferido nos autos do RE 219.780, reproduzido na manifestação da Receita Federal em anexo:


“8.Pergunta-se: qual a ratio de tal dispositivo? É permitir ou proibir que a administração tributária identifique o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte? Quem ousa vislumbrar nele uma proibição para a identificação? É evidente que ninguém chega a tanto.

9.Alguns, porém, se escudam na expressão ‘respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’, contida em tal dispositivo, para chegar a resultados que, na verdade, significam imobilizar a administração tributária nessa tarefa constitucional de identificação que lhe foi expressamente facultada, como se houvesse uma incompatibilidade absoluta entre tal tarefa e o respeito aos direitos individuais, e como se fosse impossível à lei ordinária conciliar os direitos do Fisco e, portanto, de toda coletividade, com os direitos de cada um dos cidadãos.

10.Mas é óbvio que a citada expressão não pode ter esse sentido imobilizador, que conduziria não à proteção dos verdadeiros direitos individuais tutelados pelos povos civilizados e pela nossa ordem constitucional, mas apenas serviria de salvaguarda para os costumeiros e contumazes sonegadores, ou para coonestar atividades ilícitas de muitos outros.

(…)

11.’Respeitados os direitos individuais e nos termos da lei’. Qual, enfim, o significado dessa expressão? O Constituinte foi aqui cauteloso, talvez excessivamente cauteloso, pois é evidente que a atuação do poder público sempre pressupõe o respeito aos direitos individuais e a obediência à lei. É o que deflui naturalmente do nosso sistema. De qualquer forma, pode-se extrair dessa expressão apenas o sentido de mais uma advertência ao Legislador e ao Poder Público, para evitar os excessos e as providências que, ao mesmo tempo em que não sirvam ao interesse público e nem atendam aos objetivos de norma constitucional em que a citada expressão está inserida, firam inútil e gratuitamente os direitos individuais.”

Reitera Hugo de Brito Machado (In: Cadernos de Pesquisas Tributárias, v. 18. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1993):

“A prefalada faculdade da Administração, aliás, é absolutamente indispensável ao exercício da atividade tributária. Não tivesse a Administração a faculdade de identificar o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, não poderia tributar, a não ser na medida em que os contribuintes, espontaneamente, declarassem ao fisco os fatos tributáveis. O tributo deixaria de ser uma prestação pecuniária compulsória, para ser uma prestação voluntária, simples colaboração do contribuinte.”

A essas considerações hão de ser acrescidas outras. Com efeito, a ressalva “respeitados os direitos individuais” não deve importar o próprio engessamento da administração tributária no desempenho das suas atribuições constitucionais. Em verdade, aqui o constituinte impôs uma ponderação dessa atividade de identificação com os direitos individuais. Ressalte-se, ponderação, e não anulação da própria atuação do Fisco, à qual a Constituição determina a persecução da máxima efetividade da justiça fiscal. É por isso que Tércio Ferraz (op. cit.), ao comentar esse trecho da norma, igualmente, afirma que o constituinte aqui foi apenas cauteloso. Essa mesma cautela também se encontra presente no art. 220, § 1º, ao determinar que: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.” Note-se que aqui também há referência ao direito à intimidade (inciso X, do art. 5º), e nem por isso os jornalistas têm que recorrer ao Poder Judiciário para veicularem reportagens sobre pessoas. Não estariam igualmente ferindo a intimidade de outrem?

No art. 145, § 1º, da Constituição, portanto, há uma expressa autorização constitucional para consecução dos fins que especifica, permitindo-se à administração tributária a identificação do patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas dos contribuinte. Tal acesso deverá ser disciplinado por lei e estar em relação de ponderação com os direitos fundamentais. E a legislação impugnada na inicial em nada se afastou dessa determinação constitucional. Pelo contrário, encontra inclusive amparo na própria jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, conforme se verá.

7. DAS ALEGADAS INCONSTITUCIONALIDADES: O SENTIDO E O ALCANCE DOS ATOS IMPUGNADOS E SUA COMPATIBILIDADE COM OS INCISOS X, XII E LIV DA CARTA MAGNA

Como visto, impugnam-se na inicial os arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001, por suposta contrariedade aos incisos X, XII e LIV da Constituição Federal. Para concluir acerca de sua legitimidade constitucional, parece evidente a necessidade de cotejar os conteúdos normativos dos preceitos impugnados com as imposições dos preceitos constitucionais invocados. Na discussão precedente, fixaram-se os lineamentos básicos da adequada hermenêutica dos direitos fundamentais invocados na inicial (itens 5.1 e 5.2 acima expostos). Parece oportuno passar a considerar o sentido e o alcance das normas impugnadas de modo a demonstrar-se sua absoluta compatibilidade com a ordem constitucional vigente.


7.1 Do Sentido e do Alcance dos arts. 5o e 6o da Lei Complementar Impugnada e do Complexo Normativo em que se Inserem

De início, observemos o que dispõem os referidos dispositivos, verbis:

“Art. 5o O Poder Executivo disciplinará, inclusive quanto à periodicidade e aos limites de valor, os critérios segundo os quais as instituições financeiras informarão à administração tributária da União, as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços.

§ 1o Consideram-se operações financeiras, para os efeitos deste artigo:

I – depósitos à vista e a prazo, inclusive em conta de poupança;

II – pagamentos efetuados em moeda corrente ou em cheques;

III – emissão de ordens de crédito ou documentos assemelhados;

IV – resgates em contas de depósitos à vista ou a prazo, inclusive de poupança;

V – contratos de mútuo;

VI – descontos de duplicatas, notas promissórias e outros títulos de crédito;

VII – aquisições e vendas de títulos de renda fixa ou variável;

VIII – aplicações em fundos de investimentos;

IX – aquisições de moeda estrangeira;

X – conversões de moeda estrangeira em moeda nacional;

XI – transferências de moeda e outros valores para o exterior;

XII – operações com ouro, ativo financeiro;

XIII – operações com cartão de crédito;

XIV – operações de arrendamento mercantil; e

XV – quaisquer outras operações de natureza semelhante que venham a ser autorizadas pelo Banco Central do Brasil, Comissão de Valores Mobiliários ou outro órgão competente.

§ 2o As informações transferidas na forma do caput deste artigo restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados.

§ 3o Não se incluem entre as informações de que trata este artigo as operações financeiras efetuadas pelas administrações direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 4o Recebidas as informações de que trata este artigo, se detectados indícios de falhas, incorreções ou omissões, ou de cometimento de ilícito fiscal, a autoridade interessada poderá requisitar as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos.

§ 5o As informações a que refere este artigo serão conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.”

“Art. 6o As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”.

Continuação.

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