Defesa da União

Continuação – AGU é favorável…

Autor

5 de fevereiro de 2001, 23h00

No mesmo passo, parece legítimo afirmar acerca do direito fundamental inserto no inciso XII do art. 5º da Carta Magna:

* a proteção ali referida alcança o ato da comunicação e não o seu resultado documental;

*assim, encontra-se protegido não o sigilo de dados, mas sim o sigilo da comunicação de dados;

*o sigilo bancário não possui, destarte, status constitucional;

*a reserva de jurisdição ali prevista aplica-se tão-somente à interceptação telefônica, exatamente porque esta não ostenta registro documental de seu conteúdo, quedando unisubsistente;

*não há previsão de reserva de jurisdição para o acesso a registros bancários em tal dispositivo;

*a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a doutrina não retiram de tal norma uma garantia geral de sigilo de dados;

*em verdade, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admitiu inclusive a legitimidade da existência de mecanismos de controle do risco de crédito privado cujo meio fundamental de operação reside exatamente na ampla divulgação e circulação de dados sobre operações financeiras de seus clientes e o fez diante da possibilidade de restringir qualquer eventual pretensão de vedar o acesso a dados diante de outros imperativos normativos e funcionais das relações massificadas de crédito que marcam a sociedade contemporânea.

Em verdade, como já observado em item anterior, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal afirmou que o acesso a dados relativos a operações financeiras está sujeito à regulação infralegal, não se encontra protegido por uma reserva absoluta de jurisdição, é admitido diante de autorizações constitucionais expressas (tais como aquelas dos arts. 58, § 3º e – acreditamos – 145, § 1º, da Constituição Federal), é facultado quando houver interesse público, recursos ou dinheiros públicos, imperativos lógicos, naturais ou funcionais da vida social ou ainda – e sobretudo – bens, valores, direitos ou princípios constitucionais a realizar por meio do acesso a tais informações.

Ignorando todas essas múltiplas e analíticas circunstâncias, a impugnação pretende perpetrar um evidente sofisma. Sabendo ausente do texto constitucional uma proteção expressa e deliberada do sigilo bancário, a inicial pretende valer-se de uma via transversa para conferir ao sigilo bancário status constitucional e, assim, abandonando o exato conteúdo dos incisos X e XII do art. 5º da

Constituição, substituir tais dispositivos constitucionais por uma fictícia cláusula geral de proibição absoluta de divulgação de toda e qualquer informação bancária, cumulada com uma igualmente inexistente e imaginosa reserva de jurisdição.

O mecanismo opera por meio de uma série de derivações cujo objetivo é substituir o texto constitucional por uma criativa e oportunista concessão de status constitucional a uma inexistente proibição de divulgação de informação bancária. De início, afirma-se cabalmente, em uma primeira derivação: o sigilo bancário está contido na proteção constitucional da intimidade, da vida privada e das comunicações de dados.

A seguir, procede-se a uma segunda derivação: o sigilo bancário – já artificialmente constitucionalizado – impede a divulgação de toda e qualquer informação bancária. Em terceiro lugar, acrescenta-se: essa proibição só admite uma única flexibilização, a prévia ordem judicial. Em quarto lugar, conclui-se: será inconstitucional toda e qualquer norma que, sem a prévia autorização judicial, conceder acesso a toda e qualquer informação bancário. Por fim, em quinto e último lugar, alegam-se inconstitucionais as normas impugnadas.

É fácil perceber o sofisma à que conduz tal construção: ela afasta o cotejo das normas impugnadas diretamente com as normas constitucionais invocadas por meio da concessão aos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal de um sentido e alcance que ele não possui. Com efeito, ainda que os referidos incisos protegessem contra a divulgação de determinadas informações financeiras, não seria possível equiparar tal proteção a uma proibição absoluta de divulgação de toda e qualquer informação bancária.

Sabidamente, não se pode presumir que toda e qualquer informação bancária seja necessária e gravemente reveladora da intimidade e da vida privada de alguém ou, por outro lado, decorra de uma supostamente inexorável interceptação da comunicação de dados. Do mesmo modo, a reserva de jurisdição prevista no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal aplica-se tão-somente à interceptação telefônica e não à comunicação de dados, asseverando-se que o acesso a dados constantes de registros não está protegido pela reserva de jurisdição. Assim, ao substituir o efetivo conteúdo dos incisos do art. 5º da Constituição Federal pela inexistente e absolutamente artificial “Norma Constitucional Derivada do Sigilo Bancário” alcança-se a desinibida invenção da seguinte cláusula constitucional: “Será inconstitucional o acesso a toda e qualquer informação bancária, sem prévia autorização judicial”. Essa absurda formulação convola-se em parâmetro autônomo de controle de constitucionalidade, substituindo as normas efetivamente constantes do texto constitucional.


É simples e claro como os argumentos leais costumam ser a forma ortodoxa de superação de um tal sofisma. Para fazê-lo, basta submeter as normas impugnadas a um cotejo direto e imediato com o conteúdo dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, afastando-se a norma artificiosamente interposta e criada pela Requerente.

Em o fazendo, resta manifesta a legitimidade das normas impugnadas. Como demonstrado acima, as normas impugnadas introduzem normas de organização e procedimento que: a) limitam a informação obtida a dados – no dizer dos tribunais constitucionais europeus – “econômica e tributariamente transcendentes”, afastando elementos afetados à vida privada ou à intimidade; b) estabelecem limites – inclusive temporais – intervenção da autoridade tributária no acesso a tais dados; c) exigem a formalização, a motivação, a vinculação à finalidade, a guarda e o sigilo no acesso a tais informações; d) impõem um dever de consistência e de demonstração da indispensabilidade do acesso a tais informações; e) destinam o acesso a tais informações e documentos a fins estritamente tributários e, em especial, ao teste de consistência e veracidade de informações já anteriormente devidas às autoridades tributárias e prestadas pelo próprio sujeito passivo da obrigação tributária; f) convolam em sigilo fiscal as informações afetadas ao sigilo bancário, vedando sua circulação e consubstanciando mera transferência de sigilo; g) instituem procedimentos e mecanismos de preservação do caráter sigiloso da informação e h) instituem regime de rigoroso controle e responsabilização por eventual uso indevido ou negligência no trato das informações sob custódia da autoridade tributária.

Se cotejado tal complexo normativo com o disposto nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, resta evidente inexistir violação alguma da intimidade, da vida privada, do sigilo das comunicações de dados ou da reserva de jurisdição para a interceptação das comunicações telefônicas. De fato, considerados os elementos recolhidos da análise anteriomente levada a efeito acerca dos referidos direitos fundamentais, parece possível concluir que as normas impugnadas (a) atendem ao requisito da reserva legal, (b) observam o caráter relativo e sujeito à conformação dos preceitos constitucionais invocados, (c) preservam a intimidade, a vida privada, o sigilo das comunicações de dados e a reserva de jurisdição da interceptação telefônica, (d) levam a efeito sua ponderação com valores constitucionais contrapostos e imperativos funcionais das relações massificadas de crédito das sociedades contemporâneas.

Se a exposição anterior e a consideração detida das normas invocadas já explicitou o atendimento dos requisitos elencados nos itens “a”, “b” e “c” ora listados, a demonstração do atendimento ao item “d”, por implicar uma ponderação e a conseqüente aplicação do princípio da proporcionalidade (ou do devido processo legal em sentido material), está a exigir esclarecimentos adicionais.

7.3 Da Legitimidade das Normas Impugnadas em Face do inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal

Sustenta-se ainda na inicial uma suposta violação da garantia constitucional relativa ao devido processo legal em sua acepção substantiva, como exigência material em face do conteúdo das leis restritivas de direitos ou outros valores constitucionais. A absoluta carência de consistência e sistematicidade da inicial omite a circunstância de que a invocação do princípio da proporcionalidade (ou da cláusula do devido processo legal em sentido material, inserida no inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal) não constitui propriamente uma impugnação autônoma.

Como se demonstra a seguir, o princípio da proporcionalidade exige que se considere a razoabilidade de determinada restrição a direito fundamental em face de outros fins, valores, bens, direitos ou princípios constitucionais a perseguir.

A impugnação julga-se, em verdade, suficientemente consumada com a simples invocação de norma constitucional que, ao ver do Requerente, afigura-se afetada pela disciplina normativa introduzida pelo objeto de controle.

Essas circunstâncias exigem – embora se trate de ônus incidente sobre o Requerente – seja a questão constitucional adequadamente posta como requisito prévio à demonstração da legitimidade da norma impugnada. Cuidaremos agora de fazê-lo, evidenciando não só a impertinência bem como a precariedade da impugnação.

Inicialmente, cumpre esclarecer o sentido e o alcance do princípio da proporcionalidade.

Como sabido, o princípio do devido processo legal em sentido substantivo constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo das leis restritivas de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um “limite do limite” ou uma “proibição de excesso” na restrição de tais direitos (vide, a respeito, CANOTILHO, op. cit., pp. 622 e segs.).


Entre nós, assevera Willis Santiago Guerra Filho que o princípio da proporcionalidade não se confunde com a mera exigência de razoabilidade, pois aquele possui conteúdo material próprio e positivo e institui um procedimento racional de edição de atos normativos (Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo, Celso Bastos, 1999, pp. 66-67, nota 60).

O princípio – ou máxima, segundo Robert Alexy (Teoria de los Derechos Fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, p. 111) – da proporcionalidade coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo – tal como o defende o próprio Alexy (op. cit., p. 286).

Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental. Para além de sua vinculação aos direitos fundamentais, parcela da doutrina admite a extensão da aplicação do princípio da proporcionalidade de modo a alcançar também as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais.

Em tais circunstâncias, chega-se a sustentar que as exigências do princípio da proporcionalidade assumiria mesmo a função de um construto metodológico geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é solvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos.

Nessa última hipótese, seria possível aplicar o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

Dito isso, parece evidente que a aplicação do princípio da proporcionalidade somente se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Tal como leciona Gilmar Ferreira Mendes (“A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, São Paulo, Celso Bastos, p. 72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, a norma impugnada afigura-se adequada (isto é, apta para produzir o resultado desejado), necessária (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Adequadamente colocada, nos planos teórico, metodológico e prático, a questão, impõe-se demonstrar a compatibilidade da norma impugnada com as exigências do princípio da proporcionalidade.

Como visto, os direitos fundamentais supostamente submetidos a restrição excessiva são aqueles previstos nos incisos X e XII do art. 5o da Constituição Federal. Não se esclareceu, contudo, o rol dos princípios constitucionais contrapostos e que ensejam a ponderação ínsita a toda e qualquer aplicação do princípio da proporcionalidade, o que passamos a fazer.

O acesso por parte das autoridades tributárias a informações relativas a operações financeiras representa a efetivação de valores constitucionais de caráter fundamental. Em primeiro lugar efetiva o poder de tributar do Estado. Mais especificamente, efetiva a faculdade conferida pela Constituição à administração tributária com relação ao acesso a dados referentes ao patrimônio, aos rendimentos e às atividades econômicas do contribuinte bem como a realização qualificada dos princípios da eqüidade ou justiça tributária, da capacidade contributiva do contribuinte e do caráter pessoal dos tributos (art. 145, § 1º).

Note-se que a previsão de acesso das autoridades tributárias a dados patrimoniais do contribuinte é expressa, ao contrário do chamado “sigilo bancário”, que, como visto acima, não encontra expressão em disposição constitucional alguma.

A discutida “quebra de sigilo” torna eficaz, da mesma forma, a determinação constitucional no sentido de que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios – no exercício de competência comum – devem zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas, assim como conservar o patrimônio público (art. 23, I).


Atende também aos objetivos fundamentais traçados no art. 3º da Constituição. De fato, a referida “quebra de sigilo” permitirá a ampliação das receitas tributárias, um dos meios elementares para a promoção do desenvolvimento econômico, assim como para a redução de desigualdades sociais e regionais. Não há dúvida de que esta ampliação de receitas implica a expansão do limite financeiro necessário ao adimplemento das prestações positivas do Estado em favor dos cidadãos.

De fato, em um Estado em que operam regras de responsabilidade fiscal que limitam, acertadamente, o gasto público (o que foi reconhecido como princípio compatível com a ordem constitucional pelo Supremo Tribunal Federal), o endividamento público e a emissão de moeda, a receita passa a constituir o fator decisivo para a definição daquilo que o Estado poderá prestar. Neste Estado fiscal, que não se encontra imediatamente engajado na atividade econômica, a fonte fundamental de recursos reside na imposição tributária. Em verdade, a eficiente imposição de tributos passa a constituir um instrumento fundamental – senão o único – de redistribuição de renda, integração e solidariedade social, qualificado pelo gasto público como insumo à promoção daquelas parcelas excluídas do gozo dos benefícios do desenvolvimento econômico. Responde a política pública adotada, portanto, ao imperativo elementar da isonomia na imposição tributária (art. 150, II).

A alcunhada “quebra de sigilo bancário” também observa o dever básico de lealdade da República Federativa do Brasil às obrigações firmadas no plano internacional. É notória a tendência internacional no sentido de se disciplinar a movimentação de capitais entre os Estados, seja sob imperativos de segurança econômica, seja sob as exigências de repressão a atividades ilícitas que, por vezes, encontram na garantia de absoluto sigilo bancário um meio seguro para um regime de impunidade. Um tal dever de lealdade nas relações internacionais imporia, também e para fins extrafiscais, a eliminação de eventuais vantagens comparativas decorrentes da redução da carga tributária e da sublimação de recursos oriundos de atividades ilícitas.

Por fim, torna eficaz o dever constitucional de adimplemento das obrigações tributárias, dever que, em princípio, alcança a todos. Com efeito, refere-se a doutrina portuguesa a um “dever fundamental de pagar impostos” (José Casalta Nabais, in: O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra, Almedina, 1998).

O poder de tributar titularizado pelo Estado, método constitucional utilizado por este organismo político para auferir os meios econômicos para o exercício de suas tarefas fundamentais, certamente está a depender de disciplina infraconstitucional que lhe dê efetividade. É necessário reconhecer que o complexo normativo que vigorava anteriormente aos atos impugnados não se demonstrou idôneo ao exercício minimamente eficaz das prerrogativas constitucionais da administração tributária.

Tal ineficiência mostra-se, especialmente, no que se refere à movimentação de certos bens móveis por meio de instituições financeiras. Na proporção em que a propriedade mobiliária tem, de certo modo, se tornado a principal expressão da riqueza privada, é natural que o Estado disponha de meios adequados à realização de seu poder-dever de tributar também em relação a este tipo de bens.

Este é um imperativo não só de eficiência mas também de isonomia. Isto porque não se afigura razoável que parcela extremamente significativa da propriedade privada disponha de um sistema que a subtraia a qualquer atividade estatal de fiscalização e controle para a realização daquela decisão constituinte fundamental que garante o poder de tributar.

Tal não ocorre, vale dizer, em relação à propriedade imóvel, cuja transferência submete-se a um complexo normativo garantidor de amplo acesso ao Poder Público assim como a qualquer cidadão, independentemente de demonstração de qualquer interesse, ou sem sujeitar-se a qualquer restrição no que toca à sua publicidade – vide, a respeito, o art. 1.137 do Código Civil, e arts. 17, 47, 167 e 289 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. O referido art. 289 da Lei de Registros Públicos, por exemplo, estipula que, no exercício de suas funções, “cumpre aos oficiais de registro fazer rigorosa fiscalização do pagamento dos impostos devidos por força dos atos que lhes forem apresentados em razão do ofício”.

Estas disposições de Direito Civil, certamente, atendem aos valores acima referidos, assim como representam concretização inequívoca do dever constitucional de tributar. E mais, configuram a idéia de auto-executoriedade que pauta a atividade administrativa, o que obviamente não implica um afastamento do controle judicial. Ali não se reconhece qualquer sigilo em relação a atos manifestamente subsumíveis à legislação tributária. Tais normas oferecem, evidentemente, transparência e segurança em relação à prática de determinados atos que geram o direito estatal de exigir tributos.


Lembre-se, por oportuno, que, no âmbito privado, é prática assente o estabelecimento de mecanismos destinados a garantir segurança ao empresariado em geral, de modo a se reduzir o risco do não-recebimento de créditos – e.g., as taxas de juros e os diversos serviços de proteção ao crédito. A adequação destes mecanismos é patente. Estes métodos privados de garantia de segurança jurídica e econômica, atendem a imperativos da economia contemporânea, e não são, por si, incompatíveis com um regime de proteção aos direitos fundamentais.

O direito à intimidade, por exemplo, não resta violado pela simples existência de instrumentos destinados a conferir segurança a certo domínio da vida privada. Para eventual abuso no exercício de tal direito – como ocorre em relação a inúmeras outras liberdades conferidas às pessoas privadas (e.g., liberdade de manifestação, liberdade de expressão intelectual, artística, cientifica, etc.) – prevê o sistema meios de proteção e reparação.

O risco de abusos, em verdade, encontra-se presente em relação a inúmeros outros direitos fundamentais conferidos aos indivíduos. Nesse contexto, a demonstrar que a proteção à intimidade e os chamados “arquivos de consumo” são instituições que não se excluem mutuamente, merece nova transcrição o seguinte pronunciamento do Ministro Sepúlveda Pertence, in verbis:

“A convivência entre a proteção da privacidade e os chamados arquivos de consumo, mantidos pelo próprio fornecedor de crédito ou integrados em bancos de dados, tornou-se um imperativo da economia da sociedade de massas: de viabilizá-la cuidou o CDC, segundo o molde das legislações mais avançadas.” (ADI 1.790, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 8.9.2000)

A disciplina objeto de impugnação na presente Ação – em que o acesso aos dados cerca-se de cautelas bastante superiores àquelas constantes no Código Civil e na Lei de Registros Públicos, em relação aos bens imóveis – encontra justificativa na necessidade de se conferir ao Estado meios seguros para garantir a participação isonômica dos agentes privados no financiamento das atividades públicas.

Considerando exatamente os valores constitucionais cuja realização fundamenta a adoção das normas impugnadas, afirma a da Secretaria da Receita Federal, após encarecer a repercussão do princípio da moralidade administrativa na matéria, verbis:

“61.A lei em comento atende, ainda, aos preceptivos constitucionais referentes à justiça fiscal, à igualdade tributária (CF, art. 150, II), à capacidade econômica ou contributiva (CF, art. 145, § 1º) e à livre concorrência (CF, art. 170, IV).

62.Seria admissível que poucos privilegiados, pessoas naturais e jurídicas, continuassem a agir, sob o manto protetor do sigilo bancário, direito pretensamente indevassável, com o fito de fugirem de suas obrigações tributárias, deixando recair sobre os que menos renda têm, os mais sacrificados, o ônus de suportarem carga tributária desproporcional à sua capacidade econômica ou contributiva? Seria razoável aceitar que um assalariado, com rendimentos anuais de vinte a trinta mil reais, pagasse mais tributos do que aqueles que auferem renda de um milhão de reais em igual período? Seria justo que o cidadão comum, que tem dificuldades de satisfazer suas necessidades básicas e, mesmo assim, pela forma com que obtém seus rendimentos, normalmente provindos do trabalho assalariado, com desconto de imposto de renda na fonte, que paga pontualmente seus tributos, fosse sobretaxado porque a administração tributária federal não pode identificar a ocorrência do fato gerador de tributos que deveriam ser pagos por algumas pessoas físicas e jurídicas do setor empresarial, de profissões liberais e de outros segmentos que lidam com atividades ilícitas, tais como, tráfico de entorpecentes, contrabando, etc?

63.Seria correto a lei permitir que, em nome de um direito supostamente absoluto ao sigilo bancário, determinadas empresas continuassem com suas práticas usuais de reduzir seus preços para restringir a concorrência? Que liberdade de concorrência haveria, se a lei permitisse que empresas concorrentes operassem em condições desiguais, umas pagando impostos, outras não, tudo sob a proteção de um certo direito à intimidade?

64.Quais valores constitucionais deveriam prevalecer na solução dessas questões angustiantes? Seriam aqueles que conflitam com o interesse público, com o interesse da coletividade?

65.Indiscutivelmente, a resposta a todas essas indagações está na Lei Complementar nº 105, de 2001.” (§§ 61 a 65 da anexa manifestação)

Ante o exposto, resta evidente o conjunto de valores constitucionais que inspira a disciplina legislativa ora impugnada. São estes os valores que devem ser considerados e contrapostos a uma eventual e remota afetação da intimidade decorrente das hipóteses de acesso a informações relativas a operações financeiras pela autoridade tributária. Cabe analisar, portanto, se o complexo normativo da organização e procedimento do acesso a informações relativas a operações financeiras veiculado pelos atos impugnados, ao buscar a realização daqueles princípios constitucionais, incorreu em excesso propiciador de violação de outros princípios de igual hierarquia.

Para fazê-lo, haver-se-á de invocar exatamente as já mencionadas máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Como visto, a adequação corresponde à eficácia, entendida no sentido de aptidão para produzir os resultados desejados – no caso, aptidão para a realização dos valores constitucionais dependentes vinculados à tributação. Cuida-se de questão eminentemente técnica ou empírica, razão pela qual se invocam, uma vez mais, as considerações oferecidas pela Secretaria da Receita Federal. Afirma a referida autoridade tributária acerca da “relevância das informações bancárias nos trabalhos de fiscalização tributária federal”:

“66.A necessidade de a administração tributária contar com informações sobre operações e movimentações financeiras para bem administrar tributos, especialmente o imposto de renda, a contribuição social sobre o lucro e a CPMF, apesar de ser fato notório, requer abordagem mais acurada.

67.MARCOS AURÉLIO PEREIRA VALADÃO, em “Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar e Tratados Internacionais”, Editora Del Rey, BH, 2000, pág. 279, expõe sua preocupação com o sigilo bancário em relação à atuação do fisco, nos seguintes termos:

“Os problemas decorrentes do sigilo bancário em face das repercussões tributárias dispensam maiores comentários. Em muitos casos as informações de conhecimento das instituições financeiras são os elementos fáticos que provam a existência de obrigações tributárias descumpridas que, às vezes, estão camufladas nos dados apresentados pelo contribuinte à Administração Tributária ou, às vezes, simplesmente não são declaradas. Numa segunda hipótese, pode haver conluio com a própria instituição financeira (por meio de seus agentes), não só por conivência com a atitude de seu cliente, mas também, participando e tirando proveito da ação ilegal.”

Continuação.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!