Novela mexicana

Advogado questiona destino de filho da cantora Glória Trevi

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29 de dezembro de 2001, 8h04

Violência contra presos é comum. Tão comum que só nos é dado conhecer as barbáries que ultrapassam a imaginária linha projetada por segmento social retrógrado, que vive às ocultas pelos esgotos das cidades misturados aos ratos; ou quando o acaso se faz presente ou é vitimado um poderoso.

Presa a cantora mexicana Glória Trevi, o Estado brasileiro tem (ou teria!?) que zelar por sua integridade física e moral, porque o ser humano encarcerado, ao contrário do que idealizam os fascistas, é sujeito de direitos.

Vítima de estupro nas dependências da Polícia Federal, como se noticiou, o ofensor ficará impune, se porventura a cantora não revelar (e ela não é obrigada a fazê-lo) a identidade dele. Discussões acadêmicas à parte, os tribunais cansam de condenar esse crime com base na palavra da vítima que reconhece o seu violentador.

O Código Penal prevê, para este, pena de seis a dez anos de reclusão, aumentada da quarta parte se o crime for cometido por quem tenha autoridade sobre a ofendida (e o policial a tem).

Nesses delitos as ações penais são privadas, por regra geral. A violência pode ser real ou presumida. Se real (com lesões corporais que vão de leve a seguida de morte), a ação penal é pública, competindo ao Ministério Público promovê-la. Se presumida (a vítima, por exemplo, não possuía condições de resistir ao agressor), e a ofendida for juridicamente pobre, a ação penal é pública condicionada. Condicionada à manifestação de vontade da ofendida (a uma representação, tecnicamente falando) em ver o agressor processado.

Num passar d’olhos, pode-se ter a falsa idéia de que a lei protegeu o acusado em detrimento do ofendido. Entretanto, a violência sexual causa às vítimas traumas físicos, psicológicos e sociais, não raro incuráveis e insanáveis, e por isso, privilegiando a intimidade e a privacidade dos vitimados, o legislador optou pelo processo privado, deixando a estes a decisão de processar o agressor. A inércia pode significar o fim de um pesadelo, ao passo que o processo pode denotar a perpetuação do trauma.

Tem a vítima um prazo fatal e ininterrupto de seis meses para ajuizar a ação ou representar contra o ofensor, contado este tempo a partir do dia em que ela souber quem é o autor do fato. Findo este lapso temporal, o agressor estará livre, leve e solto.

Com efeito, o segundo inquérito instaurado para apurar a “novela” está sendo ultimado e suas conclusões – que divergem das risíveis ilações da investigação anterior, onde se chegou a cogitar que a gestação fora produto de uma “inseminação artificial ‘à brasileira'” – apontam que o “pai” do filho de Glória é um delegado de polícia federal (!?) que manteve com ela, de forma consensual (!?), relações sexuais nas dependências(!?) da Polícia Federal de Brasília. E ela não tinha direito a visitas íntimas.

O novo epílogo se baseia no conteúdo de uma fita apreendida em poder de uma ex-detenta que dividia, à época, a cela com a cantora e havia, em depoimento à polícia, dito que Glória se relacionava sexualmente com um delegado. A misteriosa fita, que só agora veio à lume e dizem insuspeita, contém diálogo estabelecido, a pedido do delegado, entre a ex-detenta e sua advogada, que teria tentado convencer sua cliente a mudar seu depoimento, deixando de incriminar o delegado, em troca de nebulosos benefícios. O policial (e a advogada?) deverá ser indiciado pelo crime de corrupção de testemunha, punido com pena de reclusão de dois a seis anos.

Afastado, por conseguinte, o crime de estupro. A operosa Polícia Federal não encontrou indícios de que tenha ocorrido violência física (real). Recordemos: a violência pode não ser real e Glória, hoje, está por parir. Querer encontrar vestígios de lesões corporais a esta altura dos acontecimentos é agredir o senso comum. Tudo é possível. Existe a possibilidade, ainda não cogitada, da cantora ter concebido sem pecar (há precedentes na história da Humanidade!).

O capítulo final da novela mexicano-brasileira deveria ser escrito com o objetivo de sensibilizar os governantes a descerem de seus pedestais, a abandonarem os discursos hipócritas e eleitoreiros e a assumirem a responsabilidade por todos reclamada. A violência (ou os abusos cometidos por quem tem a obrigação de velar pela integridade do preso), há que ter fim. E o fim é de responsabilidade exclusiva do Estado.

O México quer Glória Trevi de volta. O Brasil acatou o pedido de extradição do Governo mexicano. O delegado de polícia federal responderá a um processo penal e/ou administrativo. Isso tudo está no script. O que ainda não está no script é qual o destino será dado ao arcanjo Gabriel. Mãe presa e pode ser extraditada. “Pai” ignorado. Será que vão mandá-lo para uma Febem da vida, vitimando-o pela segunda vez?

Pena que o arcanjo Gabriel tupiniquim não possa falar. Com a experiência acumulada no ventre materno muito teria a nos ensinar. Ou será que os deuses novamente o predestinaram a anunciar a Maria (Glória?) que ela será mãe do Salvador?

Revista Consultor Jurídico, de dezembro de 2001.

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