Cobrança ilegal

Cobrança de Tarifa Excedente de Consumo de água é inconstitucional

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25 de dezembro de 2001, 17h48

Analisar a validade ou não da Tarifa Excedente de Consumo, cobrada dos consumidores do serviço público de água, no Estado do Ceará, é o objetivo precípuo do presente trabalho. Tentaremos, na medida do possível, cingir a abordagem aos aspectos técnico-jurídicos da matéria.

Não obstante, conscientes de que o direito não é uma ciência pura e neutra, mas profundamente envolvida com os posicionamentos ideológicos que acompanham as idiossincrasias sociais, não podemos nos furtar de apreciar as questões políticas que impulsionaram o surgimento da referida Tarifa, mormente em face do notório propósito governamental de privatizar a CAGECE.

Para melhor entender a matéria, faz-se fundamental, primeiramente, conhecer os contornos jurídicos da Tarifa Excedente de Consumo.

Disciplina legal da Tarifa Excedente de Consumo

Por meio da Lei Estadual 12.968, de 29 de novembro de 1999, o Estado do Ceará houve por bem instituir a Tarifa Excedente de Consumo relativa ao consumo de água fornecida pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará – CAGECE. O art. 1º da referida lei dispõe que:

“Art.1º – Fica autorizada a cobrança de Tarifa Excedente de Consumo, na forma indicada no art. 2º desta Lei, pela Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará – CAGECE sobre o consumo de água do usuário residencial, comercial, industrial ou público, no período de 10 de novembro de 1999 a 30 de junho de 2000”. Logo em seguida, no parágrafo único, do art. 1o, a Lei indica a finalidade da Tarifa:

“Parágrafo único – A Tarifa Excedente de Consumo visa a induzir a redução do consumo de água pela população e a evitar o racionamento ou colapso total do abastecimento, em razão do reduzido volume de água atualmente acumulado nos reservatórios do Estado do Ceará, devido aos baixos níveis de precipitações pluviométricas nos últimos anos”. O art. 2º e seus parágrafos explicam a forma como será cobrada a tarifa. Vale reproduzir:

“Art.2º – A Tarifa Excedente de Consumo, aplicada aos usuários com consumo acima de 10 (dez) m³/mês, corresponderá a 100% (cem por cento) do valor normal previsto na estrutura tarifária da Companhia de Água e Esgoto do Estado do Ceará – CAGECE para o consumo de água residencial, comercial, industrial ou público, devido pelo usuário, e será calculada:

I – a partir da cota de 80% (oitenta por cento) da média de consumo de água registrada entre os meses de junho a novembro de 1998, para os usuários dos municípios de Fortaleza, Maracanaú, Caucaia, Maranguape, Guaiuba, Pacatuba, Pacajus e Horizonte;

II – a partir da cota de 100% (cem por cento) da média de consumo de água registrada entre os meses de junho a novembro de 1998, para os usuários dos demais Municípios do Estado.

§1º – Em relação aos imóveis que não tenham tido a média de consumo de água registrada no período de junho a novembro de 1998, a Tarifa Excedente de Consumo será calculada pela média de consumo dos três últimos meses, a partir do início da medição para efeito dos registros previstos nesta Lei.

§2º – Estão isentos da cobrança da Tarifa Excedente de Consumo de que trata o Art.1º desta Lei, os consumidores que não dispõem de hidrômetro.

§3º – O cálculo matemático da Tarifa Excedente de Consumo obedecerá às fórmulas indicadas no Anexo Único desta Lei”.

O cálculo matemático da Tarifa Excedente de Consumo obedece às fórmulas indicadas abaixo:

VrTE=VrCoA-VrQ

VrCtA=VrCoA+VrTE (*)

Onde:

Vr é Valor

TE é Tarifa Excedente de Consumo

CoA é Consumo Atual de água

Q é a Quota da região considerada (**)

Ct A é Conta Atual de consumo de água

VrTE é Valor da Tarifa Excedente de Consumo

VrCoA é o Valor do Consumo Atual de água

Vr Q é o Valor da Quota da região considerada

Vr CtA é o valor da Conta Atual de consumo de água

(*) Nota sobre Valor da Conta Atual de consumo de água (VrCtA):

– o Valor da Conta Atual de consumo de água (VrCtA) será ainda acrescido do valor normal da tarifa de esgoto.

(**) Nota sobre a QUOTA (Q) da região considerada:

– A QUOTA nos municípios de Fortaleza, Caucaia, Maracanaú, Maranguape, Guaiúba, Pacatuba, Pacajus e Horizonte corresponde a 80% (oitenta por cento) da média de consumo de água no período indicado (v. Art.2º);

Para facilitar o entendimento: os consumidores que moram em Fortaleza somente poderão consumir 80% (oitenta por cento) da média de consumo de água registrada entre os meses de junho a novembro de 1998. Ou seja, se a média for de 100 metro cúbicos, por exemplo, o usuário somente pode consumir 80 metros cúbicos. O excedente terá um acréscimo de 100% (cem por cento) sobre o valor normal do sistema tarifário praticado pela CAGECE, somado com o valor normal da tarifa de esgoto. Assim, o valor da conta pode, em alguns casos, até dobrar.


Como se vê, a tarifa excedente sobre o consumo é completamente teratológica: beneficia os consumidores que desperdiçaram água no período compreendido entre os meses de junho a novembro de 1998, punindo, de outra parte, os usuários que a economizaram. A par disso, a Lei obriga a todos os usuários a reduzirem em 20% (vinte por cento) o seu consumo, pois somente poderá ser utilizado pelo preço normal 80% (oitenta por cento) da quantidade de água normalmente utilizada. Imagine a situação de hospitais: como obrigar o hospital a reduzir em 80% (oitenta por cento) o consumo de água? E o que dizer dos hotéis, restaurantes, pousadas etc, que têm na alta temporada um consumo infinitamente maior do que no período compreendido entre junho e novembro? E os condomínios que possuíam, naquele período, unidades autônomas desocupadas?

Sem receio de equívoco, a Lei Estadual instituidora da TEC é incompatível com os ditames constitucionais. Podemos mesmo dizer que se trata de norma de esférica inconstitucionalidade, pois pode ser vislumbrada de qualquer ângulo em que se ponha o hermeneuta. Vejamos, pois, as anomalias de referida norma.

As inconstitucionalidades da Tarifa Excedente de Consumo

Primeira inconstitucionalidade: afronta ao princípio da isonomia

Como se percebe, os critérios utilizados pela Lei Estadual 12.968, de 29 de novembro de 1999 são completamente ilógicos: quem desperdiçou água nos períodos compreendidos entre junho e novembro de 1998 poderá continuar desperdiçando (um pouco menos, é claro), ao passo que os que a economizaram terão que se sacrificar bem mais (seja pagando caro, pois não poderão reduzir o consumo, seja deixando de utilizar a água, esse líquido essencial!!!). E o pior: atinge muito mais a camada pobre da sociedade, que não pode ficar sem água, do que a camada rica, que pode arcar com os altos valores estipulados ou optar por fontes alternativas (construção de poços, aluguel de carros-pipa etc).

Não há, portanto, razão lógica e racional para o discrimen, donde se conclui que a Tarifa Excedente de Consumo é incompatível com o princípio constitucional da isonomia, insculpido no art. 5o, caput, da CF/88 (todos são iguais perante a lei).

O princípio da igualdade está diretamente ligado ao princípio da proporcionalidade, achando-se ambos estreitamente associados. Realmente, o que se veda não é simplesmente o tratamento desigual, mas, sobretudo, o tratamento desigual onde não houver razoabilidade para tanto.

Nesse sentido, brilhantes são as palavras de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO quando diz que “há ofensa ao preceito constitucional da isonomia quando:

I – A norma singulariza atual e definitivamente um destinatário determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas, ou uma pessoa futura e indeterminada.

II – A norma adota como critério discriminador, para fins de diferenciação de regimes, elemento não residente nos fatos, situações ou pessoas por tal modo não equiparadas. É o que ocorre quando pretende tomar o fator “tempo” – que não descansa no objeto – como critério diferencial.

III – A norma atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrimen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados.

IV – A norma supõe relação de pertinência lógica existente em abstrato, mas o discrimen estabelecido conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo dissonantes dos interesses prestigiados constitucionalmente.

V – A interpretação da norma extrai dela distinções, discrimens, desequiparações que não foram professadamente assumidos por ela de modo claro, ainda que por via implícita” (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 47/48) – grifamos.

No caso em comento, não há motivo razoável que justifique o tratamento desigual entre os consumidores que pouparam água e os que a desperdiçaram. Pelo contrário, o critério é completamente irracional e impertinente: pune quem pouco consumiu e aplaude quem esbanjou.

De outro turno, é de se ver que a TEC (Tarifa Excedente de Consumo) tem uma natureza jurídica “confusa” ou “híbrida”: pela nomenclatura legal é preço público (tarifa), embora tenha todas as características de uma taxa (é instituída por lei, é compulsória, tem como fato gerador um serviço público específico e divisível etc) ou de um imposto (é instituído por lei, sua cobrança é geral e não é contraprestacional, conforme leciona o prof. Ruy Barbosa Nogueira, no seu Curso Direito Tributário, 12a ed. Saraiva, 1994, p. 157) e a finalidade de uma multa (visa punir os consumidores que indica, como se consumir água fosse um ato ilícito).

Caso se entenda que a natureza da TEC é de taxa ou imposto, é inegável que a fulminada norma estadual macula o princípio da isonomia tributária, insculpido no art. 150, inc. II:


“art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)

II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”.

Mesmo que se considere que a natureza da TEC é realmente de tarifa, não há como afastar o seu vício de inconstitucionalidade pela afronta à isonomia. É de se perguntar: se o produto (água) é o mesmo em qualidade, porque estabelecer alíquotas diferenciadas em razão da quantidade? Ora, é conhecimento elementar que a base de cálculo de uma tarifa (ou taxa) referente a serviço público, dada sua natureza contraprestacional, é o custo despendido pela fornecedora do serviço, sendo incabível a sua fixação aleatória.

Mesmo que se considere que pode haver diferenciação no valor das tarifas, o certo é que essas diferenciações somente serão legítimas se levarem em conta a posição econômica do consumidor, visando a privilegiar consumidores de menor poder aquisitivo, sob pena de subverter os princípios sociais que inspiram a cobrança da tarifa dos serviços de água. Na hipótese dos autos, tal situação não ocorre: a tarifa atinge sobretudo os consumidores de menor poder aquisitivo. É, portanto, injusta a medida por equiparar os pequenos e os grandes consumidores.

De outra parte, justamente por não ser a Tarifa Excedente de Consumo contraprestacional, pode-se tê-la como um imposto sobre o consumo de água. Nesse caso, sua inconstitucionalidade ainda é maior, pois não tem o Estado a competência para criar essa nova espécie de imposto. É o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

“Ementa: taxa de eletrificação, fluorarão e abastecimento d”água e melhoramento de estradas, criada pela lei n 3.788, de 1960, do estado de Pernambuco. Inconstitucional, porque, pela sua estrutura e conteúdo se confunde com imposto já previsto”. (Mandado De Segurança 10939, Julgamento: 24/04/1963 Publicação: ADJ Data-05-03-64 Pg-00015, Relator: Ribeiro Da Costa)

A par disso, vale ressaltar que a norma não leva em consideração, no cálculo do consumo médio, as situações particulares de cada usuário. Desta forma, um condomínio que, no período compreendido entre os meses de junho e novembro de 1998, estava com suas unidades autônomas desocupadas certamente tinha um consumo médio bem abaixo do normal. Igualmente, os hotéis e pousadas consomem bem mais quantidade de água no período de alta estação (dezembro a fevereiro), o que nos leva a crer que a média de consumo neste período será bem maior do que a média dos meses de junho a novembro. Em face disso, há de se concluir que a medida fere o princípio da isonomia, pois “atribui tratamentos jurídicos diferentes em atenção a fator de discrimen adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência lógica com a disparidade de regimes outorgados” e não leva em consideração as situações particulares de cada usuário.

Segunda inconstitucionalidade: o desvio de finalidade – DI PIETRO explica que finalidade é “o resultado que a Administração quer alcançar com a prática do ato” (Direito Administrativo. 10a ed. Atlas, São Paulo, 1999, p. 173). É forçoso reconhecer, dessa forma, que a finalidade da malsinada Tarifa Excedente de Consumo não é, como se pretende, “reduzir o consumo de água”. Seria muito bom se assim fosse. Na realidade, por trás dessa louvável (porém, falsa) intenção, há, inegavelmente, um interesse bem mais mesquinho, meramente pecuniário: aumentar ainda mais a arrecadação do Poder Público.

Ora, a voracidade do Governo (em sentido amplo) expande-se como mancha de azeite, mostrando-se, no caso, ainda mais patente. O que se quer, sem receio de equívoco, é aumentar, por via transversa, o valor da tarifa de água. Afinal, é humanamente impossível reduzir para 80% (oitenta por cento) o “consumo médio” de água, sobretudo nesses tempos de verão. E mais: se a tarifa é cobrada em razão do excesso do consumo de água, por que acrescer ao valor da Tarifa Excedente o valor referente à tarifa de esgoto? Certamente para aumentar a arrecadação.

Se o que se quer é diminuir o consumo irracional (desperdício) de água, por que, ao invés de aumentar a Tarifa, não foram criados mecanismos que premiassem o usuário que utiliza a água com parcimônia? Por que não se prevê um desconto para quem consumir abaixo da média? Sem dúvida, o que se quer não é reduzir o consumo, mas angariar mais e mais fundos para o Erário, o que demonstra uma clara afronta ao princípio constitucional da finalidade (art. 37, caput, da CF/88).

Em razão disso, não há como negar que houve um desvio de finalidade na norma que institui a Tarifa Excedente de Consumo, pois o interesse político (ou interesse público secundário) foi posto acima do interesse público primário. Em um exemplo semelhante, colhido na jurisprudência do Conselho de Estado da França, já se declarou a nulidade de um ato do Chefe da Comuna, com base no desvio de finalidade, que proibiu freqüentadores de praia de se trocarem, salvo nas cabinas públicas pagas, ali instaladas, estabelecidas não por razões de decoro público, mas para incrementar as receitas da Comuna. Isto porque o “descompasso teleológico entre as finalidades da regra de competência – qualquer que seja ela – e as finalidades do comportamento expedido a título de cumpri-la, macula a conduta do agente, viciando-a com o desvio de poder” (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2a ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 68).


Quanto ao fato de saber se, realmente, o Poder Público está agindo com desvio de finalidade na instituição da TEC, confessamos que é bastante difícil de prová-lo. JEAN RIVERO expressa bem essa dificuldade dizendo: “a segunda dificuldade se situa no terreno da prova. A intenção é um elemento psicológico, difícil de ser determinada, salvo quando o autor se explica abertamente o que será tanto mais raro quanto mais inconfessável for ela” (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob cit. p. 78). Socorremo-nos, portanto, a EDUARDO GARCIA DE ENTERRÍA para resolver esse problema:

“Facilmente se compreende que esta prova não pode ser plena, já que não é presumível que o ato viciado confesse expressamente que o fim que o anima é outro, distinto do assinalado pela norma. Consciente desta dificuldade, assim como a de que a exigência de um excessivo rigor probatório privaria totalmente de virtualidade técnica do desvio de poder, a melhor jurisprudência costuma firmar que para que se possa declarar a existência deste desvio “é suficiente a convicção moral que se forme o Tribunal” (Decisão de 1º de dezembro de 1959) à vista dos fatos concretos que em cada caso resultem provados” (apud MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob cit. p. 79).

Assim, em face dos elementos circunstanciais apontados, especialmente em virtude da vontade manifestada pelo Governo estadual de privatizar a CAGECE, vislumbra-se sem maiores dificuldades que, efetivamente, houve violação ao desvio de finalidade ou de poder no presente caso.

Terceira inconstitucionalidade: afronta ao princípio da moralidade

Pela mesma razão acima esboçada (desvio de finalidade), é inarredável que houve, por parte do Poder Público, uma violação ao princípio constitucional da moralidade (art. 37, caput, da CF/88). Na lição do jurista lusitano ANTÔNIO JOSÉ BRANDÃO, “a atividade dos administradores, além de traduzir a vontade de obter o máximo de eficiência administrativa, terá ainda de corresponder à vontade constante de viver honestamente, de não prejudicar outrem e de dar a cada um o que lhe pertence – princípios de direito natural já lapidamente formulados pelos jurisconsultos romanos.

À luz dessas idéias, tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos, como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido por zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda. Em ambos os casos, os seus atos são infiéis à idéia que tinha de servir, pois violam o equilíbrio que deve existir entre todas as funções, ou embora mantendo ou aumentando o patrimônio gerido, desviam-no do fim institucional, que é o concorrer para a criação do bem comum” (apud MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. Dialética, São Paulo, 1999, p. 113).

Na hipótese aqui discutida, é inevitável chegar à conclusão de que houve violação ao princípio da moralidade, mormente em face de a vergastada Tarifa ter sua cobrança cessada no dia 30 de junho de 2000, poucos meses antes das eleições municipais. Coincidência ou não, o certo é que o comportamento do Poder Público foi no mínimo desleal, desrespeitando a boa fé dos administrados, que, poupando a água com sacrifício, conforme recomendado pelas campanhas publicitárias do próprio Governo do Estado, terão que pagar praticamente o dobro pela mesma quantidade antes consumida; ao passo que aqueles que desrespeitaram a orientação governamental, desperdiçando o líquido precioso, continuarão a pagar a mesma tarifa. Que comportamento ético é esse que pune os honestos?

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO averba que “a Administração há de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzindo de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”. Será que nesse caso o Governo estadual procedeu com sinceridade e lhaneza? Parece-nos que não. Lembra-se que, em face da inserção da moralidade no texto constitucional, a jurisprudência pátria admite o controle jurisdicional dos atos administrativos, sob este aspecto. Vale reproduzir decisão do Superior Tribunal de Justiça:

“ADMINISTRATIVO – ATO ADMINISTRATIVO – MORALIDADE – EXAME PELO JUDICIARIO – ART. 37 DA CF – DESAPROPRIAÇÃO – ART. 20 DO DL 3365/41. É licito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo, sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Com o princípio inscrito no art. 37, a Constituição Federal cobra do administrador, além de uma conduta legal, comportamento ético”. (RESP 21923/MG Relator Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ 13/10/1992, PG:17662, PRIMEIRA TURMA)

Quarta inconstitucionalidade: afronta ao princípio da proporcionalidade


A moderna doutrina avaliza o entendimento de que o princípio da proporcionalidade, decorrente do Estado de Direito (art. 1o, da CF/88), graças à contribuição jurisprudencial e doutrinária germânica, galgou uma conotação objetiva, que se resume nos três elementos parciais (subprincípios) que se seguem:

a) adequação (pertinência ou aptidão) entre meio e fim, ou seja, existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são determinados a cabo: toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados não há a adequação;

b) necessidade (exigibilidade ou vedação ou proibição do excesso ou escolha do meio mais suave): isto é, entre as soluções possíveis deve-se optar pela menos gravosa, na máxima clássica de JELLINEK: “não se abatem pardais disparando canhões”;

c) proporcionalidade em sentido estrito: leva-se em conta os interesses em jogo, vale dizer, cuida-se, aqui, de uma verificação da relação custo-benefício da medida, isto é, da ponderação entre os danos causados e os resultados a serem obtidos. Em palavras de Canotilho, trata-se “de uma questão de “medida” ou “desmedida” para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim” (apud BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2a ed. Saraiva, São Paulo, 1998, p. 208/209).

Em resumo, “pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Ensaios de Teoria Constitucional. UFC – Imprensa Universitária, Fortaleza, 1989, p. 75). É, portanto, sob essa tripla dimensão que utilizaremos o princípio da proporcionalidade para saber se a medida adotada pelo Poder Público é possível.

A inadequação – Quanto ao primeiro aspecto, não é difícil perceber que a medida não é adequada, isto é, o meio empregado pelo legislador estadual não é pertinente para que seja atingido o fim almejado.

Em outras palavras: a Tarifa Excedente de Consumo não pode promover o (pseudo) resultado desejado, qual seja, a diminuição do consumo de água. Com efeito, se a finalidade da medida é, de fato, reduzir o consumo de água – o que, na realidade, não é – é totalmente inadequado o meio utilizado. Será que um hospital vai deixar de fornecer água aos pacientes em virtude do aumento do preço da tarifa? E os hotéis pedirão aos seus hóspedes que não tomem banho? E nas residências que já estavam racionando a utilização da água, será possível reduzir o seu consumo? É óbvio que não. A água não é um produto supérfluo, mas infinitamente essencial à saúde e higiene da população. Os gregos antigos já diziam que a água é o mais nobre dos elementos. Não é como o perfume, que se pode simplesmente deixar de usar ou reduzir o uso. Aumentar o preço da água para que se diminua o seu consumo é como elevar o preço dos remédios para que deixem de tomá-los. A medida, portanto, é completamente ineficaz: ninguém deixará de beber água ou tomar banho por causa do aumento do seu preço.

Obviamente, os abusos podem e devem ser reduzidos. Mas, certamente, não será sacrificando quem, desde o ano passado, já consome com parcimônia a água que se conseguirá coibir desperdícios. Campanhas publicitárias, fiscalização severa e, sobretudo, a educação do povo são, sem dúvida, os meios mais adequados de se “induzir a redução do consumo de água”. A par disso, é de se perguntar: por que não está funcionando o “canal do trabalhador”, onde tanto dinheiro do contribuinte foi gasto, sem que se conseguisse resolver o problema do abastecimento de água na Região Metropolitana?

O que se percebe, portanto, é que há, sob o manto mascarado dessa louvável finalidade, um interesse bem mais vil, qual seja, aumentar a arrecadação e sacrificar as pessoas que, enganadas pelo Governo, economizaram água no ano passado. Assim, sob o aspecto da adequação entre meio e fim, a Lei Estadual 12.968/99 malferiria o princípio da proporcionalidade; afinal, “há violação do princípio da proporcionalidade, com ocorrência de arbítrio, toda vez que os meios destinados a realizar um fim não são por si mesmos apropriados e ou quando a desproporção entre meio e fim é particularmente evidente, ou seja, manifesta” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4ª edição, Malheiros, São Paulo, 1993, p. 315)

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