Retrocesso trabalhista

Advogado critica Projeto de Lei que flexibiliza a CLT

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25 de dezembro de 2001, 7h48

Após o rolo compressor governista ter forçado passagem sobre a turminha de deputados habitualmente postada em cima do muro, “néguciando” os votos que faltavam, o projeto que aprova o novo artigo 618 da CLT passou por ampla maioria. Falta agora a confirmação do Senado, o que só acontecerá no primeiro trimestre de 2002. A oposição está esperançada em reverter o quadro.

Aparentemente a mudança do art. 618 pouco altera, considerando-se que desde a Constituição de 1988 os salários podem ser reduzidos através de acordo ou convenção coletiva (art. 7o, VI). Só aparentemente. Em verdade o que estará sendo implodido são princípios sagrados do Direito do Trabalho, como os da indisponibilidade e da irrenunciabilidade, razão das resistências opostas, inclusive de entidades como OAB, Anamatra e sindicatos.

Vendendo o peixe lá fora – Persiste intrigante o empenho do Executivo na alteração da lei trabalhista. Sabe-se que só a Força Sindical teria recebido R$ 800 mil e que R$ 5,1 milhões foram concedidos em emendas ao orçamento, para atender deputados que eram contra e terminaram votando pró.

Estou em que o empenho do governo motivou-se pela necessidade de mostrar serviço lá fora, no exterior. Existe uma orientação do Banco Mundial, conhecida como documento técnico 319, no qual essa instituição impõe aos paises tomadores de recursos, especialmente os emergentes como Brasil e Argentina, exigências condicionando sua liberação à flexibilização das relações de trabalho. O que explica mas não justifica o açodamento para um assunto de tamanha profundidade e repercussões.

Sem flexibilização, a gestão FHC fez aumentar em 64% o total de desempregados desde 1995, em dados do Dieese e da Fundação Seade.. Ativando a memória, podemos relembrar a Constituinte, quando os Congressistas, liderados por Ulysses Guimarães, de mãos entrelaçadas no alto, cantaram emocionadamente o Hino Nacional. FHC ainda esquerdista, era um deles. Empossado presidente, manteve o discurso mas na prática reformou a Constituição que ele mesmo votara. Foram até agora nada menos que 28 emendas. Como disse o senador Bernardo Cabral, transformaram a Constituição num canteiro de obras.

Discurso & Prática – Sobretudo, FHC é contraditório, com dois discursos: para usos externo e interno. No externo, em entrevista ao jornal espanhol “El Pais”, transcrita pela Folha de S.Paulo de 30.10.2001, sustentou: “O Estado deve ocupar-se da vida. A vida, as pessoas, a saúde, a educação, a segurança, o meio ambiente. O mercado não se ocupa disso. Nunca se ocupou nem vai ocupar-se. O Estado deve ser o gestor da vida e o mercado o gestor dos bens. E a vida tem que prevalecer sobre os bens”.

Diria um conhecido jornalista que na prática a teoria é outra. FHC confirma melhor do que ninguém, quão grande é o abismo entre o que discursa lá fora, posando de estadista moderno, e o que realiza internamente em seu governo.

A mudança na CLT implica em retirada da proteção legal, deixando os trabalhadores expostos aos interesses e as forças do mercado. A OIT já está alertando o mundo dos riscos do excesso de flexibilização das relações trabalhistas, exemplificando com a construção civil, onde a precarização derivada da informalidade cresce de forma alarmante.

Os encargos sociais – O professor José Pastore, da USP, técnico de reconhecida capacidade, torna-se repetitivo num discurso que já virou ladainha: a mão-de-obra no Brasil é muito cara, devido aos encargos sociais, na faixa de cem por cento. Cada real pago custa dois ao empregador, certo?

Em termos. Cem por cento de quanto? Pois saibam todos quantos esta lerem, que mesmo pagando cem por cento de encargos sociais, a mão-de-obra brasileira ainda é das mais baratas do mundo, de custo ínfimo na comparação. Confiram: US $ 2,79 por hora no Brasil, ante US $ 21 na Alemanha, US$ 15 na Suécia, US$ 14 nos EUA, $ 12 no Japão e $ 4,16 na Coréia do Sul. Mesmo na indústria automobilística, o custo da mão-de-obra não supera 10% do valor do produto. Significa que uma redução de 50% nos encargos, já um absurdo, reduziria o preço do carro produzido em apenas 5%.

Cidadania no Brasil, a pirâmide invertida – José Murilo de Carvalho, PhD em ciências sociais, publicou pela Ed. Civilização Brasileira, sob título A Cidadania no Brasil, O Longo Caminho, livro no qual procede análise histórica e conclusiva da sua trajetória, tão bem feita a merecer leitura dos interessados e melhores comentários.

O país sofre do que denomina “estadania”, pela hipertrofia do Poder Executivo em relação aos demais, Legislativo e Judiciário. Diagnostica que no Brasil, a pirâmide da cidadania apresenta-se invertida. Na Inglaterra, seu berço, a base da pirâmide é formada (e sustentada) pelos direitos civis, seguidos dos direitos políticos no centro e só após, como decorrência, dos direitos sociais.

No Brasil, está ao contrário. Primeiro vieram os direitos sociais, outorgados num regime ditatorial como foi período de Vargas (1930/1945). Os direitos políticos, posteriores, sofreram reduções significativas quer nesse período, que na ditadura militar (1964-1985). Por último vêm os direitos civis, aos quais pouca importância se atribui. Basta lembrar que o projeto de reforma do Código Civil, promulgado em 1916, dorme sono esplêndido há mais de 20 anos e só recentemente resolveu despertar, sem que esse imobilismo suscitasse reações.

Segundo Carvalho, essa inversão na escala nutre a impressão de que tudo depende do Executivo, verdadeiramente O Estado, todo-poderoso, repressor e cobrador de impostos, no lado ruim, e distribuidor paternalista de empregos e favores, no outro.

É uma cultura orientada mais para o Estado do que para a representação, criando a “estadania” que se contrapõe à cidadania. Para sua manutenção erige-se a necessidade de messias desempenhando o papel de salvadores da pátria. Lembra Carvalho que três dos cinco presidentes eleitos pelo voto popular após 1945 – Vargas, Jânio e Collor – todos com traços messiânicos, não terminaram seus mandatos. Em boa parte, nenhum dos três se conformava com as regras do governo representativo e do papel do Congresso.

Tanto o Legislativo como o Judiciário sobrevivem atrelados ao Executivo, minguando por verbas. Essa hipertrofia cobra preço elevado na escala dos valores que configuram uma autêntica democracia. Resumindo, nossos direitos sociais vieram como presente de um regime que anulava os direitos políticos e não como uma conquista, umbilicalmente derivada dos civis e políticos, numa espécie de coroamento, para ser, como deveriam, o ápice da pirâmide.

Nunca há efeitos sem causas e o Brasil não foge à regra. É tema para ser retomado no futuro, em outros comentários.

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