Consumo incentivado

Complacência com drogas favorece desagregação social

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22 de dezembro de 2001, 7h45

“Não há nada de novo sob o sol”, bem verbalizou Salomão, em um de seus Salmos ou Provérbios do Texto Sagrado. Os estupefacientes, os entorpecentes, as drogas (lícitas ou ilícitas, consome o local e momento histórico) ladeiam o homem desde os primórdios em sua aventura sobre o orbe. É cediço que as culturas egípcias e mesopotâmicas consumiam ópio com notável generosidade.

Não destoou a greco-romana, como dá conta a Ilíada, de Homero, onde Morfeu ‘confere um sono agradável aos guerreiros ao tocá-los com o caule e a cápsula de uma papoula’. Alexandre, o Grande, no século IV a C., levou o ópio ao conhecimento do povo indiano. Os hachîchiyyîn, membros de uma seita religiosa formada entre o Irã, Iraque e Síria atuais, do século XI ao XIII combatiam o poder de Bagdá sob a influência do haxixe.

Os Incas (séculos XIII a XVI) recompensavam seus vassalos com a outorga do privilégio de cultivar a coca. O consumo do ópio, na China, é milenar. Em nações islâmicas ou hinduísticas, o uso da cannabis faz parte de longas tradições. Mais recentemente, Charles Baudelaire retratou a droga dicção no século XVIII nas obras Paraísos Artificiais e Memórias de um Comedor de Ópio. Sigmund Freud, no século passado, prescreveu cocaína para vários pacientes. Jorge Amado, entre nós, em Capitães da Areia, obra do começo do século, relata a luta de um grupo de ‘maconheiros’.

Hodiernamente, o consenso quase unívoco, tem nas drogas um verdadeiro flagelo da humanidade; e, assim realmente o é, máxime na juventude! E, nesta toada, buscam-se meios efetivos para reprimir o uso. Cientistas e humanistas de nomeada e prestígio internacional (v.g. Jimmy Carter), defendem a descriminalização (consumo e venda), sem embargo de repudiarem veementemente as drogas.

Entendem que o modelo repressivo adotado é falho e o investimento deveria ater-se a prevenção, com campanhas esclarecedoras e controle da distribuição pelo Estado. Recentemente (setembro de 2001) a revista ‘The Economist’, mais tradicional e influente da Europa, sufragou a descriminalização total, alçando, dentre as obtemperações, argumentos do grande filósofo Stuart Mill. Vale lembrar que drogas hoje lícitas já foram severamente combatidas e, sem resultado.

Murad III e Murad IV decretaram penas de esquartejamento para o fumo. Na Rússia, vários czares puniam o comércio e uso de café com mutilação do nariz e orelhas. Em algumas regiões da Alemanha o tabagismo era punido com a pena capital. No Paraguai proibiu-se o mate. Em todos os casos , a severidade da pena não obstou o consumo/venda, impondo, após, a sua liberação ou descriminalização; assim como quanto a ‘Lei Seca’ norte-americana, que gerou Al Capone e a corrupção em níveis alarmantes no Estado.

Adotamos um modelo penal repressivo para o combate a determinadas drogas, que, apesar de penas severíssimas, não se mostra suficiente para reduzir o consumo; ao reverso, este cresce dia-a-dia. Em poucos anos, o narcotráfico que, era brandamente punido (art. 281 do Código Penal, com a mercê do sursis ao traficante). Hoje é tratado como crime hediondo com até 15 anos de reclusão. Não obstante, apenas incrementou-se o mercado de empresas criminosas, com consumo estratosférico, carretando, como subprodutos, violência nunca antes vista em conseqüência desta modalidade de crime . E, sem embargo do empenho heróico de nossa polícia no combate a este flagelo. Eis, portanto, o modelo adotado, em acordo com os anseios da população e aplicado pelos operadores do Direito.

Contudo, aventurou-se o Legislador por um caminho híbrido, tortuoso e temerário nesta seara. O plenário da Câmara dos Deputados aprovou (13/12/2001) o substitutivo do PL 1873/91, que, em linhas gerais, abrandou a pena para o uso (doravante aplicar-se-ão tão só as chamadas ‘penas alternativas’) e recrudesceu as sanções para o tráfico. Pois bem. Em uma vertente, quanto ao uso, naturalmente, haverá um estímulo por conta das ‘penas alternativas’ que, em nossa realidade, tem a cor, o sabor e o odor da impunidade.

E, na outra vertente, a criminalização mais severa, com os riscos correspondentes, introduzirá uma variável na estrutura do negro mercado, que, provocando a artificial elevação dos preços, irá gerar lucros ainda mais fabulosos (apenas o comércio bélico é mais rentável que o narcotráfico).

Funcionará, assim, e paradoxalmente, como um dos mais poderosos incentivos à produção e ao comércio de tais mercadorias. A bem da verdade, com o respeito aos que laboraram nesta criação legislativa (com paralelos em outros Países), esta via híbrida, morna, ou a ‘meio-termo’ fomentará a produção, o comércio e o consumo; precisamente o que a sociedade ordeira, perplexa e traumatizada com a criminalidade hodierna e violência correlata, neste País de contrastes tão duros, não merecia…

“Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente. Quem dera fosses frio ou quente. Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca” (Apocalipse, 3:15/6). O futuro dirá.

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