Posse na AMB

Cláudio Maciel toma posse na AMB e alfineta os três Poderes

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19 de dezembro de 2001, 13h57

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Cláudio Baldino Maciel, tomou posse na semana passada. Durante o discurso de posse, criticou a “hipertrofia do Poder Executivo” e a prática de alguns parlamentares que trocam apoio aos projetos do governo pela liberação de verbas orçamentárias.

“O que surpreende é a inércia cívica ante tal despropósito ético-político”, afirmou. “O modelo democrático-constitucional brasileiro está em flagrante crise”, acrescentou.

Maciel também ressaltou que “o sistema judiciário está em cheque”. De acordo com o desembargador, a crise é de funcionalidade e não de estrutura. Também disse que os problemas são facilmente superáveis por uma legislação infraconstitucional.

Ele disse que a legislação brasileira, “abundante, desconexa, anárquica”, valoriza mais o processo do que “a entrega da decisão final justa e útil, em tempo breve”. Maciel criticou, ainda, a prática do nepotismo. Afirmou que é necessário “afastar definitivamente a confusão entre o interesse privado, familiar, e o interesse público, que só pode conviver com oportunidade rigorosamente igual para todos”.

A entidade representa cerca de 15 mil juízes do país. A solenidade foi no Hotel Blue Tree Park, em Brasília.

Compareceram à posse da nova diretoria da AMB os presidentes do Supremo Tribunal Federal, ministro Marco Aurélio de Mello, do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite, e do Superior Tribunal Militar, ministro Olympio Pereira da Silva Junior. Também estiveram presentes o senador Roberto Saturnino Braga (PSB/RJ), o deputado federal Valdemar Costa Neto (PL/SP), os ministros Ronaldo Leal, do Tribunal Superior do Trabalho, Sepúlveda Pertence, do STF, entre outros.

O ex-presidente, desembargador Antonio Carlos Viana Santos, durante discurso de despedida ressaltou duas de suas principais realizações. São elas, a instalação definitiva da sede da AMB em Brasília e a regulamentação da Escola Nacional da Magistratura.

Conheça os integrantes da chapa vencedora

ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS – AMB

(2001-2004)

CONSELHO EXECUTIVO

Presidente

Cláudio Baldino Maciel – AJURIS – RS

Vice-presidentes

Cláudio Augusto Montalvão das Neves – AMEPA – PA

Douglas Alencar Rodrigues – AMATRA-X – DF

Guilherme Newton do Monte Pinto – AMARN – RN

Gustavo Tadeu Alkmim – AMATRA-I – RJ

Heraldo de Oliveira Silva – APAMAGIS – SP

Joaquim Herculano Rodrigues – AMAGIS – MG

Jorge Wagih Massad – AMAPAR – PR

Luiz Gonzaga Mendes Marques – AMAMSUL – MS

Roberto Lemos dos Santos Filho – AJUFESP – SP

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – AMMA – MA

Thiago Ribas Filho – AMAERJ – RJ

Coordenador da Justiça Estadual

Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC – SC

Coordenador da Justiça Federal

José Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal – RS

Coordenador da Justiça do Trabalho

Francisco Sérgio Silva Rocha – AMATRA-VIII – PA

Coordenador da Justiça Militar

Carlos Augusto C. de Moraes Rego – AMAJUM – DF

Coordenador dos aposentados

Cássio Gonçalves – AMATRA-III – MG

Conselho Fiscal

João Pinheiro de Souza – AMAB – BA

Jomar Ricardo Saunders Fernandes – AMAZON – AM

Wellington da Costa Citty – AMAGES – ES

Leia a íntegra do discurso de posse de Cláudio Maciel

Minhas primeiras palavras são de agradecimento aos colegas que, comigo, aceitaram compor uma equipe para administrar a Associação dos Magistrados Brasileiros, cientes das enormes dificuldades que o momento atual apresenta. Também quero manifestar nossa gratidão pela confiança de expressivo número de colegas que, pelo sufrágio, aprovou e acolheu nossas idéias e propostas. A magistratura brasileira reconheceu as virtudes da AMB, mas quer mudanças, e o resultado das urnas nos dá respaldo para atuar com profundidade e ousadia.

Transmito meus cumprimentos ao ilustre presidente Vianna Santos e a cada um dos membros da diretoria que ora se despede, sendo testemunha de que deram o melhor de si para o êxito de nossa associação.

Há necessidade – e sabem-no os colegas – de reafirmar, de insistir nos rumos da AMB no que concerne à visão generosa e ampla da inclusão da magistratura no debate nacional, no espaço da cidadania, afastado qualquer resquício de corporativismo reducionista. Face ao crescimento de nossa associação de classe, é preciso, também, modificar critérios de administração e tornar a associação mais eficiente. Carece a entidade de um modelo de administração pautado pela impessoalidade, profissionalismo e maior visibilidade para todos os associados.

Aproveitaremos os primeiros meses de gestão para colocar em prática essa meta, fazendo um profundo diagnóstico dos problemas administrativos da associação, para logo corrigi-los, dialogando e de tudo dando ciência aos colegas. Será tarefa dura, porque a extinção de subsedes implicará demissão de empregados, alguns bons profissionais, e outros, nossos amigos, mas será necessária.


Queremos uma entidade mais enxuta, mais ágil e, uma vez corrigidas questões internas, com todas as suas energias e recursos voltados para sua atividade-fim: a defesa das garantias e direitos dos magistrados, o fortalecimento do Poder Judiciário e a promoção dos valores do Estado Democrático de Direito.

O momento nacional é difícil.

Há pouco tivemos notícia, mais uma dentre tantas vezes, de que, para obter determinado resultado em votação na Câmara de Deputados, o Poder Executivo trataria os parlamentares que votassem de forma divergente do programa oficial como adversários no momento de destinar verbas orçamentárias. Já não surpreende tal prática, corriqueira nos dias de hoje. O que surpreende é a inércia cívica ante tal despropósito ético-político.

Não traria aqui esse exemplo, senão pelo que representa daquilo que vem se perdendo dia a dia na política nacional por conta de episódios dessa ordem: um parâmetro ético minimamente defensável por uma consciência que se recuse ao cinismo. Está verdadeiramente fora de foco a linha divisória entre o espaço público e o privado, e o exemplo mostra que verbas públicas são tratadas como se fossem a mesada dos filhos, como algo disponível, ao talante do administrador, abandonado o legítimo interesse público como o norte único, exclusivo da prática político-administrativa.

Tantos exemplos dessa natureza estão a demonstrar a hipertrofia do Poder Executivo. Ao Poder Legislativo cabe urgentemente revalorizar-se, não aceitar tais práticas que depõem terrivelmente contra a respeitabilidade do poder, de que todos nós, brasileiros, tanto precisamos, e por cujo reerguimento das sombras do recente regime militar muitos lutaram. E, ao Judiciário, incumbe defender-se e ser defendido.

A Constituição Federal haveria de ser entendida, definitivamente, como o que de fato é: a garantia dos governados e, portanto, o instrumento de limitação do poder dos governantes. A essa consciência crítica todos já deveriam ter chegado, sobretudo as autoridades públicas de maior envergadura. E de tal consciência deveria derivar a ação democrática.

Chamado constantemente a regular a natural tensão dialética entre governantes e governados, o Judiciário tem a irrenunciável missão constitucional e a grave atribuição política de, na concretude dos fatos da vida, limitar o poder dos governantes aos parâmetros estabelecidos pelos governados, pelo povo brasileiro, na Constituição Federal e nas leis com ela compatíveis.

Verdade é que só o faz por provocação, e isso precisa ser diuturna e pedagogicamente demonstrado para a sociedade brasileira, exatamente para que sobre os juízes não recaia a pecha de omissos ante a injustiça.

Não resta dúvida de que o modelo democrático-constitucional brasileiro está em crise.

Os governantes, a cada passo, tentam alterar o conteúdo constitucional, servindo-se à exaustão do constituinte derivado, vulgarizando, assim, o processo de reforma da Lei Maior, e a ela própria, transformada que foi em pouco tempo, em verdadeira “colcha de retalhos” ao sabor de interesses contingentes e momentâneos do jogo político.

Também se pretende modificar, ainda, o próprio Poder Judiciário, que é o intérprete da Constituição e que, ao interpretá-la, impõe e deve impor limites às atividades dos demais poderes, para que não se tornem eles incontrastáveis, o que seria a negação absoluta do regime democrático e do Estado de Direito. Não foi, no entanto, o próprio Poder Judiciário, em sua independência de Poder da República, quem propôs a reforma judiciária. O Judiciário, ao menos na fase inicial do processo, sequer foi ouvido, como seria de se esperar.

A reforma pretendida, que entra em fase final, hoje, no Senado Federal, com relatoria a cargo do ilustre senador Bernardo Cabral, pretende introduzir – reconheça-se – algumas inovações elogiáveis. No entanto, acabará por provocar a verticalização do poder, com excessiva concentração de poderes na cúpula do sistema e visível subtração de poder da base da pirâmide judiciária, exatamente o espaço onde os juízes atuam mais rentes à sociedade, mais próximos à população e mais distantes do estamento político federal.

Aumenta-se consideravelmente o poder do Supremo Tribunal Federal, mas, sem embargo, em nenhum momento se questiona, com a profundidade necessária, como se fosse tema proibido entre nós, a forma de nomeação dos ministros da Excelsa Corte, sistema que hoje se impõe ao urgente debate com a sociedade, sobremodo por divulgar-se que o próximo Presidente da República indicará nada menos do que cinco dos onze ministros do Supremo Tribunal Federal, exatamente o tribunal que, dentre as suas mais relevantes funções, está a de conter o impulso do próprio Executivo em exercer o poder além das balizas da Lei Maior.


Concentra-se poder na cúpula do sistema judiciário, olvidando-se que o juiz de primeiro grau no Brasil é quem deveria, em primeiro lugar, ser mais valorizado, não passando a primeira instância, atualmente, para grande parte dos advogados, de etapa quase indiferente de passagem para a segunda instância, porque de tudo permite-se o recurso processual.

A concentração de poderes na cúpula do sistema tem como mais destacado exemplo a proposta de criação de súmula com efeito vinculante, fundada sua alegada necessidade no argumento de que os tribunais superiores enfrentam volume invencível de serviço, no mais das vezes representado por causas idênticas, recursos “de safra” sobre matérias e decisões iguais. O fato é inegável e deve ser com urgência enfrentado.

O argumento em favor do novo instituto seria procedente, contudo, acaso não houvesse formas muito mais simples para superar-se o problema, sem o sacrifício do maior patrimônio moral-institucional do Poder Judiciário: a independência jurídica do juiz, de todos os juízes.

Foi proposta como alternativa, pela AMB e a Ordem dos Advogados do Brasil, a súmula impeditiva de recursos, que alcançaria ainda melhor efeito saneador do problema, ou seja, com maior eficiência para evitar o excesso de feitos com matéria idêntica nos tribunais superiores, mas não foi ela sequer discutida séria e profundamente como uma das alternativas plausíveis para enfrentar a questão, enfrentá-la – repito – sem a substituição da consciência do julgador pelo autômato e deslustroso trabalho de mera adequação do caso concreto a uma decisão preexistente.

Para o próprio Poder Legislativo o instituto da súmula vinculante significa grave perda de expressão política. Pois é o Legislativo que tem a tarefa constitucional de editar normas de espectro geral. Entregará, no entanto, ao Judiciário a mesma tarefa, passando a compartilhar com outro poder a edição de normas gerais e abstratas. Estou certo de que os legisladores ainda não perceberam o que significa em perda político-institucional para o Parlamento nacional esse inusitado compartilhamento do poder normativo abstrato com os tribunais superiores.

Na realidade, a súmula vinculante, o mais emblemático instituto previsto pelo movimento de concentração de poderes na cúpula do Judiciário e de paulatina e constante perda de expressão judicial da primeira e segunda instâncias e, com isso, da erosão do controle difuso da constitucionalidade das leis, tal instituto da súmula vinculante, repito, embora se apresente como a panacéia para o volume de serviço, serve de fato à pretendida maior previsibilidade do sistema judiciário em suas decisões, tudo sob o enfoque da eficiência econômica e dos interesses do capital.

Notadamente do capital estrangeiro e de seus representantes, que exigem, como melhores condições para investir e lucrar, dois movimentos convergentes do Judiciário nacional: primeiro, a maior previsibilidade do sistema; segundo, o maior grau de coerção judicial no cumprimento dos contratos, quaisquer que sejam eles, afastadas tanto quanto possível as cláusulas protecionistas que se destinam a tornar os pactos minimamente equânimes entre partes por vezes tão dramaticamente desiguais. Os interesses do mundo do capital não aceitam conviver com barreiras que possam ser removidas, ainda que signifiquem elas a tentativa de diminuir, mesmo que palidamente, a exploração do homem pelo homem.

Não foi por outro motivo que há pouco assistimos ganhar forma e fôlego a perversa proposta de extinção da Justiça do Trabalho. O que estava em causa naquele momento – e ainda está – era o próprio Direito do Trabalho como ordenamento legal que minimamente protege direitos do trabalhador brasileiro.

A tanto não se chegou, mas logo após propõe-se a supremacia do negociado sobre o legislado e, portanto, menos proteção legal para os hipossuficientes, o que, em um país com um dos mais vergonhosos índices mundiais de desigualdade social, alta taxa de desemprego e falta de organização sindical dos trabalhadores, representa a vitória definitiva do capital sobre todo os outros valores, mesmo a dignidade do trabalho humano.

Os interesses ora referidos, que pretendem reduzir o tamanho do Estado brasileiro à expressão do que lhes convêm em lucratividade, bem podem ser medidos pela leitura do Documento Técnico 319 do Banco Mundial, sob título O Poder Judiciário nos Países da América Latina e do Caribe, Elementos para Reforma.

O referido banco, que está financiando a reforma do Judiciário em diversos países periféricos, apresenta a cartilha dos interesses dos investidores estrangeiros. Está ali consagrada a necessidade, para os investidores, de maior previsibilidade das decisões judiciais, criação de Conselhos de Justiça, Escola Nacional de Magistratura com staff centralizado, quebra do monopólio da jurisdição pelo Estado e muitas outras propostas, considerável parte delas constante dos trabalhos parlamentares sobre a reforma do poder, outras já introduzidas na legislação nacional.


O sociólogo português Boaventura Souza Santos afirmou que a reforma do Judiciário, dentro de um quadro maior de reformas do Estado, “é impulsionada por uma pressão globalizante muito intensa que, embora no melhor dos casos se procure articular com aspirações populares e exigências políticas nacionais, o faz apenas para atingir os seus objetivos globais.

E esses objetivos globais são muito simplesmente a criação de um sistema jurídico e judicial adequado à nova economia de raiz neoliberal, um quadro legal e judicial que favoreça o comércio, o investimento e o sistema financeiro. Não se trata, pois” – prossegue o prestigiado sociólogo -, “de fortalecer a democracia, mas sim de fortalecer o mercado”.

O Poder Judiciário, contudo, não foi concebido para ser parceiro da atividade econômica. Esta é atividade da iniciativa privada. O poder a que servimos tem como baliza não a eficiência macro-econômica do País, mas só a justiça dos julgados, fundada em valores jurídicos, éticos, políticos, sociais, morais e, também, na medida certa, econômicos, que nos remetam à existência de vida digna para todos os brasileiros, como quer a Carta Constitucional quando, já em seu preâmbulo, dispõe que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem de todos, sem qualquer preconceito ou discriminação, tudo sob os elevados fundamentos da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político.

A despeito disso, os brasileiros, que em boa parte não têm acesso a um mínimo sistema de saúde e de educação, estão longe também do acesso pleno ao Judiciário, o que perfaz imensa dívida social e dramático débito de cidadania em nosso País.

Nós, magistrados, continuamos acreditando com firmeza que o Judiciário deve estar a serviço da cidadania, de todos os brasileiros, sem exceção. Estamos assim legitimados a indagar por que milhões de brasileiros nunca demandaram em juízo por seus direitos, mesmo vendo-os violados. Devemos todos voltar os olhos para essa questão crucial, sem cinismo e sem nos desviarmos de suas causas.

Veremos, então, que mais de cinqüenta milhões de brasileiros estão, segundo pesquisa recente, abaixo da linha da pobreza. A que tipo de justiça terão acesso se não possuem o suficiente para matar a fome, se não têm qualquer consciência de seus direitos? E quando a têm, dificilmente terão acautelado os seus interesses por falta, no mais das vezes, de mínima informação. A miséria impõem-lhes toda sorte de obstáculos à educação formal em níveis de suficiência para o exercício da cidadania.

Educação esta que, de algum modo, passou a consistir em mero adestramento em técnicas concernentes ao ofício ou à profissão, voltadas sempre para a eficiência e não para os valores maiores e transcendentes do homem e da humanidade. Pouco entendido em sua grandeza e complexidade ontológica, o ser humano foi compartimentado. Na ciência, debilita-se a noção filosófica da totalidade e, no direito, a compartimentagem exagerada do saber é fato definitivamente consumado.

A vida política nacional sofre da mesma enfermidade: a prática derivada da compartimentagem, do isolamento de grupos de interesses, do cartorialismo com que são tratados os problemas nacionais. Grupos sociais, setores profissionais tratam de seus problemas e interesses como se estivessem apartados do todo, com abandono da perspectiva do ente coletivo, da coletividade, da brasilidade.

Em que patamar do interesse de todos estaria posto o conceito de nação?

E o de democracia?

Um democrata não é quem simplesmente participa de um jogo com regras pré-estabelecidas, desde que esteja procurando mistificá-las ou alterá-las para tirar proveito através da esperteza oblíqua, ou servindo-se de eventual disfuncionalidade do sistema em benefício próprio. A democracia pressupõe a adesão incondicional e honesta a um conjunto de princípios éticos irrenunciáveis, superiores aos interesses dos governantes. Pressupõe, por isso mesmo, o acatamento, de boa-fé e sem hipocrisia, das regras constitucionais que são a única base da vida politicamente civilizada.

Vemos hoje, entretanto, a modificação de normas constitucionais nas ocasiões em que nega ela suporte a interesses maiores do governo, ou por vezes o simples descumprimento das mesmas, perdendo-se, a cada ocasião, o pudor cívico-constitucional ao banalizar-se a esperteza como paradigma do modus faciendi do embate político.

A Nação brasileira assiste, a cada dia mais impotente e perplexa, o discurso da razão cínica, que se sabe falso, mas que, arrogante, é momentaneamente útil para justificar os fins pretendidos, eficiente para o pragmatismo de resultados, no qual não passam de mera aparência a verdade, os princípios em que se assentam o sistema democrático e a própria honestidade intelectual e moral.


É essa prática constante da razão cínica o que tem velado além do limite tolerável o esgarçamento do tecido social brasileiro.

Há alguns dias o Poder Executivo criou norma legal com o objetivo de desviar-se do cumprimento de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, a respeito da greve dos professores. Ao que parece, ao menos, nada importou que todo o modelo democrático-constitucional vigente tenha sido ofendido, posto em risco, desde que se pretendesse obter determinado resultado prático, o que depois foi equacionado por decisão do Supremo Tribunal Federal.

O custo político-institucional de tais manobras, que de regular só têm a aparência, é enorme, mas sonegado nos cálculos do pragmatismo de resultados: é o preço da erosão paulatina da consciência constitucional, que ainda no povo brasileiro é incipiente e que, também por isso, mereceria respeito ao menos pelo exemplo das maiores autoridades da Nação.

O Judiciário foi chamado recentemente de “manicômio” por importante autoridade do governo federal, numa demonstração de grave afronta ao princípio da convivência harmônica entre os poderes e de falta de elegância mínima exigida no trato entre autoridades públicas.

A magistratura nacional ficou aguardando que o Exmo. Presidente da República, de forma imediata, pública e exemplar, desautorizasse o autor da inusitada e grosseira ofensa. Essa mesma magistratura, com serenidade, tem consciência de que os governantes se sucedem, os planos de governo mudam, mas o Judiciário, um sistema de leis e a consciência democrático-constitucional devem ser perenes.

Por isso, os juízes são incômodos para os governos. Mais incômodos quanto maior for o apetite autoritário dos governantes. É tarefa do Judiciário ser incômodo, porque consiste ele exatamente em obstáculo, obstáculo da cidadania contra o abuso.

Judiciário que, acaso fosse servil e atencioso na tarefa política de controlar constitucionalmente os limites de atuação dos demais poderes, não estaria à altura da confiança nele depositada pelo povo constituinte e teria desertado de sua digna missão constitucional

Constituição que deu ao Judiciário brasileiro bom perfil institucional, sobretudo porque quis que, no sistema de freios e contrapesos, ingressasse esse poder com dupla forma de controle dos atos dos demais poderes: a forma concentrada no Supremo Tribunal Federal, e aquela difusa, por todos os magistrados do país, que só podem aplicar o direito com os olhos postos na Carta Magna, lei maior que sobre todo o sistema normativo se impõe e tem absoluta prevalência. Por isso, é do mister fundamental dos juízes todos negar aplicação, no caso concreto, às normas inconstitucionais.

Porque detém tamanha dignidade constitucional de Poder de Estado, não se consegue entender a criação, para o Judiciário brasileiro, de um Conselho Nacional de Justiça com pessoas estranhas ao poder sem ferir-se de morte o próprio modelo constitucional de tripartição de poderes.

Por outro lado, não se pode esconder – aliás, quer-se revelar – que o sistema judiciário está em cheque. Trata-se de uma crise que não tem suas causas fundamentais postas na estrutura do modelo judiciário. A funcionalidade e não a estrutura do sistema está em crise em decorrência de diversas causas para nós, magistrados, muito conhecidas, em boa parte superáveis por legislação infraconstitucional.

A legislação brasileira é abundante, desconexa e anárquica. O modelo processual é barroco e, com a verdadeira liturgia das formas, guarda pouco amor pela finalidade útil dos feitos judiciais. A grande quantidade de recursos processuais é incompreensível. O processo passou a ter tanto ou maior valor acadêmico do que o direito material. Basta ver as livrarias jurídicas, onde as maiores prateleiras destinam-se aos livros de direito processual.

Temos de urgentemente recuperar o caráter meramente instrumental do direito adjetivo, dando-lhe significado de utilidade prática e eficiência, cujo norte não deve ser outro senão a entrega de decisão final justa e útil, em tempo breve.

Outros instrumentos e condições de trabalho postos à disposição dos magistrados deveriam ser revistos e modernizados, como o melhor assessoramento de pessoal de apoio para que os juízes possam produzir mais e melhor no mesmo tempo que entregam diariamente à jurisdição.

O Judiciário também se ressente de maior democracia interna. Maior permeabilidade entre juízes e tribunais. Não há hierarquia entre juízes na tarefa de entregar jurisdição, o que seria a negação absoluta da própria natureza da função judicial. Há somente divisão de competências. Todos os magistrados são, igualmente, órgãos do poder.

Portanto, não podem ser toleradas, e não o serão, quaisquer pressões ilegítimas de magistrados sobre magistrados, de tribunais sobre juízes. A Associação dos Magistrados Brasileiros estará atenta e a postos para denunciar e de todas as formas lutar contra tal prática, onde e quando venha ela a ocorrer.


Por outro lado, é incompreensível que não participem todos os juízes vinculados ao respectivo tribunal do processo de eleição de seus dirigentes. Não são os juízes todos que presidem os processos eleitorais gerais neste País, constituindo-se, em cada zona eleitoral, pela sua respeitabilidade, em avalistas do resultado das urnas? Não é a todos os juízes cometida a gravíssima função de julgar seres humanos, nos casos mais difíceis, onde estão em jogo a liberdade, o patrimônio, a honra, a guarda dos filhos, o trabalho? Pois é deles que se afasta a mera condição de participar do processo de seleção de seus administradores. Os dirigentes do Judiciário, desde 1988, têm funções mais relevantes e graves.

Maior colégio eleitoral dará a necessária permeabilidade entre as administrações dos tribunais e os juízes todos, o que significa, inclusive, maior controle sobre eventuais desmandos administrativos ou outras faltas, que podem ocorrer, convenhamos, com maior facilidade em ilhas de administração quase impermeáveis à maior parte dos magistrados, como no modelo atual.

Impõe-se a todos nós, por outro lado, que enfrentemos com firmeza e sem trégua o nepotismo, para afastar-se definitivamente a confusão entre o interesse privado, familiar, subjetivo do agente do poder, e o interesse público que só pode conviver com oportunidade rigorosamente igual para todos.

É indispensável o questionamento sobre a forma como se cumpre pena privativa de liberdade no Brasil. O sistema penitenciário em boa parte não é melhor do que o modelo medieval das masmorras infectas. Há prisões em nosso País onde os novos detentos são chamados de “carne fresca”, com tudo o que isso significa de degradação da dignidade humana. Em outros locais, cumprem-se penas em Delegacias de Polícia, onde em não raras ocasiões são chamados de “morcegos”, pela cruel razão de que, à falta de espaço no chão para dormir, dormem pendurados às grades da cela.

Muitos estão ou serão contaminados pela AIDS, tuberculose ou outras enfermidades contagiosas em ambientes macabros, tudo incrivelmente sob supervisão e controle do Estado, e para onde nós, os magistrados brasileiros, os encaminhamos ao assinar os mandados de prisão. No futuro, se há algo que nossos descendentes não conseguirão entender e aceitar, é termos convivido no presente com tal grau de desumanidade sem nos considerarmos gravemente ultrajados como seres humanos.

A Associação dos Magistrados Brasileiros, na perspectiva de uma maior transparência do Judiciário, quer participar ativamente do debate nacional sobre essas e tantas outras questões inadiáveis. Tem a AMB importantíssimo papel a cumprir na valorização da magistratura, na busca de soluções para a melhoria do Judiciário, na defesa da independência do Poder, do Estado Democrático de Direito e da cidadania brasileira. Estejam certos de que, mais uma vez, não desertaremos.

Trago comigo a experiência da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, a Ajuris, entidade notável na capacidade de aproximação com a sociedade e, por isso, respeitada pela comunidade gaúcha.

Sei que a tarefa não será fácil, embora me conforte a companhia de tantos colegas de diretoria, movidos que estamos todos pelo mesmo entusiasmo e dotados, eles, de reconhecida capacidade e coragem.

Para finalizar, penso que não há paradoxo na coexistência de humildade e altivez. Espero fazer em mim a melhor síntese desses predicados. Ser humilde na disposição de permanentemente ouvir a todos, de estar constantemente aberto ao diálogo, de mudar de orientação quando convencido do equívoco, de aceitar, com o espírito desarmado, tanto a vitória quanto a derrota nas decisões colegiadas, ser humilde no saber conviver com as adversidades e as incompreensões.

Ser altivo, sem embargo, na consciência de que podemos promover grandes mudanças, de que não cederemos a pressões ou contingências ilegítimas, de que não alcançamos a Presidência da AMB para o exercício de gestão simpática, na consciência de que teremos força para contrariar interesses, mesmo dos companheiros mais próximos, acaso não sejam razoáveis e justos, e de que por isso mesmo enfrentaremos resistências até internas, mas que não nos abaterão o ânimo, altivos na consciência de que somos, com orgulho, magistrados brasileiros, lutamos por um país mais justo e nos faremos ouvir.

Altivos, enfim, na plena convicção de que somos nós mesmos os sujeitos de nossa história e os responsáveis por nosso destino.

Muito obrigado.

Brasília, 12 de dezembro de 2001.

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