Mensagens inúteis

Princípio da insignificância não se aplica em envio de spam

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17 de dezembro de 2001, 12h48

O sucessivo desenvolvimento das artes não se assemelha ao movimento dos ventos que nascem vigorosos, para em seguida se enfraquecerem até desaparecer. Mas pelo contrário, parece-se com o curso dos rios que nascem pequenos e débeis, e chegam ao mar grandes e poderosos, enriquecidos pela água dos afluentes. (Paolo Rossi, 1989 (1) )

O artigo 65 da Lei das Contravenções Penais

Na escada dos ilícitos, o spam se encontra em todos os seus degraus. É contravenção (2) , é crime e é ilícito civil, além de atentar contra direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Seu aspecto contravencional está previsto pelo artigo 65 da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei n.° 3.688, de 3 de outubro de 1941), ou LPC. Transcrevamo-lo:-

Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.

O tipo penal, como explicitado, compreende dois aspectos: o ataque ao bem juridicamente tutelado (a tranqüilidade) e o modus do ataque (por acinte ou por motivo reprovável).

A molestação – ou a perturbação à tranqüilidade pessoal – ocorre sempre que forem causados incômodos, aborrecimentos, tormentos ou irritações para a vítima, por parte do agente.

Tranqüilidade, do latim tranquilitas (calma, bonança, serenidade), exprime o estado de ânimo, sem preocupações, nem incômodos, que traz às pessoas uma serenidade, ou uma paz de espírito.

A tranqüilidade, assim, revela a quietude, a ordem, o silêncio, a normalidade das coisas, que, como se faz lógico, não transmitem nem provocam sobressaltos, preocupações ou aborrecimentos, em razão dos quais se possa perturbar o silêncio alheio.

A tranqüilidade, sem dúvida alguma, constitui direito inerente a toda pessoa, em virtude do qual está autorizado a impor que lhe respeitem o bem-estar ou a comodidade de seu viver. E se tentam contra ela, para lhe perturbar a paz de espírito ou lhe trazer atribuições, em exercício do direito de viver tranqüilo, pode pedir a proteção pública, para que cesse a molestação e se aplique ao molestador, ou perturbador de sua tranqüilidade, as sanções consignadas em lei (Lei das Contravenções Penais, art. 65).

Para que se configura a contravenção ao princípio da tranqüilidade alheia, muitos serão os fatos. Basta que o agente intencionalmente pratique um ato visivelmente perturbador ou molestador da paz de espírito, ou do sossego da vítima, promovendo-lhe injustos dissabores, ou atribuições injustas, ou lhe induzindo a sobressaltos e preocupações. (3)

Afinal, todos temos o direito de não sofrermos os resultados dos aborrecimentos que não provocamos (que não demos causa). Apenas as obrigações derivadas da cidadania e o que for decorrente de imponderações planetárias (cataclismas) sobre nós devem exercer influência. Excluídas essas situações, esse nosso direito é absoluto e nossa tranqüilidade pessoal será objeto de tutela jurídica onde quer que estejamos (em casa, no trabalho, numa caminhada ou numa praça), já que a Lei não faz distinções neste sentido.

A fruição da tranqüilidade pessoal é imprescindível para o exercício de nossa privacidade, aquele “lugar” onde podemos dar vazão a nosso mais escondido Eu. É um direito indisponível e irrenunciável do qual todos somos titulares. Podemos deixar de o exercer, mas não podemos o renunciar.

A tranqüilidade pessoal compreende o sossego, o direito de ver, pensar, ouvir ou tocar o que se deseja, sem incômodos ou atribulações. A ameaça a esse bem jurídico se caracteriza quando o ato praticado causa aborrecimentos, ira ou execução de trabalho desnecessário, inoportuno ou indevido. Não se confunde com a figura contravencional prevista pelo artigo 42 da LPC (4) , a qual diz respeito à perturbação do trabalho ou do sossego alheios. A figura do artigo 65 trata exclusivamente da tranqüilidade pessoal.

Mas não bastam a molestação ou a perturbação à nossa tranqüilidade. É necessário que o contraventor aja com acinte ou por motivo reprovável. (5)

Age acintosamente quem faz algo de propósito, intencionalmente, deliberadamente. O ato não há que ser necessariamente grosseiro; basta que seja desrespeitoso. Reprovável, por sua vez, é tudo aquilo que é feito por motivo fútil, a pretexto gratuito e despropositado.

Considerado o que é molestação, perturbação, tranqüilidade, acinte e motivo reprovável, temos que na contravenção em análise, o bem protegido é a tranqüilidade particular. Os sujeitos ativo e passivo podem ser qualquer um, como qualquer um pode ser o meio de execução. Por fim, tem que haver dolo na conduta, que pode ser momentânea ou persistente, in loco ou à distância, in temporis ou atemporal.

No caso de spamming, especificamente, o bem juridicamente tutelado é a tranqüilidade pessoal do destinatário da mensagem eletrônica, o sujeito passivo é o Homem qualquer destinatário da mensagem e o sujeito ativo é o spammer. O meio de execução é a internet. A perturbação – ou molestação – pode ser momentânea ou persistente. Sempre ocorrerá em padrões temporais distintos.


De certo modo, essa questão não é nova para nossos Tribunais. Já foi objeto de discussão sob outra ótica, quando da utilização convencional das secretárias eletrônicas – um novo (na época) petrecho tecnológico para envio de mensagens. Com o e-mail o mesmo tem vez.

Ementa: Contravenção Penal. Perturbação da Tranqüilidade. Comete a Contravenção Penal de Perturbação da Tranqüilidade, Por Acinte, Prevista no Art. 65 da Lei das Contravenções Penais, o Agente que por Meio de Mensagem Telefônica, Gravada por Secretária Eletrônica, Exterioriza Palavras Ameaçadoras, Deixando Recados Ofensivos, Fatos que Causam Perturbação Emocional . A Condenação de Multa Imposta ao Infrator deve ser Mantida. Negado Provimento ao Recurso para Manter a R. Sentença. Decisão: DESPROVER O RECURSO. UNÂNIME. (Apelação Juizado Especial Criminal 20000110249925apj DF – Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F. – julgado aos 03/10/2000 – Relator : JOÃO TIMÓTEO DE OLIVEIRA – DJU: 21/11/2000 Pág. : 39, Seção 3).

Uma nova tecnologia não demanda um novo ordenamento jurídico, mas u’a nova avaliação tecnológica. A solução jurídica, via de regra, existe. Porém, ela somente poderá ser alcançada se o profissional do direito que a colocar em discussão tiver noção da parafernália tecnológica de que estiver tratando. Caso contrário estará brincando de Sísifo (6) .

Aspectos contravencionais dos spams

O spammer tem sua conduta tipificada pelo artigo 65 da LPC porque tanto molesta quanto perturba a tranqüilidade pessoal do cidadão/usuário da internet. Aborrece-o, importuna-o e o ofende ao lhe impingir a indesejável tarefa de ter que receber a indesejável correspondência eletrônica que não solicitou e ter que apagá-la – o que implica em desperdício de tempo e dinheiro. E isso de modo acintoso e reprovável.

Contudo a tutela legal da tranqüilidade pessoal não guarda limites. Se a princípio protegia de barulhos e fumaça, hoje nos protege de outras intrusões à nossa privacidade, inclusive na internet, uma vez que o meio para a consumação da contravenção pode ser qualquer um.

“Não importa o meio usado, in abstrato, para se considerar idôneo e produzir o incômodo ou perturbar a tranqüilidade pessoal. O caso particular é que caracteriza aquela idoneidade, atendendo-se às circunstâncias. Assim, a aparição de fantasma ou simulação de fenômeno sobrenatural deve considerar-se eficaz para concretizar a infração. É o parecer de Manzini.

“O fato de ser praticado pela imprensa, pelo rádio, em impressos, desenhos, palavras, comunicações telefônicas, caricaturas, etc.. A lei apenas fala em molestar ou perturbar a tranqüilidade.

“O que interessa, essencialmente, é que com o uso de qualquer meio que se tenha, efetivamente, molestado alguém. É, pois, uma contravenção dolosa que exige resultado. Tudo que é apto para alterar fastidiosamente ou importunamente, de modo mediato ou imediato, o estado psíquico atual de uma pessoa, deve ser considerado, não importando tenha caráter momentâneo ou durável.” (7)

O spam molesta e perturba a tranqüilidade pessoal do cidadão/usuário da internet porque esse passa a ter que fazer o que nenhuma lei o obriga a fazer. Ele não tem opções quanto ao recebimento do spam, ao contrário dos apologizadores do spamming. O cidadão/internauta vítima é obrigado a receber o spam e torcer para que não esteja infectado com algum novo vírus. Tudo isso lhe causa enfados e distúrbios, além de atrapalhá-lo em suas rotinas.

Essas molestações – ou perturbações à tranqüilidade pessoal – podem ocorrer in temporis ou não. Ocorre in temporis quando o cidadão/internauta se vale de softwares de troca de mensagens eletrônicas instantaneamente. A ação tem vez de modo atemporal quando o spam enviado é “aberto” depois de algum tempo de ter sido recebido.

Inegável, outrossim, o animus doloso do spammer, eis que quando envia seus indesejáveis e-mails, sabe, de antemão, que a conta da correspondência eletrônica vai ser paga por aquele que recebe o e-mail, mesmo em o não desejando. Sim… ele pressupõe os resultados de sua conduta, conhece o mecanismo que envia as miríades de e-mailsindesejados, sabe que seu custo é irrisório para ele, do mesmo modo que está cônscio que os destinatários “ratearão” as despesas de seu acintoso e reprovável meio propagandístico.

A tranqüilidade pessoal – que implica em paz, sossego e ausência de incômodos e ansiedades – é ofendida pelo spammer, que insiste em nos impingir indesejáveis, inconcebíveis e impertinentes atribuições.

Por vezes nossa tranqüilidade pessoal é posta de lado para dar vez à irritação, o que se justifica por termos que apagar aquele mesmo indesejável e-mail – que veio uma vez, duas vezes, centenas de vezes e que não para de vir… Não há direito de publicitários que possa suplantar nosso constitucional direito à privacidade, à tranqüilidade pessoal.


Em outros casos (na maioria, talvez) a lesão pode ser irreparável e a turbação da tranqüilidade pessoal muito maior. Imaginemos um cidadão/usuário de correio eletrônico remoto (ou baseado) (8) .

Nesses correios o internauta dispõe de um determinado volume de memória que pode ser utilizada para o recebimento – e guarda – de emails. Se, em decorrência de recebimento maciço de spam, sua cota for excedida, o internauta deixará de receber as eventuais mensagens eletrônicas que efetivamente são de seu interesse para acumular incontáveis mensagens eletrônicas não solicitadas – sejam comerciais ou não. De perturbação à tranqüilidade pessoal – ou molestação – a dano patrimonial. Esse é um factível é sempre pintado por um spammer, aquele que nos força “atender” a ligação a cobrar…

Em outras palavras, a conduta do spammer encontra-se resplandecentemente enquadrada na figura capitulada pelo artigo 65 da LCP, caso não seja abarcada por um crime maior (difamação, calúnia e injúria, por exemplo).

A não aplicabilidade do princípio da insignificância ao spam

O princípio da insignificância no Direito Penal diz respeito ao que é pequeno, ao que é irrelevante, moral ou socialmente, na esfera jurídica. Estriba-se em dois velhos princípios romanos: nullum crimen sine iniuria (9) e de minimus non curat prætor (10) . É aplicado aos crimes de bagatela, ou de pequena – às vezes nenhuma – importância ou relevância social.

Se um delito cometido não ferir bem juridicamente tutelado, defrontamo-nos com a hipótese de crime inconcebível – ou crime de bagatela próprio. Já se um delito cometido se enquadrar no rol dos tipos previstos pelo legislador penal – mas não for, social ou moralmente, relevante ou significativo -, defrontamo-nos com o crime de bagatela impróprio. Afinal, além da conduta criminosa, todo crime deve apresentar resultados que justifiquem a punição. Se não houver justificativa, trata-se de crime de bagatela.

Quando ocorrem, não temos porquê por em ação a máquina judiciária. Nesses casos é de ser adotado o princípio da insignificância, afastando-se, pois, do apenamento das questões isentas de repercussão relevante na esfera da tutela jurídico-penal.

“Os romanos, com sensibilidade jurídica ainda hoje, anunciaram o aforisma de minimus non curat prætor. Com efeito, as coisas insignificantes não devem ser consideradas.

“Modernamente, esse pensamento, projeta-se, na doutrina, através da teoria da insignificância”.

“Haveria razão, interesse qualificado para punir-se exemplificativamente, a manicure que, ao cortar a cutícula ferisse ligeiramente a mão da cliente? Ou mesmo se a cabeleireira ao secar os cabelos de uma senhora, superficialmente queimá-los ou provocar ligeira lesão corporal? No mesmo sentido, punir a título de furto, alguém que, sem autorização do proprietário, retirasse um palito da caixa de fósforo alheia, para acender o cigarro?

“Fisicamente, sem dúvida, houve resultado. Lesão corporal, nos dois primeiros exemplos e diminuição do patrimônio no último. Normativamente, contudo, a conclusão é diversa, contrária, oposta.

“O direito penal só cuida das condutas que afetem significativamente o bem jurídico protegido”.

“Essa afirmação conduz, necessariamente, a afastar-se o resultado normativo. Em outras palavras, afeta o tipo. Conduz, por isso, à atipicidade da conduta. Tal concepção imagina o tipo em sua estrutura material. Não se contenta com a análise meramente formal.” (11)

De certo modo o princípio da insignificância apoia-se na teoria da adequação, que é a institucionalização da exclusão de tipicidade para determinadas situações.

Um dos clássicos exemplos do princípio da adequação é o relativo às lutas de box.

Se um dos pugilistas matar seu adversário em decorrência de um fatídico golpe, inegavelmente terá sua atitude enquadrada no tipo penal do homicídio. Todavia essa conduta não poderá ser apenada, haja vista que não há crime quando a conduta é socialmente aceita e adequada.

Os defensores do spam alegarão o princípio da insignificância é de se aplicado aos spammers. Dirão que a pequenez da lesão individual não justifica a apuração da contravenção. Ledo engano.

Inegável, outrossim, o animus doloso do spammer, eis que quando envia seus indesejáveis e-mails, sabe, de antemão, que a conta da correspondência eletrônica vai ser paga por aquele que recebe o e-mail, mesmo em o não desejando. Sim… ele pressupõe os resultados de sua conduta, conhece o mecanismo que envia as miríades de e-mails indesejados, sabe que seu custo é irrisório para ele, do mesmo modo que está cônscio que os destinatários “ratearão”, sponta sua, as despesas de seu acintoso e reprovável meio propagandístico.

Quem envia centenas e centenas de mensagens inúteis – e não solicitadas -, de veracidade duvidosa na maioria das vezes, age com um dolo assumido e, ademais, o resultado de sua ação (a perturbação da tranqüilidade pessoal do cidadão/usuário da internet) é inequívoco.

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