Investigação criminal

Correspondência não é menos inviolável que a vida

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16 de dezembro de 2001, 12h46

Em razão da tragédia que ocorreu nos Estados Unidos, que alguns chamam “País da Liberdade”, setores daquela população passaram a considerar a restrição das liberdades individuais. Isso não mais seria visto como retrocesso cultural, mas como condição necessária à sobrevivência digna e livre do temor de possível novo ataque, abrindo exceções à atuação estatal sobre essas liberdades, quando necessário à investigação criminal.

Para isso foi apresentado, com urgência, projeto de lei que regulamenta a violação de determinados direitos individuais, quando imprescindível à ação do Estado na persecução penal . No Brasil não se teme – ao menos por ora – ataque de tal magnitude, por motivos diversos que não cabe aqui mencionar. Porém, vale refletir acerca da valorização extrema do direito individual quando exercitado diante do poder estatal.

Diversas vezes ocorre de a atividade proficiente do Ministério Público colidir com o regime de direitos individuais, fundamentais no Estado Democrático de Direito, o primeiro zelando pelos interesses sociais e individuais indisponíveis e a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, o segundo tutelando o indivíduo contra a ingerência do Estado em suas liberdades.

Assim, surge a discussão de saber até que ponto o Ministério Público, representando os interesses da sociedade, pode e deve ficar limitado em suas investigações a deparar-se com possível violação aos direitos individuais.

Delimitando o campo abrangente em que atua o Estado, enfocaremos o estudo no art. 5º, XII, da Constituição da República, que trata da inviolabilidade de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

Evidenciaremos ser possível, por meio de interpretação correta da norma, dar tratamento isonômico às correspondências e comunicações de dados e telegráficas da maneira como se faz com o sigilo telefônico e mostrar que isso seria mais um instrumento auxiliar na busca da verdade, especificamente no processo penal.

Presentemente, considera-se que a norma constitucional, diante do princípio da inviolabilidade das comunicações, excepcionou apenas a quebra do sigilo telefônico, proibindo a violação do sigilo das correspondências e das comunicações telegráficas e de dados. O intuito da presente análise é perquirir se a interpretação que se faz do inciso XII do art. 5º da Constituição da República atende aos direitos e interesses da sociedade.

Manifestaremos nossa opinião no sentido de que, com uma correta interpretação da norma, o legislador estaria compromissado em efetivar com urgência a criação de lei, fundamentada na própria Constituição, para regulamentar a violação do sigilo das correspondências e das demais comunicações, servindo de instrumento de salvaguarda do interesse da coletividade na instrução processual penal, bem como na investigação criminal.

Como se disse anteriormente, tem-se afirmado que a interpretação do art. 5º, XII da Constituição da República, quanto à quebra do sigilo, restringe-se a autorizá-la nas comunicações telefônicas. Contudo essa interpretação não corresponde ao mais adequado sentido da norma, pois os tribunais superiores têm autorizado a quebra do sigilo de dados relativos às práticas bancárias e, também, ao que se refere à quebra do sigilo de dados que comprovam a ocorrência de contatos telefônicos.

Segundo José Afonso da Silva, participar da sociedade política é reconhecer que ela possui poderes para limitar o exercício dos direitos individuais, podendo impor restrições ao indivíduo e exigir-lhe sacrifícios no interesse da coletividade. Ainda mais quando o indivíduo agiu contra bens jurídicos de relevante valor para a sociedade, tanto que o Estado os protegeu mediante normas penais aplicáveis a quem os ofender.

O Ministério Público, em exercendo suas atribuições, muitas vezes depara-se com obstáculos intransponíveis. Em nossa opinião, não em razão da proibição absoluta da lei, mas em virtude da sua não-regulamentação por inércia legislativa e mais ainda por equívoca interpretação jurídica. Dizemos isso porque não há, ainda, a regulamentação da parte inicial do art. 5º, XII, da Constituição da República, o qual passaremos a examinar.

Diante da ausência quase que generalizada dos doutrinadores em tecer considerações acerca da violação das correspondências, concluímos que há um entendimento, em sua maior parte implícito, de que a Constituição da República apenas autorizou a quebra do sigilo telefônico a que se reporta o inciso XII do art. 5º. Dizemos isso com base na afirmação do saudoso Paulo Lúcio Nogueira, em seu “Curso Completo de Processo Penal”, onde leciona:

“Por isso, andou bem o legislador constituinte de 1988, ao prever a possibilidade da interceptação da conversa telefônica, ao dispor: ‘é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados…”


Também confirma nosso entendimento o professor José Afonso da Silva, que, no capítulo “Garantias Constitucionais Individuais – Direito à Segurança” – de seu livro Curso de Direito Constitucional Positivo, ressalva apenas as comunicações telefônicas, sendo de sua opinião que a Constituição da República apenas as excepcionou, não estendendo seu argumento às demais. Assim preleciona:

Ao declarar que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, a Constituição está proibindo que se abram cartas e outras formas de correspondência escrita, se interrompa o seu curso e se escutem e interceptem telefonemas. Abriu-se excepcional possibilidade de interceptar comunicações telefônicas, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual”.

Também Alexandre de Moraes, em seu Direito Constitucional, leciona:

Ocorre, porém, que apesar de a exceção constitucional expressa referir-se somente à interceptação telefônica, entende-se que nenhuma liberdade individual é absoluta, sendo possível, respeitados certos parâmetros, a interceptação das correspondências e comunicações telegráficas e de dados sempre que as liberdades públicas estiverem sendo utilizadas como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas.

Para isso, foi criada a Lei n.º 9.29696 de 24 de julho de 1996, que regulamentou apenas a parte final do dispositivo, referente à quebra do sigilo telefônico, mas deixando uma lacuna prejudicial ao trabalho do Estado, principalmente do Ministério Público, um dos principais tutores dos interesses da sociedade na realização da justiça penal. Absteve-se o legislador de aperfeiçoar-lhe o campo de ação na persecução penal, possibilitando o aumento da impunidade, já que sempre se estará agindo contra direito individual.

Segundo Luiz Carlos Sangali, em seu livro Interceptação telefônica e prova ilícita, há alguns que sustentam, como Ada Pellegrini Grinover, a interpretação mais ampla do dispositivo, de acordo com as situações de sigilo propostas pela Constituição, que seriam a inviolabilidade de correspondência e de comunicações telegráficas, de dados e telefônicas, afirmando-se a possibilidade de quebra do sigilo nestes três casos. Como enfatiza a douta Ada P. Grinover, na doutrina constitucional moderna não há espaço para considerar as liberdades públicas como direito absoluto.

Estranha-se que no próprio art. 5º a Constituição, reconhecendo a relatividade dos direitos à vida, à liberdade de reunião, à liberdade de ir e vir, bem como à liberdade de culto e à propriedade, não o tenha feito quanto a um bem jurídico menos relevante, caso a interpretação que alguns fazem esteja correta.

Portanto, fica sem fundamento lógico a forçada interpretação sem ressalvas do sigilo das comunicações telegráficas e de dados, e especialmente do das correspondências. A prevalecer essa interpretação, a correspondência seria inviolável absolutamente, mas a própria vida, seria excepcionalmente violável (art. 5º, XLVII, a). Há nisso uma incongruência evidente, que leva a considerar que o legislador de fato quis ressalvar todos os casos do inciso XII e não apenas as comunicações telefônicas.

Cremos que toda discussão iniciou-se por uma restrita interpretação gramatical. Porém, mesmo do ponto de vista exclusivamente gramatical – pondo de lado a interpretação teleológica que se vinha fazendo -, consideramos inadequada a restrição da possibilidade de quebra de sigilo às comunicações telefônicas.

É o que se passará a demonstrar. Quando a Constituição mencionou “…salvo, no último caso, …” não quis dizer que “no último” restringia-se ao termo “comunicações telefônicas”. Se assim quisesse dizer, usaria “neste último caso”, como corretamente fez utilizando o pronome demonstrativo “neste”, no art. 37, inciso XIX, quando se refere à necessidade de lei complementar para o caso de definir as áreas de atuação das fundações públicas.

Querendo-se referir ao último termo da oração, deveria usar o pronome demonstrativo “este”; já quando se quer mencionar o primeiro termo da oração, faz-se uso do “aquele”. A colocação inadequada do termo “no último caso” levou os intérpretes a considerar que aquela frase se referia às comunicações telefônicas, pois elas seriam “o último caso”.

Da maneira como está escrito o inciso, é possível considerar a função do “no” como a contração da preposição “em” mais o artigo “o”. Há duas funções possíveis para o “o”: artigo ou demonstrativo. Como pronome demonstrativo, segundo os gramáticos Sacconi e Hildebrando A. de André, equivale a “aquilo, isso e aquele” (e variações). Portanto, considerando-o como demonstrativo, vemos incongruência com o único uso possível do “o” significando “aquele”, que por sua vez, como demonstrativo, equivale ao primeiro termo da oração, mas, no caso em tela, o constituinte quis referir-se ao último termo da oração e assim trocar-se-ia a função do “aquele” pelo “este”.


Como função de artigo teríamos a seguinte frase “em o último caso”, significando o termo assinalado que, em última hipótese, ou seja, não havendo outro modo de coligir provas para evidenciar o fato, seria permitida a violação do direito individual, nas hipóteses e na forma da lei.

Significaria medida extrema, na falta de outras menos violadoras, freqüentemente usadas para instruir o processo ou inquérito, como por exemplo, a ouvida de testemunhas. Seria o último recurso buscado pelo Estado para prova da alegação. Usualmente proferimos a frase “no último caso” para demonstrar que, entre as várias opções com que contamos, aquela seria o último recurso usado, pois a temos como medida extrema.

Veja-se o exemplo muito atual da frase “Os servidores públicos têm várias opções para levar o Governo a dar-lhes aumento, no último caso farão greve”. Como se percebe, a intenção é que não se faça uso diretamente daquela opção extremada, mas que se encontrem outros meios para atingir o mesmo fim, porém, não sendo possível, autoriza-se tal medida.

Compreenda-se que comunicação é o gênero transmissão, do qual são espécies as correspondências, as comunicações telegráficas, de dados e telefônicas. Utilizando-se apenas de meios diferentes para transmissão, as comunicações devem ser tratadas igualmente, pois não há fundamento para que tenham regulamentação distinta.

A Constituição da República tratou-as da mesma forma sempre que se reportou às comunicações. Necessário se faz trazer à baila o art. 136, § 1º, I, b e c, bem como o art. 139, III, ambos da Constituição da República, em que se trata do estado de defesa e do estado de sítio, prevendo-se restrição àqueles direitos.

Não cabe procurar reforçar o entendimento que aqui se combate, afirmando que é justamente no estado de legalidade extraordinária que eles podem ser violados, por ser situação excepcional, pois do mesmo modo foi tratado o sigilo telefônico. Isso mostra mais uma vez que o legislador, em todo caso de comunicação, não restringe a violação lícita à comunicação telefônica, mas a amplia para toda forma de transmissão de informações, seja ela de dados, telegráficas ou até pelas correspondências.

Para reforçar a argumentação, vale considerar o art. 6º, XVIII, a da Lei Complementar n.º 75 de 20 de maio de 1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União). Essa lei complementar – cujos dispositivos jamais foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal – dispõe sobre as atribuições do Ministério Público, no capítulo II (“Dos Instrumentos de Atuação”).

Sendo do ano de 1993, portanto, posterior à Constituição, seguiu o legislador complementar da época o entendimento do constituinte e atribuiu ao órgão do Ministério Público poderes para representar ao órgão judicial competente para quebra de sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, bem como manifestar-se sobre representação a ele dirigida para os mesmos fins. Este último seria o caso de representação da autoridade policial judiciária, quando no decorrer de suas investigações, para instruir inquérito policial, necessitar violar correspondência do indiciado, por exemplo.

Aliás, o art. 233 do Código de Processo Penal estaria de acordo com o sistema interpretativo de agora, pois seria um auxílio à produção deste tipo de prova, quando diz que as cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não seriam admitidas em juízo. Admite, portanto, a interpretação que defendemos, pois, obtida ou receptada por meios legais, ou seja, por ordem judicial, ao amparo de permissivo legal regulamentado de acordo com o inciso XII do art. 5º da CR, estaria permitida tal prova.

Enfim, acrescentamos que uma interpretação percuciente dá fundamento para afirmar que a teoria da proporcionalidade teria aplicação plena ao caso, pois o interesse predominante, que é o público, deve prevalecer sobre o particular ou privado, não podendo este ser resguardado pela tutela legal, quando o particular fez mal uso do seu direito. A interpretação gramatical, como se sabe, não é em geral insuficiente por si só para conduzir a resultado conclusivo.

Por isso, atenderia ao interesse coletivo a interpretação que se propõe, buscando-se adequar todo sistema constitucional e processual penal ao interesse maior. Do contrário, corre-se o risco de o Estado e a sociedade ficarem excessivamente vulneráveis, caso não se eleja como prioridade a segurança e o bem-estar dos cidadãos. Isso importa buscar o equilíbrio entre os interesses da coletividade e o exercício do direito individual, dando-se primazia àquele em detrimento deste, quando postos em choque.

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