Vergonha no ensino

Analfabeto passa em vestibular para Direito no Rio de Janeiro

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10 de dezembro de 2001, 13h07

Para fazer esta reportagem nós pedimos ajuda ao padeiro Severino da Silva, um brasileiro de 27 anos, nascido na Paraíba. Ele não sabe ler nem escrever. Não pôde ir à escola quando era criança. Severino é analfabeto.

Mas ele quer espantar o fantasma do analfabetismo. A luta para aprender a ler e escrever é no curso de uma pequena igreja, perto de casa, no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense: “Ele entrou realmente sem quase conseguir escrever palavra nenhuma. Hoje ele já consegue escrever algumas coisas. Ler, ele pode, mas com grande dificuldade. Ele não tem condições de interpretar aquilo que ele está lendo”, avalia a professora de alfabetização Juçara Silva.

A tarefa fica mais difícil quando o aluno já não é mais criança. Severino sabe que, para aprender a ler e escrever fluentemente, é preciso estudar mais, ser alfabetizado de verdade. Depois tem ainda um longo caminho. E, quem sabe um dia, pensar até no vestibular. Mas para fazer o vestibular é preciso estar bem preparado. Ou será que não?

O Fantástico pediu a ajuda de Severino para fazer o teste do vestibular. Um analfabeto vai fazer a prova para entrar na faculdade de direito da maior universidade particular do Rio de Janeiro. O que será que vai acontecer?

O Fantástico inscreveu o padeiro de Nova Iguaçu na universidade particular que mais cresceu nos últimos anos. Uma campeã em número de alunos, mais de 60 mil. Já é a terceira maior universidade do Brasil em número de alunos matriculados. São tantas vagas que há vestibular de 15 em 15 dias. O analfabeto vai fazer prova na Universidade Estácio de Sá.

Com uma câmera escondida, nós acompanhamos Severino no dia do vestibular em uma das muitas filiais da universidade, no bairro carioca do Méier. Na prova de múltipla escolha, ele marcou somente as letras “a” e “b” em todas as questões, até o fim, alternadamente.

Mas e a redação? Para o curso do direito a redação é obrigatória. Severino disse que estava se sentindo mal e não escreveu nenhuma linha. Nem podia. Ele não sabe escrever. A redação do nosso vestibulando analfabeto ficou totalmente em branco. Ele só sabe mesmo desenhar o nome.

Cinco dias depois voltamos à secretaria da universidade para saber o resultado. Severino foi aprovado. E esta não foi a única surpresa: o padeiro saiu da universidade com uma declaração em papel timbrado da faculdade afirmando que ele ficou em nono lugar no vestibular de direito, com 2.562 pontos.

O sorriso era de quem acabou de fazer uma brincadeira, pregar uma peça em alguém. Mas Severino não sabia a dimensão do que tinha acabado de fazer. Ele mostrou a que ponto chegou o nível do vestibular em algumas faculdades particulares brasileiras.

Mas quem entendeu o tamanho do problema foi o reitor da universidade Estácio de Sá, que classificou o analfabeto em nono lugar. Nós levamos o documento oficial mostrando que até um analfabeto passa nesse tipo de vestibular: “Ele obteve 20% de acertos. Isso não significa que ele ia ser chamado, nem matriculado”, alega o reitor da universidade, Gilberto de Oliveira Castro.

Parece mesmo que a quantidade atrapalha a qualidade. O número de faculdades particulares no Brasil quase dobrou nos últimos 10 anos:

1990: 696 faculdades particulares

2000: 1004 faculdades particulares

1990: 222 universidades públicas

2000: 176 universidades públicas

A explosão do número de escolas superiores particulares e a conseqüência que isso teve na seleção dos alunos por meio do vestibular foi o tema de uma pesquisa que deu origem à nossa reportagem.

O autor do trabalho é o jornalista Carlos Palhano, recém-formado por uma universidade particular, a Estácio de Sá, onde fizemos o teste com o analfabeto que foi aprovado com louvor: “Essa mercantilização, esse crescimento, essa coisa unicamente voltada para o lucro, me incomodava. Então eu passei a suspeitar que o vestibular era uma fraude quando passei em primeiro lugar para a faculdade”, diz.

Como o trabalho de fim de curso, ele decidiu testar o processo de seleção de seis faculdades particulares cariocas. E aí o que era suspeita virou realidade: “Marquei tudo “a” e “b”, alternadamente, e fiz uma redação sem coerência, repleta de erros de português. Para minha surpresa, passei. Aí falei: alguma coisa está errada aí. Vamos investigar mais”, conta o jornalista.

Carlos procurou os reitores das universidades onde ele fez o teste e mostrou que qualquer um passa. O Fantástico acompanhou as conversas. O reitor da Universidade Castelo Branco não aceitou o encontro. Os outros reitores deram muitas explicações para o teste que mostrou que o vestibular dessas faculdades na verdade não testa nada. Segundo José Guilherme Leite, coordenador de ensino da Faculdade Hélio Alonso, um aluno mal preparado não sacrificaria o aprendizado dos outros alunos: “Eu diria que ele vai constituir, como alguns outros, um desafio mais sério que, de repente, é até estimulante”.

“Uma coisa é o aluno entrar na faculdade. Outra coisa é o aluno sair dela”, observa Mário Veiga de Almeida, da Universidade Veiga de Almeida. “O processo não está na questão, está na múltipla escolha. É um processo de sorte”, afirma Sergio Dias, reitor da Universidade Gama Filho. “Ele poderá ter tido sorte, sim, de lançar letras que, para aquela prova, eram as letras necessárias minimamente para que ele ingressasse na instituição”, diz Paulo Alonso, reitor da Universidade da Cidade.

Segundo o Ministério da Educação, as universidades particulares hoje em dia não são mais obrigadas a fazer o vestibular para selecionar seus alunos. Cada universidade faz a escolha do seu jeito: “As universidades têm autonomia para definir os processos seletivos, isso é lei e é constitucional. Então, não cabe ao MEC avaliar as provas feitas pelas universidades públicas ou privadas”, afirma Maria Helena Castro, da secretaria de ensino superior do Ministério da Educação.

O trabalho de Carlos e o teste do vestibular do analfabeto mostram que o processo de seleção para as universidades particulares brasileiras tem alguma coisa de errado. Afinal, Severino ainda não está mesmo preparado para entrar na faculdade.

Fonte: TV Globo – Fantástico

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