Privacidade funcional

'Sigilo de e-mail funcional é relativo'

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8 de dezembro de 2001, 13h42

Estabelecer que a troca de informações por e-mail representa um meio inviolável que não comporta exceção é pressuposto que pode ser questionado. Indubitavelmente, nossa Constituição Federal protege a privacidade e a intimidade das pessoas e das comunicações (art. 5o, incisos X e XII). Inegável também que a quebra de sigilo das comunicações é autorizada para fins de investigação criminal e em instrução penal, sempre determinada por ordem judicial, na forma da Lei no 9.296, de 24.07.1996.

A privacidade das pessoas quando transmitem informações por meio da Internet, entretanto, merece destaque especial, em razão de dois aspectos.

O primeiro seria precisar se a transmissão de dados via internet seria caracterizada como troca de correspondência, capaz de autorizar o sigilo tratado no art. 5o, XII da Constituição Federal e da Lei 6.538, de 22.06.1978 que trata dos serviços postais no Brasil.

De acordo com a Constituição Federal (art. 21, inc.X) e com o artigo 2o da mencionada Lei, os serviços de correio são aqueles explorados em caráter exclusivo pela União, através de empresa pública vinculada ao Ministério das Comunicações.

A Lei e Constituição, portanto, impedem que servidores prestem serviço postal e de telegrama. Por esse motivo, parece razoável afirmar que tais prestadores de serviços não desenvolvem atividade que, pelo ordenamento legal, é reservada ao Estado e que, portanto, os e-mails não se confundem com a definição de carta e telegrama tratada na Lei.

Contudo, somente essa diferenciação autorizaria conclusões precipitadas como, por exemplo, aquela segundo a qual o e-mail, por não contar com o sigilo legal (art. 5o da Lei 6.538, de 22.06.1978), poderia ser violado, o que não parece ter amparo Constitucional.

De fato, o conceito de privacidade desenvolveu-se também a partir de caso onde se discutia o direito da pessoa manter longe do conhecimento de terceiros o conteúdo de cartas. Foi em 1741, quando o Tribunal de Justiça da Inglaterra asseverou “que o destinatário de uma carta tem apenas sobre ela especial propriedade; possivelmente a propriedade do papel. Todavia, isto não dá licença a nenhuma pessoa, seja ela quem for, para tornar público o seu conteúdo, pois o destinatário tem uma co-propriedade com o autor da carta” (1) .

Em tempos em que o papel deveria ser substituído por bytes, o princípio prevalece. O autor de mensagens eletrônicas permanece com o direito de que terceiros não as tornem públicas.

A privacidade permanece protegida. Tanto assim que a Medida Provisória 2.200, de 27.07.01, que trata da certificação de documentos eletrônicos acresceu, em sua segunda edição, um parágrafo único ao artigo 8o estabelecendo que “o par de chaves criptográficas será gerado sempre pelo próprio titular e sua chave privada de assinatura será de seu exclusivo controle, uso e conhecimento”.

O legislador impede que terceiros, inclusive a Autoridade Certificadora ou de Registro, tenham ou possam a ter acesso às informações e atos praticados pelo cidadão, seja ele de que natureza for.

Existem, igualmente, Projetos de Lei que tratam do tema. Destaque merece ser feito ao de número 4.906, de 2001 que trata da atividade certificadora no país.

Nele, a privacidade também vem sendo tratada. Segundo disciplina seu artigo 16, a atividade de certificação digital será regida por vários princípios, dentre os quais destaca-se (inc.II) a preservação da privacidade do usuário; (inc.IV) o direito do usuário a ser adequadamente informado sobre o funcionamento dos sistemas criptográficos utilizados e os procedimentos técnicos necessários para armazenar e utilizar com segurança a chave privada; (inc.V) vedação à exigência de depósito de chaves privadas pela autoridade certificadora.

Estabelece ainda o Projeto que as Certificadoras deverão (art. 18): implementar sistemas de proteção adequados para impedir o uso indevido da informação fornecida pelo requerente de certificado digital; solicitar do requerente de certificado digital somente as informações necessárias para sua identificação e emissão do certificado; manter confidencialidade sobre todas as informações obtidas do titular que não constem do certificado.

Impede que os dados cadastrais do usuário sejam usados para outra finalidade que não a de certificação, salvo se consentido expressamente pelo requerente, por cláusula em destaque, que não esteja vinculada à realização da certificação.

A quebra da confidencialidade das informações, por seu turno, somente pode ser determinada pelo Poder Judiciário, o que motiva a responsabilidade civil pela quebra desse sigilo, sem prejuízo da caracterização de ilícito criminal.

O projeto estabelece regras sobre a qualidade das informações a serem obtidas para a celebração do contrato de certificação. Neste particular, somente poderão ser solicitadas as necessárias à efetivação do negócio oferecido, as quais devem ser mantidas em sigilo, salvo se prévia e expressamente autorizado pelo respectivo titular a divulgá-las ou cedê-las.

Semelhante tratamento sofrem os provedores de acesso, uma vez que não podem tomar conhecimento dos documentos arquivos ou trocados por seu intermédio, nem duplicá-los por qualquer meio ou ceder a terceiros qualquer informação, ainda que resumida ou por extrato, sobre a existência ou sobre o conteúdo desses documentos, salvo por indicação expressa do seu remetente, exceção feita se essas informações venham a ser requisitadas por determinação judicial.

A privacidade é respeitada, portanto, no curso da relação em que haja participação de provedores ou Autoridade Certificadora e de Registro.

Questão, entretanto, que está causando discussão entre a comunidade jurídica reside em precisar se todas as trocas de informações seriam necessariamente privadas. O problema, neste particular, surge quando empresas disponibilizam e-mails para seus funcionários como meio de desenvolver suas atividades profissionais.

Recente decisão proferida pela Justiça do Trabalho de Brasília (13a Vara, Autos no 13000613/2000), reconheceu a nulidade de prova produzida por empregador que monitorava os e-mails de seus funcionários. Segundo aquele entendimento, por se tratar de ambiente privado, o empregador não poderia violá-lo, ainda que o funcionário deles se valesse para fins estranhos aos serviços empreendidos.

Várias vozes autorizadas se manifestaram, tanto no sentido da correção daquele entendimento que, ressalte-se, encontra-se muito bem fundamentado, como no sentido de questioná-lo, uma vez que seria lícito ao empregador monitorar os e-mails de seus empregados.

A primeira corrente está, basicamente, alicerçada no princípio de que as regras que tratam da privacidade e intimidade não comportariam exceção. Seus opositores, por seu turno, sustentam que se os e-mails seriam da empresa e, existindo prévio conhecimento dos funcionários acerca do monitoramento por meio de políticas empresariais, ilícito algum haveria.

O direito de propriedade, a existência de contrato, ou qualquer declaração autorizando o monitoramento não representam fundamentos para autorizar o monitoramento. Fosse assim, por exemplo, não haveria impedimento para que os telefones da empresa fossem igualmente monitorados, uma vez que tanto o direito de uso da linha, como os aparelhos seriam da propriedade de empregadores. Em igual sentido, não me parece que o contrato poderia afastar garantia Constitucional, ainda mais que trata de garantia individual. O objeto desta avenca, por si só, seria ilícito e sem validade, na forma do artigo 82 do Código Civil.

O ponto que me parece relevante, entretanto, seria estabelecer se, naquele ambiente de trabalho e dentro daquela circunstância, a pessoa teria o direito à privacidade, ou se encontraria num ambiente íntimo.

A resposta, nesse sentido, é negativa. O empregado, dentro do ambiente de trabalho, deve tratar de assuntos profissionais e as correspondências que lhe devem ou são enviadas são de interesse da empresa e não seu pessoal.

Não há, pois, sigilo a ser protegido, pois nada lhe é, ou deve ser encaminhado, nessa condição. É interessante notar que, na definição legal de carta (art. 47 da Lei 6.538, de 27.06.1978), existe fundamento que ampara tal conclusão. A carta, na definição legal, é o objeto de correspondência que contém “informação de interesse específico do destinatário”.

A carta – e o sigilo que a protege – se relacionam a tudo aquilo que se relacione ao interesse específico do destinatário.

Portanto, aquilo que não diga respeito exclusivo a ele pode e deve ser monitorado, em nome, inclusive, dos interesses de terceiros que lhes são confiados, na pessoa da empresa.

Dentro do ambiente de trabalho e quando se troca mensagens ou correspondências não há ambiente privado, ou íntimo, a ser tutelado.

O empregado tem direito a estar só. De não ser incomodado. De manter suas questões pessoais fora do conhecimento de terceiros. Contudo, para tanto, mister estabelecer em que situações e ambientes o direito à privacidade é assegurado e quando são tratados assuntos de seu específico interesse.

Não é na internet, ou por meio de suas ferramentas que o funcionário poderá desfrutar desse isolamento, pois se trata de instrumento a ser utilizado para discussão de assuntos puramente profissionais. Não fosse assim a empresa, por exemplo, não poderia abrir ou redirecionar qualquer mensagem que fosse a ele dirigida, em flagrante comprometimento de suas atividades.

Esse entendimento, inclusive, encontra respaldo em precedente norte americano. A doutrina especializada aponta que no caso Katz vs. USA questão sobre a possibilidade de monitoramento de ligação telefônica foi abordada e nela a Corte decidiu que a Constituição protege pessoas e não lugares. Entretanto, ressalva que, quando a pessoa se encontra em público não há que se cogitar da proteção Constitucional e que, portanto, a privacidade deve ser preservada onde há uma razoável expectativa de aquele ambiente seja privado. ( (2) )

Não se trata de privilegiar a esfera patrimonial-financeira da empresa em detrimento da intimidade. Trata-se, isso sim, de delimitar quais são, dentro da empresa e sociedade em geral, os ambientes privados e quais não, e a caixa postal eletrônica, nesta circunstância, não representa ambiente privado, pois nela devem ser tratados assuntos puramente profissionais.

Por esses fundamentos a questão da privacidade deve ser analisada em cada caso e deve se levar em consideração as situações da vida em que a pessoa pode se recolher ao seu sossego, sem interferência de terceiros e, como dito, o ambiente de trabalho não representa situação em que a pessoa desfrute dessa condição, ao menos quando transmite e recebe mensagens de interesses não seus e específicos.

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