Lei na selva

Justiça do Amapá atende a população onde o Estado não chega

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2 de dezembro de 2001, 12h29

Juiz, promotor, defensor público, oficial de justiça. Todos no mesmo barco. Vai também uma equipe médica e servidores aptos a emitir cédulas de identidade e títulos de eleitor. A destinatária é a população ribeirinha da Amazônia, no Amapá, que raramente tem acesso a serviços públicos.

Para dar força ao projeto, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Paulo Costa Leite, compareceu pessoalmente, neste domingo (2/12), ao porto de Santana (AP), para acompanhar a partida da embarcação da 43ª Jornada Itinerante Fluvial dos Juizados Especiais do Amapá, que passará uma semana na região do Arquipélago do Bailique, na foz do Rio Amazonas, prestando atendimento às comunidades ribeirinhas.

Impressionado com o projeto desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Amapá, o ministro Paulo Costa Leite afirmou que se trata de “um exemplo a ser seguido por outros Estados com as mesmas características geográficas e populacionais”. Segundo o ministro, “essa é a nova justiça brasileira: é a justiça próxima do cidadão, que se desloca, que deixa as torres de marfim em direção ao povo. Temos é que atender as pessoas, fazendo com que elas acreditem que há um Poder capaz de solucionar os seus conflitos. E este é um Poder que está atento à realidade, ao que está acontecendo ao seu redor, não é um Poder fechado, com venda nos olhos”, afirmou.

A equipe judicial, pelas experiências anteriores, deve fazer 40 audiências por dia em cada comunidade.

À população também são oferecidos serviços essenciais como emissão de carteiras de identidade e títulos de eleitor. Uma equipe médica também está a bordo, com um clínico médico e duas enfermeiras. Nesta jornada, a equipe do Juizado Itinerante pela primeira vez está levando uma urna eletrônica, para treinar a população ribeirinha.

Há ainda a presença de um segundo médico, especializado em dermatologia, e de um dentista. Funcionários do INSS também integram a equipe de trabalho para que a demanda previdenciária seja atendida, especialmente com relação aos requerimentos de benefícios. O oferecimento desses serviços é possível graças a diversas parcerias com órgãos dos governos municipal, estadual e federal.

O projeto das Jornadas Fluviais Itinerantes tem chamado a atenção da imprensa internacional. Uma equipe da revista alemã Der Spiegel já acompanhou a viagem, que rendeu quatro páginas em reportagem, intitulada “A lei da selva”.

Em fevereiro deste ano foi a vez de a equipe do documentarista alemão Klaus Dexel acompanhar a jornada, ao lado da ministra Nancy Andrighi, do STJ, que fez todo o percurso. O ministro Paulo Costa Leite informou ao presidente do TJ/AP, desembargador Carmo Antônio de Souza, que os mais novos interessados no projeto são os ingleses. “A rede BBC de Londres fez contato com o Superior Tribunal de Justiça para saber como e com quem se comunicar no Tribunal de Justiça do Amapá a fim de acompanhar uma jornada em 2002. Por isso, nossa presença aqui é a homenagem do Judiciário brasileiro ao Judiciário amapaense pelos resultados que vem apresentando este projeto”, parabenizou Paulo Costa Leite

“A Justiça deve estar a serviço da cidadania, do contrário não tem razão de existir. Todos somos, na verdade, servidores públicos. Precisamos ter sempre em mente os usuários dos serviços que prestamos. Somos escravos da cidadania, por isso temos que melhorar sempre. Se o Poder Judiciário não tiver essa preocupação com o cidadão, é melhor que feche suas portas, é melhor que não exista. Por isso, tenho certeza: a cada vez que juízes, promotores e defensores públicos tomam este barco para levar a Justiça a quem necessita, a quem não tem meios nem facilidade para se deslocar até Macapá, este objetivo primordial é alcançado”, afirmou o presidente do STJ, ao conhecer as dependências do barco. Não há cabines individuais, todos dormem em rede e só há um banheiro. A água para banho e lavar louças é captada do próprio rio e consumida após rápido tratamento.

Na viagem realizada pela ministra Nancy Andrighi, em fevereiro passado, foi possível constatar que a maioria das demandas judiciais dos ribeirinhos do Bailique é de pequena complexidade, podendo ser solucionada por meio da conciliação. O caso mais curioso envolvia dois vizinhos, que trocaram seus animais: um cão e um porco. Aquele que ficou com o leitão, rapidamente o preparou para uma comemoração. O que recebeu o cachorro queria desfazer o negócio, alegando que não conseguia ter a companhia nem o carinho do animal, que não o reconhecia como seu legítimo dono. Mas há casos dramáticos, como o caso de meninas de 10, 12 anos, que sofrem abuso sexual por parte do pai, padrasto e até avô.

Outros problemas comuns na região do Arquipélago do Bailique relacionam-se à pesca e caça predatórias e à extração de palmito. O Ibama proíbe as práticas em determinadas épocas do ano e com isso muitas famílias burlam a proibição a fim de garantir seu sustento. Quando são flagrados pelos fiscais, os ribeirinhos têm problemas, que na maioria das vezes só serão resolvidos na próxima passagem do barco do Juizado Especial, que visita a região a cada dois meses. Nesses casos, geralmente as armas são apreendidas e guardadas até que a audiência seja realizada.

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