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Veja a decisão que anula cláusula em contrato de leasing

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23 de agosto de 2001, 18h02

Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça, resolveu anular a cláusula que previa indexação das prestações de contratos de leasing ao dólar. A ação foi proposta pelo consumidor, José Carlos Silva Vieira, contra o ABN Amro Arrendamento Mercantil.

A ministra Nancy Andrighi, relatora do processo, foi seguida pelos ministros Antônio de Pádua Ribeiro e Carlos Alberto Menezes Direito. Segundo a relatora, a desvalorização do Real frente a moeda norte-americana apresentou grau intenso de oscilação a ponto de onerar excessivamente. Assim, impede que o devedor arque com as obrigações contratuais.

Veja, na íntegra, a decisão.

Recurso Especial nº 268.661 – Rio de Janeiro (2000/0074504-9)

Relatora: Ministra Nancy Andrighi

Voto

Cinge-se o recurso especial ao debate de duas teses: na primeira, afasta o recorrente estar caracterizada a relação de consumo; na segunda, considera que a variação cambial não constituiu fato imprevisível e nem excessivamente oneroso, sendo juridicamente válida e eficaz a cláusula que prevê a indexação em moeda estrangeira.

A caracterização da relação de consumo independe da forma contratual adotada, mas em se saber se há fornecimento de serviço ou aquisição de mercadoria, prestado ou vendida ao destinatário final para uso ou consumo próprio.

No caso em análise, o contrato de arrendamento mercantil foi celebrado com o intuito de locar, com opção de compra, um veículo marca Volkswagen, modelo Gol, para fins de uso próprio pelo autor, ora recorrido, que é servidor público, e agiu com vistas ao atendimento de uma necessidade própria, e não para o desenvolvimento de atividade negocial.

Nos REsp 213.565 e 263.721, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, consignou-se, expressamente, a aplicabilidade do CDC nos contratos de arrendamento mercantil, em que figure o adquirente do bem (ou sujeito da prestação de serviço) como seu destinatário final, ainda que seja pessoa jurídica:

“Arrendamento mercantil. Código de Defesa do Consumidor. Juros. Comissão de permanência.

1. O contrato de arrendamento mercantil está subordinado ao regime do Código de Defesa do Consumidor, não desqualificando a relação de consumo o fato do bem arrendado destinar-se às atividades comerciais da arrendatária. …”. (REsp 235200/RS, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 04-12-2000).

Para a recorrente, a declaração de nulidade da cláusula de reajustamento contratual que previa moeda estrangeira (dólar americano) como indexador, com fulcro no art. 6, inciso V do CDC, afrontou os artigos 115 e 145 do CC, bem como divergiu de precedente do Segundo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo.

Assinale-se, primeiramente, os contornos da cláusula rebus e da teoria da imprevisão.

De há muito a doutrina e a jurisprudência assinalam, pacificamente, como implícita nos contratos de execução diferida e sucessiva, a célebre cláusula rebus sic standibus, abreviação da fórmula Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic standibus intelliguntur – pela qual o poder vinculante do contrato subordina-se à manutenção do estado de fato vigente à época da pactuação.

Daí resultou a teoria da imprevisão, a qual, nas palavras de Arnaldo Medeiros da Fonseca (in Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 2ª edição, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, pp. 13-16), consiste em:

“(…) investigar, em síntese, se é justo, e em que termos, admitir a revisão ou resolução dos contratos, por intermédio do Juiz, pela superveniência de acontecimentos imprevistos e razoavelmente imprevisíveis por ocasião da formação do vínculo, e que alterem o estado de fato no qual ocorreu a convergência de vontades, acarretando uma onerosidade excessiva para um dos estipulantes.”

A se justificar a aplicação da teoria da imprevisão, faz-se necessário não apenas a superveniência de um acontecimento, mas o seu caráter imprevisível e a excessiva onerosidade resultante. Salienta neste aspecto Orlando Gomes (in Contratos, 18ª edição, Rio de Janeiro: Forense, p. 39):

(…) “a imprevisão há de decorrer do fato de ser a alteração determinada por circunstâncias extraordinárias.

(…)

Quando, por conseguinte, ocorre a agravação da responsabilidade econômica, ainda ao ponto de trazer para o contratante muito maior onerosidade, mas que podia ser razoavelmente prevista, não há que pretender a resolução do contrato ou a alteração de seu conteúdo.

Nesses casos, o princípio da força obrigatória dos contratos conserva-se intacto. Para ser afastado, previsto é que o acontecimento seja extraordinário e imprevisível”.

Determinados os contornos da teoria da imprevisão, é de se indagar, entretanto, se os pressupostos legais de aplicação do artigo 6º, inciso V, do CDC adequam-se aos requisitos da teoria da imprevisão, ou se, ao contrário, trata-se de figura jurídica distinta, possuindo contornos próprios.


Reza o artigo 6º e seu inciso V, do CDC, verbis:

“Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”

A leitura do dispositivo permite a conclusão pela dispensabilidade do requisito da imprevisibilidade do fato: basta que seja superveniente e que traga excessiva onerosidade ao consumidor.

Cláudia Lima Marques (in Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais, 3ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pp. 413/415) comenta o dispositivo quanto aos requisitos para a sua aplicação, verbis:

“A norma do art. 6º do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva do negócio, a quebra de seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre prestações, ao desaparecimento do fim essencial do contrato. Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não foi.

Nesse sentido a conclusão n. 3 do II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor – Contratos no ano 2000, com o seguinte texto: “Para fins de aplicação do art. 6º, V do CDC não são exigíveis os requisitos da imprevisibilidade e excepcionalidade, bastando a mera verificação da onerosidade excessiva.

(…)

… mencionar simplesmente que a teoria da imprevisão teria sido aceita pelo CDC pode ser uma interpretação do art. 6º, inciso V, prejudicial ao próprio consumidor, pois dele pode ser exigida a referida imprevisão e extrinsibilidade do ocorrido, fatos não mencionados em referido artigo.”

A aplicabilidade do artigo 6º, inciso V, do CDC dependerá apenas da ocorrência de fato posterior que cause, objetivamente, excessiva onerosidade ao consumidor.

Por fim, o ponto nodal, ou seja, determinar se a variação cambial ocorrida, fato superveniente que é, acarretou, ou não, excessiva onerosidade ao consumidor.

O Plano Real esteve lastreado em sistema de variação cambial do dólar por bandas, fixando-se os valores mínimo e máximo de cotação da moeda estrangeira, de acordo com a política econômica da União, por intermédio do Banco Central.

Esta situação vigorou até o dia 19-01-1999, quando ainda estava em vigor o Comunicado n. 6.560, de 13-01-1999 (DOU de 15-01-1999, Seção 3, p. 15), o qual definia a flutuação para a compra e venda de dólares americanos com limite mínimo de R$ 1,20 e o máximo de R$ 1,32.

A partir desta data (Comunicado n. 6.563, de 15-01-1999, DOU 19/1/1999, Seção 3, p. 8), o Banco Central cessou sua intervenção perene no mercado de câmbio, ressalvando sua intervenção eventual, em casos de movimentos desordenados das taxas cambiárias.

Em decorrência, passou a ser livre a flutuação da cotação do dólar, a qual estabilizou-se dias após, atingindo o preço de equilíbrio valor entre R$ 1,65 e R$ 1,70.

Como dito alhures, em referência à lição de Cláudia Lima Marques, com o advento do , V, não mais se exige a “imprevisibilidade” do evento CDC, por seu art. 6 prejudicial, quando a relação jurídica material for relação de consumo.

É inegável a excessiva onerosidade superveniente, capaz de desequilibrar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, e o próprio adimplemento das obrigações contraídas pelo hipossuficiente.

Também é inafastável a conclusão de que a estabilidade contratual ficou comprometida com a liberação da cotação da moeda estrangeira, fato que, ademais, era imprevisível, ante os compromissos públicos do Estado em assegurar a contenção da inflação.

Foi atingida a boa-fé objetiva do consumidor e seu direito de informação, porque não há , III, e 10,qualquer advertência quanto ao risco da operação financeira (art. 6 “caput”, 31 e 52 do CDC), e sua assunção pelo consumidor.

A cláusula genérica do contrato de adesão pontua que:

“Tendo a arrendatária optado pelo reajuste monetário segundo os mesmos índices de variação do dólar norte-americano, a mesma declara estar ciente de que os recursos necessários à aplicação específica na aquisição de Bens foram captados pela Arrendadora naquela moeda estrangeira … reconhecendo a Arrendatária, expressamente, o direito da Arrendadora utilizar a variação das taxas de câmbio ocorrida entre o preço da compra do dólar norte-americano relativo ao último dia útil precedente à data do desembolso pela Arrendadora e o preço da venda do dólar norte-americano relativo ao último dia precedente às datas de vencimento das Contraprestações e dos demais valores devidos pela Arrendatária, taxas divulgadas pelo SISBACEN – Sistema de informações do Banco Central do Brasil, transação PTAX 800. A ARRENDATÁRIA também declara estar ciente de que o reajuste monetário aqui mencionado não se confunde com pagamento em moeda estrangeira e não nega curso legal à moeda corrente nacional, observando-se que os valores por ela devidos em decorrência do presente instrumento serão pagos em moeda nacional em curso”.


A desproporcionalidade advinda com a desindexação cambial do , V sistema de bandas é fundamento para revisão contratual estatuída no art. 6 do CDC, porque decorrente de fato superveniente que onerou a prestação contratual excessivamente.

E, no contrato de arrendamento mercantil da Resolução n. 2.309/96 do BACEN), adquirido o bem pela financeiro (art. 5 arrendadora, para ser entregue em locação à arrendatária, mediante pagamento de um valor principal e outro residual, na forma contratualmente avençada, a equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado.

Se é certo que ambas as partes contratantes sofreram os efeitos de fato superveniente, a modificação da situação fática se fez determinante em relação ao consumidor, em geral de parcos recursos para gerir o orçamento doméstico e que não detém meios de compensar a majoração ocorrida a partir do mês de janeiro de 1999 na prestação de arrendamento mercantil com outra receita própria.

O interesse da instituição financeira em captar recursos monetários no exterior, para financiamento de aquisição de bens, comporta riscos que devem ser distribuídos eqüitativamente, e, no caso do consumidor, somente se transferiria este ônus se o tivesse assumido, expressamente, e ciente das vicissitudes incidentes. No caso em tela, apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, porque o capital que dispensará, para resgatar as obrigações contraídas no exterior, está garantido pela correspondente majoração da prestação do consumidor, que, por sua vez, está desamparado por qualquer mecanismo de prevenção ou defesa. Evidente o tratamento sem paridade contratual.

Um outro aspecto que merece destaque é a imprescindibilidade da arrendadora se desincumbir do ônus da prova de captação de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial.

Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela.

Também deve-se notar que o contrato destinado à captação de empréstimos no exterior deve discriminar sua finalidade de financiamento de operações de arrendamento mercantil, sob pena de privilegiar o ônus probatório da instituição financeira pela juntada de qualquer contrato de captação externa de recursos, e frustrar o preceito legal de nulidade da da Lei nº contratação de reajustes vinculados à variação cambial (art. 6 8.880/94) [há exceção na hipótese de contratação de arrendamento mercantil celebradas entre pessoas físicas e jurídicas domiciliadas no país e quando da Lei nº “expressamente autorizado por lei federal” (segunda parte do art. 6 8.880/94)].

A autorização excepcional, que consta na 2ª parte do art. 6 da Lei n. 8.880/94, deve ser interpretada restritivamente, pois, de outra forma, o consumidor estaria assumindo um risco próprio da atividade financiadora da sociedade de arrendamento mercantil, que é o provimento de capital para as operações comerciais desta – sociedade de arrendamento mercantil – para aquisição de bens de interesse dos arrendatários. O ônus da prova de captação de moeda estrangeira para aquisição daquele bem locado ao arrendatário, com tríplice opção posterior de renovação, extinção ou compra do bem, incumbe, exclusivamente, à arrendadora, pois o consumidor arrendatário não tem como diferenciar a destinação conferida ao contrato de repasse de moeda estrangeira, ou seja, se foi destinado para adquirir o seu bem, ou outros alienados a diversos titulares de idênticos contratos.

Ainda que o art. 9º Resolução n. 2.309/96 – BACEN, tenha determinado que “Os contratos de arrendamento mercantil de bens cuja aquisição tenha sido efetuada com recursos provenientes de empréstimos contraídos, direta ou indiretamente, no exterior devem ser firmados com clausula de variação cambial”, não foi afastado o direito de informação do consumidor e a necessidade de estabilidade contratual, do equilíbrio da equação econômica-financeira.

Como o bem, objeto do contrato de mercantil, foi adquirido no mercado interno, pago em moeda corrente nacional, e a sociedade de arrendamento mercantil poderia concretizar a avença tanto em moeda nacional como moeda estrangeira (não há obrigatoriedade do consumidor contratar a cláusula de variação cambial), temos hipótese de presunção “juris tantum” de que o contrato de arrendamento mercantil foi celebrado com base em capital nacional.

O dissídio não prospera porque não procedido o devido cotejo analítico.

Forte nestas razões, Não Conheço o recurso especial.

É o voto.

Recurso Especial nº 268.661 – Rio de Janeiro (2000/0074504-9)

Relatora : Ministra Nancy Andrighi

Recte : Abn Amro Arrendamento Mercantil S/A

Advogado : Antonio Carlos Coelho E Outros

Recdo : Jose Carlos da Silva Vieira

Advogado : Edgard Silvio de Alencar Saboya Filho e outros

Ementa

Revisão De Contrato – Arrendamento Mercantil (Leasing) – Relação De Consumo – Indexação Em Moeda Estrangeira (Dólar) – Crise Cambial De Janeiro De 1999 – Plano Real. Aplicabilidade Do Art. 6, Inciso V Do Cdc – Onerosidade Excessiva Caracterizada. Boa-Fé Objetiva Do Consumidor E Direito De Informação. Necessidade De Prova Da Captação De Recurso Financeiro Proveniente Do Exterior.

– O preceito insculpido no inciso V do artigo 6º do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor.

– A desvalorização da moeda nacional frente à moeda estrangeira que serviu de parâmetro ao reajuste contratual, por ocasião da crise cambial de janeiro de 1999, apresentou grau expressivo de oscilação, a ponto de caracterizar a onerosidade excessiva que impede o devedor de solver as obrigações pactuadas.

– A equação econômico-financeira deixa de ser respeitada quando o valor da parcela mensal sofre um reajuste que não é acompanhado pela correspondente valorização do bem da vida no mercado, havendo quebra da paridade contratual, à medida que apenas a instituição financeira está assegurada quanto aos riscos da variação cambial, pela prestação do consumidor indexada em dólar americano.

– É ilegal a transferência de risco da atividade financeira, no mercado de capitais, próprio das instituições de crédito, ao consumidor, ainda mais que não observado o seu , III, e 10, “caput”, 31 e 52 do CDC) direito de informação (art. 6º)

– Incumbe à arrendadora se desincumbir do ônus da prova de captação de recursos provenientes de empréstimo em moeda estrangeira, quando impugnada a validade da cláusula de correção pela variação cambial. Esta prova deve acompanhar a contestação (art. 297 e 396 do CPC), uma vez que os negócios jurídicos entre a instituição financeira e o banco estrangeiro são alheios ao consumidor, que não possui meios de averiguar as operações mercantis daquela, sob pena de violar o da Lei n. 8.880/94 art. 6º

Acórdão

Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Presidente

Ministra Nancy Andrighi, Relatora

Processo: Resp 268661

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