União estável

Advogado analisa direito à herança em uniões estáveis

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20 de agosto de 2001, 15h27

Muitas foram as interpretações e comentários acerca do conceito e dos direitos dos concubinos na união estável segundo as Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96. Em todos os institutos de direito de família e de direito sucessório importa desse modo avaliar a posição dos direitos dos conviventes.

Sem dúvida, essa nova legislação representa uma guinada radical nos direitos em proteção à união estável. A primeira dessas leis foi promulgada sem a devida discussão no Congresso, tendo o Presidente da República a sancionado no último dia de seu mandato. O diploma trouxe inúmeras dúvidas de interpretação. Aguarda-se a promulgação de um novo estatuto sobre o tema, o qual, espera-se, venha aplainar as inúmeras dificuldades interpretativas dessas duas leis.

Até a promulgação da Constituição de 1988, dúvidas não havia que o companheiro ou a companheira era herdeiro. A nova Carta reconheceu a união estável do homem e da mulher como entidade a ser protegida, (art. 226, parágrafo 3o), “devendo a Lei facilitar sua conversão em casamento”. Porém, em que pesem algumas posições doutrinárias e jurisprudenciais isoladas, tal proteção não atribuiu direito sucessório à concubina ou concubino. Os tribunais admitiam a divisão do patrimônio adquirido pelo esforço comum dos concubinos, a título de liquidação de uma sociedade de fato (Súmula 380 do STF).

De qualquer modo, essa divisão podia interferir na partilha de bens hereditários quando, por exemplo, tivesse havido o chamado concubinato impuro ou adulterino e o autor da herança falecesse no estado de casado, com eventual separação de fato. Nessa situação, perdurante até a novel legislação, cabe ao juiz, separar os bens adquiridos pelo esforço comum daqueles pertencentes à meação ou herança do cônjuge. Toda a matéria se revolve na prova.

Quando não se atribuía parte do patrimônio pelo esforço comum, a jurisprudência concedia indenização à concubina, a título de serviços domésticos prestados. Sob essa rotulação há evidente eufemismo, porque se pretende dizer muito mais do que a expressão encerra. Nessa hipótese também ocorria uma diminuição do acervo hereditário, pois parte era concedido ao companheiro.

Esse patamar de direitos relativos à convivência sem casamento foi totalmente modificado com os dois diplomas legais aqui referidos. No que tange à sucessão, a Lei nº 8.971/94 inseriu o companheiro na ordem de vocação hereditária.

Dentre as muitas imperfeições dessa lei, dispôs o artigo 1o:

“A companheira comprovada de homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo, separado judicialmente, que com ele viva, há mais de 5 (cinco) anos, ou dele tenha prole, poderá valer-se do disposto na Lei 5.478, de 25 de julho de 1968, enquanto não constituir nova união e desde que prove a necessidade”.

“Parágrafo único. Igual direito e nas mesmas condições é reconhecido ao companheiro de mulher solteira, separada judicialmente, divorciada, ou viúva”.

De forma canhestra, a lei pretendeu atribuir direito a alimentos, referindo-se somente à lei processual que regula a ação de alimentos, omitindo-se quanto ao direito material. Essa lei também restringiu o direito aos conviventes não casados com mais de cinco anos de vida em comum ou com prole.

O artigo 2o desse diploma estabeleceu o direito sucessório a esses conviventes:

“As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:

I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto da quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns;

II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;

III – na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à totalidade da herança”.

Completa ainda o artigo 3o, quanto ao direito de meação:

“Quando os bens deixados pelo(a) autor(a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do(a) companheiro(a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens”.

Em coro a doutrina admite que a matéria sucessória no concubinato é a mais complicada dentre tantas outras levantadas por essa lei. Esse diploma restringiu os direitos a que alude, de alimentos, de herança e de meação, aos companheiros com convivência de mais de cinco anos ou com prole. De acordo com essa lei, para fins de meação, a colaboração não se presumia e deveria ser provada em cada caso. Atualmente, por força da segunda lei, o companheiro sobrevivente, independentemente do prazo de duração da união estável ou de existência de prole, é meeiro em relação aos bens adquiridos onerosamente na respectiva convivência.


Poderia o legislador ter optado em fazer a união estável equivalente ao casamento, mas não o fez. Preferiu estabelecer um sistema sucessório isolado, no qual o companheiro supérstite não é equiparado ao cônjuge não se estabelecendo regras claras para sua sucessão.

Como referimos, embora ocorra o reconhecimento constitucional, as semelhanças entre o casamento e a união estável se restringem apenas aos elementos essenciais. O diploma legal mais recente, Lei nº 9.278/96, que poderia aclarar definitivamente a questão, mais ainda confundiu, pois se limitou, laconicamente, a atribuir direito real de habitação ao companheiro com relação ao imóvel destinado à residência familiar, enquanto não constituísse nova união.

Na análise linear do artigo 2o transcrito, observa-se que os direitos sucessórios são atribuídos às “pessoas referidas no artigo anterior”. Ora, essas pessoas são a companheira ou companheiro do homem ou da mulher, respectivamente, solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo. A lei é expressa quanto à união heterossexual, ficando fora de cogitação as uniões de pessoas do mesmo sexo. Essas pessoas referidas na lei participarão da sucessão. O convivente falecido deverá ser solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo.

Essa lei, portanto, protegeu unicamente o concubinato puro, isto é, aquele que não coexiste com o casamento. O denominado concubinato impuro ou adulterino é aquele que convive com o casamento. Desse modo, se o falecido era casado, pouco importando se separado de fato, não haverá direito hereditário para o convivente sobrevivente porque nesse aspecto, ao menos, a lei foi clara.

Não ficará ao desamparo o sobrevivente nessas condições, porque poderá pleitear a divisão da sociedade de fato, recebendo parte dos bens que tenha auxiliado a amealhar. Em termos hereditários, contudo, prevalecem os direitos do antigo cônjuge do de cujus, embora de há muito separado de fato, porque ainda não está dissolvida a sociedade conjugal, pelo menos para efeitos sucessórios. Neste caso, subsiste a possibilidade de partilha dos bens da sociedade de fato entre os concubinos, de acordo com a Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal.

Passada a perplexidade inicial concluiu-se que ambas as leis, de 1994 e de 1996, coexistem.

Os incisos I e II do artigo 2o acima transcrito estabelecem o denominado usufruto vidual, disposto igualmente para o cônjuge viúvo no artigo 1.611,parágrafo 1º. Nesse usufruto houve equiparação significativa dos direitos do companheiro aos do cônjuge. Trata-se de usufruto legal que independe da situação econômica do companheiro. Pelos princípios do usufruto, não sobrevindo nova união, o usufruto é vitalício, extinguindo-se com a morte do usufrutuário. A lei da convivência estável se reporta à extinção, quando o companheiro estabelece nova união. Trata-se, evidentemente, de referência a novo casamento ou a nova união estável. Nem sempre será fácil a prova desta última. Incumbe aos interessados na extinção do usufruto que promovam ação para declarar sua extinção, se não for obtida aquiescência do companheiro supérstite.

Quando houver, concomitantemente, direito ao usufruto e à meação, não há superposição de direitos porque o usufruto incide sobre a herança e meação não é herança. Esse usufruto, da quarta parte ou da metade dos bens, incide sobre a totalidade da herança, ainda que venha atingir a legítima dos herdeiros necessários.

O inciso III do artigo 2o, que na realidade, por questão de lógica, deveria ser o inciso primeiro, equiparou o companheiro sobrevivente ao cônjuge supérstite, na ordem de vocação hereditária estabelecida pelo artigo 1.603. Desse modo, na falta de ascendentes ou descendentes (bem como de cônjuge, como adiante se afirma), o companheiro será herdeiro da totalidade dos bens do falecido, alijando assim os colaterais e o Estado da herança. Sob esse prisma, como é irrelevante para o direito sucessório do cônjuge o regime de bens adotado, também é irrelevante o fato de ter ou não havido conjuração de esforços para obtenção de patrimônio comum pelos companheiros. O que importa, para o direito sucessório, é que tenha havido realmente uma união estável, cujo exame dos requisitos compete ao caso concreto.

A inclusão do companheiro ou companheira na ordem de vocação hereditária, sem a clareza que seria de se esperar em matéria tão relevante, não autoriza que eles concorram na herança com o cônjuge. Como visto, na ordem legal, para que seja considerado herdeiro, além da ausência de descendentes e ascendentes, o autor da herança deverá ter falecido solteiro, separado judicialmente, divorciado ou viúvo. Se faleceu no estado de casado, o cônjuge sobrevivente será inarredavelmente herdeiro.

A separação de fato não dissolve a sociedade conjugal. Tanto para a herança em usufruto, como para a herança em propriedade, a situação é idêntica. Por outro lado, como é básico, o direito sucessório se estabelece no momento da morte. Se, quando do falecimento, já está extinta a união estável, não haverá direito hereditário para o companheiro. Competirá a este, nessa situação, provar a existência de patrimônio decorrente de esforço comum para pedir a quota respectiva. Essa matéria certamente trará infindáveis discussões nas hipóteses limítrofes, merecendo que o legislador seja mais claro no próximo estatuto da união estável que vier a editar.


Como o cônjuge, no atual sistema, não é herdeiro necessário, na mesma situação é colocado o convivente. Lembre-se que, por uma questão de lógica e em decorrência do sistema constitucional sobre a família, o concubinato, em princípio, nunca poderá gozar de direitos mais amplos do que o casamento. Desse modo, o testamento poderá contemplar terceiros, excluindo o cônjuge ou o companheiro da ordem legítima de sucessão, assim como os colaterais (art. 1.725). Lembre-se que a meação, que não é herança, não pode ser afastada. Há que se repelir entendimento de que o diploma da união estável tenha guindado o companheiro à posição de herdeiro necessário.

Como herdeiro, o companheiro fica sujeito também à pena de exclusão por indignidade, na forma dos artigos 1.595 e seguintes, em ação movida pelos herdeiros interessados.

A Lei nº 9.278/96 acrescentou o direito real de habitação, como direito sucessório, à esfera da união estável:

“Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família” (par. único do artigo 7o).

O dispositivo também está mal colocado, em parágrafo cujo caput, relativo a alimentos entre companheiros, nada tem a ver com a matéria.

No casamento, esse direito está contemplado no artigo 1.611,parágrafo 2º, examinado no tópico anterior. Em sede de união estável, o direito de habitação se apresenta de forma mais ampla, pois no casamento está restrito aos enlaces sob o regime da comunhão universal, afora o fato de tratar-se de imóvel destinado à residência da família e o único bem dessa natureza a inventariar. Trata-se de restrição injustificável, que recebeu repulsa da doutrina. Nenhuma restrição é feita quanto aos conviventes sob esse aspecto.

No casamento, como vimos, o direito de habitação possui conteúdo diverso do direito de usufruto porque, na comunhão universal, o cônjuge remanescente já terá o respaldo da meação. Quando o casal somente possuía o imóvel residencial, a meação também atingia esse imóvel, ocorrendo maior garantia com o direito de habitação, o qual, neste caso, onera também a metade que não pertence ao meeiro. O usufruto da quarta parte ou da metade, como se nota, pode atingir âmbito muito mais expressivo.

Dentro das peculiaridades dessas duas leis, enfatize-se outra vez que os direitos sucessórios descritos no artigo 2o da Lei nº 8.971/94 somente serão atribuídos ao companheiro ou companheira de pessoa de outro sexo, solteira, separada judicialmente, divorciada ou viúva. Não se atribui a convivente casado. Por outro lado, o dispositivo relativo ao direito real de habitação, descrito de forma ilhada na Lei nº 9.278/96, não faz referência à situação do sobrevivente na união estável. Desse modo, é perfeitamente aceitável concluir que o direito de habitação pode também ser deferido ao companheiro sobrevivente, ainda que o falecido tivesse morrido no estado de casado, mas separado de fato. A lei não restringiu, não podendo a interpretação restringir.

Em qualquer situação, há que se considerar que o direito real de habitação é atribuído unicamente ao imóvel destinado à residência do casal, sendo o único bem dessa natureza. Leve-se em conta que se trata do imóvel destinado na maioria das vezes à moradia da mulher, que lá reside com os filhos. Importa verificar no caso concreto a destinação do imóvel. O artigo 1º da Lei nº 9.278 se reporta “convivência duradoura”. Esse aspecto sempre deve ser levado em consideração. Quando o autor da herança morre em estado de casado, poderá coexistir o direito de habitação do convivente, com o direito do usufruto vidual do cônjuge, como sustenta, com razão, parte da doutrina.

Como assinalado, o usufruto e o direito real de habitação, conferidos ao cônjuge e ao companheiro, embora definidos pelos direitos reais, são institutos de direito de família; decorrem da lei. Esse direito de habitação deferido ao companheiro somente tem sentido quando ao convivente não cabe a totalidade da herança, pois inadmissível falar nesse direito restrito se lhe couberem, em propriedade, todos os bens.

As questões sucessórias dos companheiros não se esgotam facilmente, contudo. Quanto ao inventário, se o companheiro sobrevivente estiver na posse a administração dos bens do espólio, cabe a ele requerer a abertura do inventário, na forma do artigo 987 do CPC. Pela mesma razão, pode fazê-lo se for herdeiro. Do mesmo modo, pode ser nomeado inventariante. Se sua condição de herdeiro ou de companheiro for contestada e depender de provas, a questão deve ser dirimida fora do inventário, pela vias ordinárias (art. 984 do CPC).

De outro lado, o direito à meação dos companheiros foi disciplinado pelo artigo 3º da lei nº 8.971/94, acima transcrito. Como evidente, meação não se confunde com direito hereditário. Com a divisão da meação coloca-se termo ao estado de indivisão do patrimônio comum. A situação descrita agora na lei se assemelha ao teor da Súmula 380 do STF. Na aplicação dessa súmula, os julgados foram paulatinamente se posicionando que a divisão devia ser proporcional ao esforço comprovado e não simplesmente dividir-se o patrimônio à metade. Essa solução continua possível em sede de transação, com interessados maiores e capazes. Com base na lei em questão, porém, parece que é possível manter-se a mesma orientação, pois foi intenção do legislador estabelecer uma proteção ao companheiro que tenha efetivamente colaborado na formação do patrimônio comum.

A colaboração de pequena monta não daria ao companheiro sobrevivente o direito à meação e à habilitação no inventário. Note-se, no entanto, que os cônjuges podem ter estabelecido o regime patrimonial de sua convivência de forma diversa, como permite a Lei nº 9.278/96. No silêncio dos conviventes, porém, presumem-se adquiridos pelo esforço comum os bens amealhados na constância da união estável, a título oneroso, passando a pertencer a ambos, em condomínio, em partes iguais (art. 5o). Se houver motivos para comprovar o contrário, cabe aos interessados promover ação para derrubar a presunção relativa aí estabelecida. Pelo sistema disposto pela Lei nº 8.971/94, artigo 3o , além da convivência de mais de cinco anos ou existência de prole do casal, havia necessidade de se comprovar o esforço comum na aquisição do patrimônio, o que era sempre um ônus para o interessado.

Interessante também observar que, para efeito de partilha de bens adquiridos pelo esforço comum, na constância da união estável e a título oneroso, são irrelevantes os motivos do desfazimento da união de fato, não se restringindo apenas à morte do companheiro, mas aplicando-se às situações de extinção do enlace em vida. Desse modo, não se discute culpa pelo término da união estável, pois a divisão do patrimônio comum não levará em conta esse aspecto. Sobre essa matéria, nos estendemos mais longamente em nossa obra Direito de Família (ed. Atlas, 2000).

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