Testemunha de palavrão

Zuenir Ventura testemunha em processo sobre uso do palavrão

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15 de agosto de 2001, 14h01

O texto do jornalista Zuenir Ventura está publicado no site no.com.

Confesso que nesses longos anos de vida, poucas vezes vivi uma situação tão ridiculamente constrangedora como a da semana passada, na 14ª Vara Cível de São Paulo. Tudo por causa de uma expressão que todo mundo conhece e que é a mais ouvida em estádios de futebol. Para a história não perder a graça, é preciso contá-la sem meias palavras.

Portanto, os ouvidos mais delicados e pudicos que me perdoem a falta de cerimônia. Tenho que ser literalmente fiel aos fatos. Juro dizer a verdade aqui, como jurei dizer lá, numa sala do oitavo andar do Fórum, onde fui parar como testemunha de defesa no processo que uma senhora move contra o humorista Ziraldo por ele tê-la chamado numa entrevista de “filha da puta”.

Meu testemunho poderia ajudar a esclarecer uma questão crucial: “filha da puta” é uma expressão injuriosa capaz de provocar danos morais que justifiquem uma reparação de R$ 50 mil, como quer a acusação, ou é apenas um xingamento, um desabafo, sem juízo de valor, como alega a defesa? Em suma: chamar alguém de “filho da puta” é um mero xingamento, uma espécie de interjeição, ou se trata de uma declaração substantiva de fato, uma injúria?

Já na primeira pergunta, percebi que ali não podia haver subentendido; as coisas tinham que ser claras. Admito que não estava à vontade. O cenário da Justiça, solene e litúrgico, sempre amedronta: o juiz lá em cima, altivo, distante, soberano; os advogados, cumprindo o seu papel, tentam evidentemente pegá-lo pelo pé, querem que você dê uma escorregada, que caia em contradição, que seja traído pela memória. A tensão é inevitável.

Assim, meio nervoso, dei minha primeira resposta, com o pudor e a cautela de quem está chegando a um ambiente de cerimônia onde havia inclusive senhoras. A não ser que você seja um cafajeste, ninguém chega a um lugar desses dizendo “Oi, onde está o filho da puta?”

Por isso, ao responder a pergunta inicial do Juiz, fugi da expressão chula e recorri a um eufemismo: preferi referir-me ao “episódio do palavrão”, como um senhor deve fazer numa sala onde há pessoas que ele não conhece. O máximo que você se permite nessas circunstâncias é um “f…da…p”. Num interrogatório na Justiça, porém, você tem que ser preciso, não pode usar subentendidos e ambigüidades.

“O Sr. está se referindo ao filha da puta?”, me corrigiu o juiz. Levei um susto. Nunca ouvira de egrégia boca tal chulice. Refeito, tive vontade de dizer “Ah, é? Liberou geral? Se é assim, deixa comigo!”. Já estava a ponto de soltar um “puta que pariu, Meritíssimo, que saco essa coisa toda!”, quando olhei o juiz e vi que ele tinha um rosto ao mesmo tempo jovem, sereno e severo. Não inspirava nenhuma gracinha. Era daquelas pessoas que não precisam amarrar a cara para se fazerem respeitar. Sabe aqueles sujeitos que, por mais intimidade que se tenha, jamais se ousará dar-lhe um tapinha na barriga? Pois é. Me contive então e respondi com o maior respeito: “Exatamente, Meritíssimo, me refiro ao filha da puta”.

Isso foi, como disse, no começo da audiência. Com o passar do tempo, no entanto, o próprio juiz teve que se esforçar para não rir, nem sempre conseguindo deixar de esboçar leves sorrisos. A situação era por si só engraçada. Num judiciário com tantas dificuldades, tantos problemas para resolver, como levar a sério aquilo tudo?

A comédia ficou impagável quando se procurou mostrar os vários usos do tal palavrão, inclusive como elogio. Lembrou-se que Ziraldo, na mesma entrevista à revista Imprensa, empregara parte da expressão para falar de um ex-presidente: “Itamar é puta velha; é um craque”. Temi que começassem a entrar no recinto outros palavrões não autorizados. Era um tal de puta pra lá, puta prá cá na sala que eu fui me descontraindo e de repente já estava dando também meus exemplos. “Quando eu digo que fulano tem um puta texto, Meritíssimo, isso é um elogio. Um puta cara, uma puta mulher”.

Por pouco, vejam vocês, não repetia para o juiz aquele exemplo machista bem grosseiro: “quando digo aquele filho da puta tá comendo fulana, Meritíssimo, isso é um elogio”. Felizmente, o que me restava de pudor aquele dia me impediu de cometer a cafajestada.

Eu saíra de casa às 8h30, pegara o avião das 10h e estava voltando no vôo das 6 da tarde, quando me lembrei do bordão do Ancelmo e me disse: como deve ser bom viver num país em que a Justiça tem tão pouco a fazer que é capaz de passar um dia discutindo a expressão filho da puta. Ainda no espírito da 14ª Vara Cível, tive vontade de plagiar também Jânio Quadros dizendo para Fernando Sabino: “Puta que pariu, Fernando, que língua a nossa!”

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