Condenação

Luiz Flávio Gomes debate condenação com base em provas ilícitas

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15 de agosto de 2001, 16h00

Pode o princípio da proporcionalidade ser utilizado em favor da sociedade, leia-se: para condenar o réu, tal como reconheceu recentemente o STJ? Tem valor a busca domiciliar sem mandado judicial? A incriminação de um co-réu, feita sem contraditório, tem valor jurídico? É possível a extração de sangue, de urina etc. de um suspeito para fazer prova contra ele? O acusado está obrigado a fazer o exame de DNA? O bafômetro é obrigatório ou facultativo? Se o motorista recusa a soprar no bafômetro, comete crime?

De outro lado, pode o governo ter acesso às nossas informações bancárias sem ordem judicial? A Lei Complementar 105/01, que cuida desse tema, é constitucional? As CPIs podem determinar a quebra dos sigilos bancário e telefônico? A prova por vídeo é válida? São admissíveis as provas obtidas por meios informáticos? A prova resultante da infiltração policial, permitida por lei recentíssima, pode ser aceita? Os segredos profissionais e religiosos estão acima do princípio da verdade real? O sigilo das correspondências é absoluto?

No próximo sábado (18/8) estarei ministrando em São Paulo (cf. o site estudoscriminais.com.br) um curso concentrado sobre provas lícitas e ilícitas e a todas essas questões procuraremos dar respostas. Pelo Direito constitucional vigente, como sabemos, nenhum criminoso pode ser condenado com base em provas ilícitas. Mas esse assunto ainda é muito tormentoso e, agora, com a informática, está ficando cada vez mais complicado. Mesmo porque, muitas vezes não é fácil afirmar se a prova é lícita ou não.

Certo é que toda a atividade probatória deve ser regida pelo princípio do devido processo legal, que deriva do princípio do Estado de Direito, o que significa que Estado e a sociedade devem atuar de acordo com a “medida do direito” e ainda em conformidade com as regras jurídico-formais. A obtenção, produção e valoração da prova tem que se ajustar à lei (nulla coatio sine lege).

O devido processo legal é dotado de uma série enorme de garantias relacionadas (a) com a jurisdição, (b) com as partes, (c) com as provas, (d) com o processo, (e) com as medidas cautelares e (f) com a execução. No que diz respeito ao tema provas, a primeira e fundamental vinculação que devemos admitir é com o princípio da presunção de inocência, que significa que todo acusado é presumido inocente até sentença final condenatória definitiva (CF, art. 5º, inc. LVII); nos termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. XI, o acusado é presumido inocente e a culpa deve ser legalmente comprovada; consoante o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.2) a culpa deve ser judicialmente comprovada; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8.2) também afirma que a culpa deve ser legalmente comprovada.

Recorde-se que duplo é o sentido da presunção inocência: (a) ela vale como regra de tratamento (art. 5º, inc. LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e (b) dela também emanam regras probatórias (as provas devem seguir rigorosamente o devido processo legal).

São inúmeras e praticamente inabarcáveis as regras probatórias derivadas da presunção de inocência. Chama atenção, desde logo, as seguintes:

(1ª) o ônus da prova incumbe a quem faz a acusação ou a alegação (CPP, art. 156). Conseqüentemente, a titularidade da prova é de ambas as partes: acusação e defesa. Ambos podem obter e produzir provas durante o processo. De qualquer modo, se o ministério público acusou, cabe a ele provar que o acusado é culpado. Não pode haver inversão desse ônus. Na lei de lavagem de capitais, entretanto, isso ocorreu. E é constitucional? Interpretado o texto legal restritivamente, não seria.

(2ª) toda prova deve ter previsão legal (nulla coatio sine lege) e ser moralmente válida (CPC, art. 332). É preciso reconhecer que o princípio da verdade real não é absoluto. No processo penal, em princípio, tudo é válido para provar o crime; há liberdade de provas. Mas esse direito à prova não é ilimitado: (a) a prova deve der pertinente; (b) deve ser lícita; (c) há restrições legais ao direito de provar: art. 207, cartas interceptadas criminosamente, arts. 406, 475 etc.; (d) há vedações legais (provas ilícitas, p.ex.). Nesse contexto é que ganha destaque o debate em torno das gravações clandestinas (que não se confundem com as interceptações telefônicas – Lei 9.296/96). Podemos gravar nossas comunicações telefônicas? Podemos divulgar o conteúdo delas depois? A gravação vale como prova em juízo? Penso que não deveria valer, por falta de regulamentação legal. Nenhuma lei no Brasil, porém, disciplina esse assunto.

(3ª) “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (CF, art. 5º, inc. LVI). Prova obtida por meio de tortura, interceptação telefônica sem ordem de juiz etc. são provas ilícitas e inadmissíveis. Por mais que se trate de um criminoso perigoso, não podemos nos valer de meios ilícitos para provar sua culpa. E valeriam as provas derivadas das provas ilícitas (por força de uma interceptação ilegal a polícia soube da entrega da cocaína; desse modo prendeu o sujeito em posse da droga).

A interceptação foi ilegal; dela derivou uma prisão, a apreensão da droga etc. A prova derivada é válida? Incide aqui a chamada teoria dos frutos da árvore envenenada, de origem norte-americana. Se a primeira prova é ilícita, a derivada também o é. Não devemos, assim, acolher a posição alemã, que afirma a validade da prova derivada. Nosso STF, como sabemos, alinha-se com o primeiro entendimento, porém, com moderação. E seria válida em favor do réu uma prova ilícita? A resposta é positiva, em razão do princípio da proporcionalidade.

(4ª) comprovação judicial da culpabilidade, que se desdobra em várias outras garantias:

(a) prova produzida em juízo, por força dos princípios da imediatidade e da oralidade. Há que se questionar então o valor da prova produzida na fase policial, que não conta, em regra, com as garantias constitucionais;

(b) exigência de uma mínima atividade probatória: a presunção de inocência somente desaparece quando no processo existe um mínimo de prova;

(c) prova produzida com as garantias processuais: contraditório; ampla defesa; igualdade probatória (direito de iguais oportunidades de obter, de produzir e de valorar as provas). Tem valor a prova produzida num processo e juntada em outro (prova emprestada)? Muito raramente ela atende as garantias constitucionais que acabam de ser citadas;

(d) prova incriminadora (prova do fato alegado);

(e) que da prova se deduza a culpabilidade do acusado;

(f) direito à valoração judicial das provas produzidas (direito de acesso à jurisdição): o juiz tem que valorar todas as provas colhidas e sopesar todas elas, para chegar à conclusão condenatória ou absolutória;

(g) no caso de dúvida, absolve-se: in dubio pro reo;

(h) pelo sistema do livre convencimento ou da persuasão racional o juiz deve valorar as provas produzidas no processo. O que não está no processo não está no mundo (não existe juridicamente).

Estabelecidas as garantias mínimas relacionadas com as provas, algumas questões já foram respondidas. Mas ainda há muito que se avançar e debater para que possamos resolver outros graves o controvertidos problemas em matéria de provas. Todos devemos nos debruçar sobre esse assunto para poder deixá-lo mais claro e, assim, permitir uma aplicação do Direito mais justa e com segurança. É nossa obrigação passar para nossos herdeiros um mundo melhor e, se possível, menos complicado e com mais segurança.

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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