Lei anti-elisiva

Lei anti-elisiva: 'Judiciário deve coibir arbitrariedades do Fisco'

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6 de agosto de 2001, 19h35

Em 10/01/2001, o Congresso Nacional promulgou a Lei Complementar nº 104, cujo conteúdo são diversas alterações no Código Tributário Nacional. Trata-se da famosa lei “anti-elisiva”, proposta pelo governo, que tem o fim de tentar diminuir a chamada elisão fiscal ou planejamento tributário.

A elisão fiscal é a forma lícita que o contribuinte tem para evitar ou diminuir a carga tributária que incide sobre a sua atividade econômica. A elisão fiscal, via de regra, é alcançada através de operações (contábeis, reestruturações societárias, etc) que visam primeiramente pagar menos tributos.

Ou seja, muitas vezes ao celebrar contratos, constituir empresas, efetuar cisões, fusões e incorporações, ou mesmo ingressar em planos de refinanciamento (como o REFIS, p.ex, apenas para poder pagar imposto sobre a renda pelo lucro presumido) a intenção primeira do contribuinte não é o objeto mesmo dessas formas jurídicas e sim pagar menos tributos. Tal não se confunde com a evasão, esta sim ilícita, pois significa ocultar do Fisco a incidência tributária. Um exemplo de evasão é o famoso “caixa dois”.

Alguns argumentam que utilizar formas jurídicas (como as previstas no direito comercial, societário, civil, etc.) primariamente com o fim de economizar tributo e secundariamente com o objetivo mesmo previsto nessas formas é “abuso de direito” ou “abuso de formas jurídicas”. Ou seja, o contribuinte estaria abusando do direito ao utilizar-se destes institutos apenas para pagar menos impostos. Trata-se de uma visão totalmente equivocada.

O código binário do sistema jurídico, conforme Niklas Luhmann, é o lícito e o ilícito. O direito filtra todas as atividades do ambiente em que se encontra, a sociedade, em condutas lícitas ou ilícitas (também chamadas de “antijurídicas”, como por exemplo, o homicídio, a sonegação, a fraude, etc.). Não há terceira possibilidade: tertium non datur. Da mesma forma como não existe, biologicamente, uma mulher semi-grávida, não existe, para o sistema jurídico, algo como uma conduta semi-lícita ou semi-ilícita.

Todavia, o direito não é onisciente, não vê tudo. Há um limite para a regulação da vida social pelo direito, já que este sendo artificial, sempre está atrasado em relação à ação humana que é espontânea, não depende de legisladores. Sendo assim, um princípio fundamental do direito, na relação Estado/Indivíduo, é o seguinte: “Tudo que não estiver proibido, é permitido”. Esse princípio implícito está contido no princípio da legalidade, enunciado pela Constituição, no art. 5º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Destarte, se uma conduta não está proibida expressamente, é permitida, mesmo que se tome essa permissão como falta de previsão normativa.

Portanto, se há lacuna legal em relação a alguma conduta humana, esta é permitida pelo direito. Assim funciona com a elisão fiscal: se não é proibido tomar certas atitudes apenas com o fim de economizar em tributos, essas atitudes são juridicamente permitidas, por mais que alguns insistam na tese do abuso de direito. Como ensinou Pontes de Miranda, “sem lei que ordene fazer, ou que lhe ordene omitir, o homem é livre. Só a a lei limita a atividade humana.”

De fato, grande parte das empresas recorre a profissionais especializados em planejamento tributário, e conseguem economizar grandes quantias que seriam de outra forma comprometidas com tributos. E uma vez que não haja disposição legal expressa que proíba as operações utilizadas com fins específicos de planejamento fiscal, estas, portanto, são completamente lícitas.

Cabe lembrar que o direito tributário, assim como o direito penal, são ramos jurídicos que se regem pelo princípio da tipicidade cerrada: tanto a figura de um tributo como a de um crime tem de ser expressamente delineada por lei. A analogia na configuração de uma nova incidência tributária ou penal é proibida, pois os valores envolvidos em tais ramos do direito são provavelmente as condições necessárias para a consecução de todos os demais valores: a liberdade e a propriedade. Outrossim, não pode um juiz ou um fiscal criar, por analogia, tributo ou crime sem norma legal que expressamente os institua. É a força máxima da legalidade.

Justamente contra tais preceitos basilares do Estado Democrático de Direito é que surge no ordenamento o dispositivo enxertado no art. 116 do Código Tributário. O dispositivo autoriza o fiscal a “desconsiderar” atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de “dissimular a ocorrência de fatos geradores”. Junto com a quebra do sigilo bancário, autorizada pela Lei Complementar nº 105, promulgada na mesma data, a autoridade fiscal fica com poderes próprios ou mesmo superior aos dos juizes.

O legislador, entretanto, não foi feliz no que tange à redação do parágrafo único do art. 116. A “dissimulação do fato gerador” refere-se, em verdade, não à elisão fiscal, mas sim à evasão fiscal. Depois de ocorrido o fato gerador, não há que se falar em elisão, que é lícita, mas sim em evasão (ou sonegação), que é uma conduta anti-jurídica, punida inclusive criminalmente.

O problema fulcral, todavia, são os poderes outorgados à Administração Tributária, ao permitir que a autoridade administrativa “desconsidere” atos ou negócios jurídicos. O fiscal, obviamente interessado na arrecadação, passa a ter poderes iguais ou superiores ao do juiz, só que sem passar pelo devido processo legal. Como qualquer ramo de atividade, a Administração tem funcionários corruptos que aproveitarão esse aumento de prerrogativas.

Mas esse também não é o problema mais importante, pois mesmo os funcionários honestos, que são a grande maioria, incorrerão em abusos, até mesmo pela responsabilidade funcional que os obriga a aplicar a lei tributária e arrecadar o máximo possível. É como entregar a guarda do galinheiro à raposa. Tal onipotência do Governo não combina com um Estado que se pretenda Democrático e de Direito.

Resta ao Judiciário coibir os abusos e arbitrariedades que fatalmente resultarão da prática dessas novas prerrogativas atribuídas ao Fisco, o que, em outras palavras, é o constante aumento do poder estatal em detrimento da liberdade do indivíduo.

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