Direito ao silêncio

'CPIs devem respeitar direito de investigado permanecer calado'.

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2 de agosto de 2001, 19h25

A Constituição de 1988 determinou que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado. O preso, igualmente, tem o direito de saber os motivos de sua prisão, qual a identificação das autoridades ou agentes da autoridade policial que estão efetuando sua privação de liberdade, para que possam ser responsabilizadas por eventuais ilegalidade e abusos, além de poder contatar sua família e, eventualmente, seu advogado, indicando o local para onde está sendo levado.

Além disso, deverá, obrigatoriamente, ser informado sobre seu direito constitucional de permanecer em silêncio, e que, o exercício desse direito não lhe acarretará nenhum prejuízo(1).

O direito de permanecer em silêncio, constitucionalmente consagrado, seguindo orientação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê em seu art. 8°, parágrafo 2°, “g” o direito a toda pessoa acusada de delito não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada(2), apresenta-se como verdadeiro complemento aos princípios do due process of law e da ampla defesa, garantindo-se dessa forma ao acusado, não só o direito ao silêncio puro, mas também o direito a prestar declarações falsas e inverídicas, sem que por elas possa ser responsabilizado, uma vez que não se conhece em nosso ordenamento jurídico o crime de perjúrio.

Além disso, o silêncio do réu no interrogatório jamais poderá ser considerado como confissão ficta(3), pois o silêncio não pode ser interpretado em desfavor do acusado.(4)

Percebe-se, portanto, que a cláusula constitucional brasileira mostra-se mais generosa em relação ao silêncio dos acusado do que a tradicional previsão do direito norte-americano do privilege against self-incriminatio, descrita na 5ª Emenda à Constituição, de seguinte teor: “…ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo…”; pois essa, apesar de permitir o silêncio do acusado, não lhe permite fazer declarações falsas e inverídicas, sob pena de responsabilização criminal(5).

Ressalte-se que a garantia ao silêncio do acusado foi consagrada no histórico julgamento norte-americano “Miranda v. Arizona”, em 1966, onde a Suprema Corte, por cinco votos contra quatro, afastou a possibilidade de utilização como meio de prova de interrogatório policial quando não precedido da enunciação dos direitos do preso, em especial, “você tem o direito de ficar calado” (you have the righ do remain silente…), além de consagrar o direito do acusado em exigir a presença imediata de seu advogado.

A expressão “preso” não foi utilizada pelo texto constitucional em seu sentido técnico, pois o presente direito tem como titulares todos aqueles, acusados ou futuros acusados (por ex.: testemunhas, vítimas), que possam eventualmente ser processados ou punidos em virtude de suas próprias declarações(6).

Como, porém, compatibilizar-se o direito ao silêncio, constitucionalmente garantido aos investigados, e os poderes investigatórios das Comissões Parlamentares de Inquérito, pois, lembremo-nos, são duas normas de mesmo status constitucional.

Lembremo-nos que o exercício da função típica do Poder Legislativo consistente no controle parlamentar, por meio de fiscalização, pode ser classificado em político-administrativo e financeiro-orçamentário.

Pelo primeiro controle, o Legislativo poderá questionar os atos do Poder Executivo, tendo acesso ao funcionamento de sua máquina burocrática, a fim de analisar a gestão da coisa pública e, conseqüentemente, tomar as medidas que entenda necessárias.

Para tanto, inclusive, a Constituição Federal autoriza a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, e serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores (CF, art. 58, parágrafo 3°).

O Supremo Tribunal Federal analisando os poderes investigatórios das Comissões Parlamentares de Inquérito acentuou a obrigatoriedade de prestação de depoimentos de testemunhas devidamente convocadas, bem como a possibilidade de prisão em flagrante delito por falso testemunho(7).

Nesse mesmo sentido e em relação aos poderes investigatórios das CPIs, entendeu o Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de suspensão de segurança, que “não emerge, no nosso ordenamento jurídico, a impossibilidade da comissão parlamentar de inquérito, regularmente constituída, convocar cidadãos, sob pena de condução coercitiva, para prestarem esclarecimentos a respeito de fatos diretamente relacionados a matéria objeto da investigação. E, exatamente para legitima tal atuação, dotou o Constituinte as comissões parlamentares de inquéritos de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”(8).

Essa decisão monocrática foi confirmada por votação unânime em Sessão Plenária do Egrégio Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que ficou salientado que “a manutenção da liminar, dispensando os impetrantes de prestarem esclarecimentos perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, cerceia a atividade fiscalizadora que exerce o Poder Legislativo sobre os negócios que digam respeito à gestão da coisa pública”(9).

Ora, a questão essencial em relação a necessária interpretação constitucional que compatibilize o direito ao silêncio do investigado e o poder fiscalizador das Comissões Parlamentares de Inquérito deve pautar-se pela indagação sobre as tarefas e os objetivos da Constituição Federal, que dentre outros, podem ser destacados o de justiça, equidade, equilíbrio de interesses, resultados satisfatórios, razoabilidade, praticabilidade e segurança jurídica(10).

Assim, o Poder do Congresso de realizar investigações não é ilimitado, não existindo autoridade geral para expor os negócios privados dos indivíduos, sem justificativa plausível, pois a Constituição Federal resguarda a intimidade e vida privada do cidadão (CF, art. 5, X).

Como afirmado pela Corte Suprema dos Estados Unidos da América, “não podemos, simplesmente, pressupor que todo inquérito parlamentar é justificado por uma necessidade pública que sobrepassa os direitos privados atingidos. Fazê-lo seria abdicar da responsabilidade imposta ao Judiciário, pela Constituição de garantir que o Congresso não invada, injustificadamente, o direito à própria intimidade individual, nem restrinja as liberdades de palavra, imprensa, religião ou reunião… As liberdades protegidas pela Constituição não devem ser postas em perigo na ausência de clara determinação, pela Câmara ou Senado, de que o inquérito em questão é justificado por uma necessidade legislativa específica.”(11)

A conduta das Comissões Parlamentares de Inquérito deve, portanto, equilibrar os interesses investigatórios, certamente de grande interesse público, com as garantias constitucionalmente consagradas, preservando a segurança jurídica e utilizando-se dos meios jurídicos mais razoáveis e práticos em busca de resultados satisfatórios garantindo a plena efetividade da justiça, sob pena de desviar-se de sua finalidade constitucional(12).

Há, portanto, necessidade de direcionar-se todas as regras hermenêuticas para garantir-se a plena aplicabilidade e efetividade dos direitos humanos fundamentais perante as Comissões Parlamentares de Inquérito.

Portanto, as previsões constitucionais, e em especial na presente hipótese o direito ao silêncio, de maneira a não se poder forçar o investigado a produzir provas contra si mesmo, em respeito ao princípio da dignidade humana, definido como objeto de proteção dos direitos humanos fundamentais e um dos princípios fundamentais da República, não são meros enunciados teóricos desprovidos de coercibilidade jurídica. Muito pelo contrário, a Constituição possui supremacia incondicional em relação à todo ordenamento jurídico e força normativa inquestionável, devendo suas previsões servirem de princípios informadores obrigatórios na atuação do Poder Público, no âmbito de todos os Poderes de Estado.

Somente com a pleno respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana poderemos almejar a conquista da verdadeira “liberdade”, projeto maior de um Estado Democrático de Direito. Sem respeito à dignidade da pessoa humana não haverá Estado de Direito, desaparecendo a participação popular nos negócios políticos do Estado, quebrando-se o respeito ao princípio da soberania popular, que proclama todo o poder emanar do povo, com a conseqüência nefasta do fim da Democracia.

Exige-se, pois, que as autoridades do Poder Público, em todas suas áreas de atuação, seja na distribuição da Justiça, seja na fiscalização realizada pelo Poder Legislativo, inclusive por meio de Comissões Parlamentares de Inquéritos, seja na elaboração de leis e atos normativos, paute-se pelo pleno respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de flagrante inconstitucionalidade de suas condutas e perda da legitimidade popular que sustenta seus cargos e mandatos políticos.

Notas de Rodapé:

1. Conferir sobre a Impossibilidade de condenação ser baseada em silêncio do réu no ato do interrogatório: TJ/SP – relator: Celso Limongi, Apelação criminal n° 149.145-3 – Taubaté – d. 14.07.94.

2. Nesse sentido: STF – 1ª T – HC n° 69.818/SP – rel. Min. Sepulveda Pertence, Diário da Justiça, Seção I, 27 nov 1992, p. 22302.

3. RJDTACrim, 25/173.

4. STJ – Ementário, 10/671; STJ – 6ª T – HC nº 2.571-7/PE – rel. Min. Pedro Acioli – Ementário, 10/671; RJDTACrim, 28/215.

5. STF – 1ª T – HC n° 68929/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da

Justiça, Seção I, 28 ago 1992, p. 13453.

6. TJ/SP – Rel. Euclides de Oliveira, Apelação Criminal n° 136.167-1 – Moji-Guaçu, decisão 31-1-92).

7. STF – HC n° 75.287-0/DF – medida liminar – Rel. Min. Maurício Corrêa, Diário da Justiça, Seção I, 30 abr. 1997, p. 16.302.

8. Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, Des. Dirceu de Mello, Suspensão de Execução de medida liminar n° 48.640.0/1 (31-3-1998).

9. TJ/SP – Órgão Especial – Agravo regimental n° 48.640-0/3-01 – Rel. Des. Dirceu de Mello, decisão: 29-4-98.

10. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. p. 11.

11. Conferir a respeito decisão da SUPREMA CORTE NORTE AMERICANA – CASO: Watkins v. United States, 354 US 178 (1957). Relator o Chief Justice Warren. Vencido, o ministro Clark

(8 x 1) – Nesse precedente, Watkins se recusara a responder perguntas relativas aos associados do Partido Comunista de 1942 a 1947.

12. Cf., nesse sentido, decisões da Corte Suprema dos EUA: Sweezy v. New Hampshire, 354 US 234 (1957); Wieman v. Updegraff, 334 US 183 (1952); Barenblatt v. United States, 360 US 109 (1959); Uphaus v. Wyman,360 US 72 (1959).

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