Amante virtual

Infidelidade virtual não precisa ser comprovada para separação

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12 de abril de 2001, 0h00

A internet entendida como o grupo de conexões de computadores representado pelo World Wide Web (www) surgiu de maneira abrupta e tomou conta das práticas cotidianas, gerando uma série de perplexidades, inclusive no âmbito jurídico, principalmente vinculadas à segurança, privacidade, comércio, criminalidade e direito de família

(relacionamentos afetivos virtuais).

No campo dos relacionamentos afetivos, a internet possibilitou a utilização do véu-virtual, rompendo com a necessidade antes inafastável do contato físico. A interatividade absoluta com a utilização de vídeo, internet, tela interativa (inclusive pelo toque), dentre outros, construiu a realidade virtual que nos cerca por toda parte. Postado defronte do terminal de computador mergulha-se numa realidade diversa, na qual não há mais separação entre o ator, a platéia e o palco: tudo se confunde, nada/tudo existe.

Os papéis não são mais individuais. Estamos todos juntos e separados ao mesmo tempo: formamos o paradoxo virtual da convivência imediata e do isolamento eterno. A frieza dos contatos mantidos somente por aparelhos/próteses cibernéticas afasta, sonega, simula, o calor humano. Perde-se a referência de quem é o outro! A vertigem do simulacro é plena.

Não se sabe o que é real ou virtual. Chega-se a ser o outro de ninguém: da máquina, desse avanço tecnológico performático desconectado de qualquer alteridade. De sorte que, se sentindo relativamente seguro, o indivíduo está coberto pelo véu-virtual e livre para fazer voar sua imaginação, seus sentimentos irrealizáveis no mundo fático, servindo como fuga da realidade, dando condições/ânimo (em muitos casos) para carregar o mundo real. Apimenta o dia-a-dia; dá o molho à realidade. Suborna o prazer com carícias queridas-e-não-queridas advindas de alguém que não sei (nem quero) saber quem é e que preenche algo que não-sei-o-que-é (nem quero saber).

Essa é a situação dos navegantes do espaço virtual, tal qual o homem da vida, rompendo os interditos movido pelo desejo. Realizar suas vontades/desejos, (re)descobrir a sedução: sentir-se mulher; sentir-se homem. O desejo se mantém na falta/necessidade do sujeito: no devir da sedução. Aquela sedução aniquilada no relacionamento rotinizado/estabilizado (re)surge com todo o vigor no mundo virtual, com seu complexo jogo de signos.

No que se refere ao relacionamento virtual em si, pode-se apontar 4 (quatro) estágios/fases, sem que sejam absolutas. 1ª fase: Chats ou sites de relacionamentos pessoas. Nesta primeira etapa existe apenas um sujeito: o eu. Esse eu começa a navegar na Web sem maiores preocupações nem objetivos específicos. A motivação interna vai desde a curiosidade até ausência afetivo-sentimental, como as verificáveis no filme Mensagem para Você.

Nestas ocasiões, quer em chats ou mesmo em sites de relacionamentos pessoais, acontece (via de regra) o primeiro contato motivado por qualquer razão ou pretexto; um nickname que agrada, um nome, um filme, uma música, o acaso/destino: as motivações são inexplicáveis/aleatórias. Nos chats após o primeiro contato normalmente se passa para o “reservado” e a conversa flui naturalmente. Havendo uma certa interação e interesse recíproco pode-se passar para a segunda fase: e-mail, ICQ etc. No caso de troca de e-mails com a resposta do contactado já se adentra na segunda fase.

Na 2ª fase: E-mail, ICQ, entre outros: Após estabelecido o primeiro contato, passa-se a etapa um pouco mais pessoal, estabelecida ainda sobre a regra de não ser muito específico nas informações, no qual as pessoas trocam impressões pessoais sobre assuntos, se conhecem melhor, buscam saber mais de si e do outro. Como num namoro, o jogo de sedução, de impressionamento e surpresas está acontecendo com um detalhe muito importante: o eu pode desaparecer a qualquer momento. Em suma, nesta fase/etapa, busca-se conhecer – com as limitações próprias – o outro, demonstrando-se aquilo que se é ou se quer ser. É verdade, de outra face, que nem todos querem contatos físicos. Muitos querem apenas uma fuga da realidade, sem necessariamente pretender consumar algo físico-sexual. Permanecem nesse estágio pelos mais variados motivos. Passa-se a ter o amor platônico perfeito eterno: o simulacro: a ilusão gostosa.

Na 3ª fase, surge o contato pessoal. A terceira etapa se constitui na apresentação real, por meio de encontros. Normalmente isso acontece depois de muita conversa e interação entre os parceiros virtuais.

Avançando-se para o contato pessoal desnudando-se do véu-virtual, abrem-se as possibilidades de interação pessoal. E na 4ª fase há a passagem para o contato físico. Nesta etapa a distância do virtual e do real é superada e os amantes se entregam, finalmente, ao seu prazer físico.

Buscado, mas não querido, no paradoxo eterno dos relacionamentos afetivos. Com esta etapa, as peculiaridades do nascedouro do relacionamento são superadas pelo contato pessoal e dito normal, com as peculiaridades a ele inerentes. As características passam a ser de um adultério ou namoro verificados no contexto diário, com o seu nascedouro vinculado à internet. A situação somente revela interesse jurídico (para efeito de separação) se pelo menos um dos amantes for casado. Em face das regras e da ética do casamento, exige-se dos cônjuges a conjugalização absoluta das relações sexuais. Todavia o que era ótimo no namoro/noivado, com o tempo foi ficando legal e, se não se cuidar, torna-se num casamento banalizado/burocratizado.

Neste contexto, a novidade, o devir, o jogo da sedução: o(a) amante. A atração pelo novo, pela sedução, pelo desejo: o rompimento com a repetição/rotina. A fuga do desgaste natural dos relacionamentos. No direito brasileiro a separação pode se dar por três fundamentos. Das possibilidades jurídicas da separação, a única que pode ser manejada é a hipótese de a separação com culpa, informadora do Paradigma da Culpa. Nesta modalidade deve-se imputar ao cônjuge (réu) conduta desonrosa ou grave violação dos deveres do casamento que torne insuportável a vida em comum (Lei nº6.515/77, art.5º).

Tenho para mim que ficar procurado culpados pela derrocada do relacionamento no processo civil atual é no mínimo surreal. Reconhecidamente é impossível reconstruir toda a história das partes, saber os momentos de decepção, angústia, os sentimentos escamoteados, envergonhados, silenciosos, que jamais aflorarão no processo civil: nunca se saberá o que aconteceu durante todo o relacionamento, mas mesmo assim, o monopólio do Estado da jurisdição se arvora em apontar, com a autoridade da coisa julgada, o culpado! No Paradigma do Desamor as culpas são partilhadas a gosto dos cônjuges, sem que se preocupe em apontar o culpado pelo fim do relacionamento. Será que alguém se acredita totalmente inocente ao final de um relacionamento? Nunca fez qualquer ato ou omissão capaz de gerar no companheiro/companheira uma desilusão, um dissabor, uma frustação, uma mágoa sequer? Com essa compreensão, nos processos judiciais de separação, longe de se buscar estabelecer as pechas de culpado ou inocente, deve-se tão somente obter a resolução das questões patrimoniais e monetárias, preocupadas com o devir dos cônjuges agora separados e da prole eventualmente existente. Essa deve(ria) ser a única preocupação do Estado-Juiz, abandonando-se aquela vinculação moral do culpado pela bancarrota da união. No Paradigma do Desamor basta um não querer viver junto e pronto.

Reconhecida a densidade normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, acolhidos pelo ordenamento pátrio com status constitucional (CF, art.5º, §2º), cumpre rejeitar, com vigor, o Paradigma da Culpa, violador da dignidade da pessoa humana em nome de uma difusa moral pessoal/social. Ante a conformação do Estado Democrático de Direito (de viés Garantista), somente se mostra compatível o Paradigma do Desamor que enseja a (busca da) felicidade dos cônjuges, abjurando-se a culpa. Assim, a descoberta feita pelo cônjuge da existência de um (ou vários) relacionamento(s) virtual(is) compete somente a si: mais ninguém. Cotejando seus sentimentos, seu afeto e após uma boa conversa a decisão da continuidade/ruptura do relacionamento não precisa ser publicizada no processo judicial, com a necessidade da comprovação:

1) da existência da infidelidade virtual; 2) a conduta ser desonrosa; e 3) tornar insuportável a vida em comum. Nada disso. Assumido o Paradigma do Desamor, basta a vontade deliberada de um não querer mais viver junto para efeito da separação judicial, sendo absolutamente inconstitucional (em face do princípio da dignidade da pessoa humana) a necessidade da comprovação da existência da infidelidade virtual e a insuportabilidade da vida em comum. Esta nova concepção de família pressupõe o respeito à liberdade e felicidade sentidas exclusivamente por quem está vivenciando a realidade da união. Somente quem está convivendo pode saber se existe afeição e respeito mútuo. São os titulares absolutos do direito de escolher sua felicidade: o mais lídimo ato de liberdade!

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