Álcool e cigarro

Admitir consumo de cigarro e álcool e proibir droga é injusto

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6 de abril de 2001, 0h00

Instintivamente o homem procura agrupar-se para enfrentar suas próprias limitações e as vicissitudes. Inconcebível a coexistência humana sem a estipulação de certos parâmetros traçados em regras, especialmente as jurídicas com sua característica força coercitiva. Perceberam alhures os romanos: “ubi societas, ibi ius” (onde está a sociedade, está o Direito).

O Direito limita as liberdades individuais indubitavelmente, todavia, inexistentes as limitações reinaria o abuso do mais forte sobre o mais fraco. Atribui o Direito poderes e deveres aos homens de forma uniforme, quando não existe motivo para distinções, portanto, a liberdade de cada um vai até onde não agride a do outro.

O Direito deve tratar a todos de forma igual, conforme os ditames da justiça distributiva. Considera todos os iguais igualmente, e desiguala os desiguais. Ou seja, a lei, expressão maior do Direito, pode diferenciar os homens quando apresentem desigualdades no mundo fenomênico, mas há sempre uma reciprocidade de poderes e deveres.

A balança que representa o Direito ilustra esse equilíbrio entre poderes e deveres, de forma justa. A diferenciação deve calcar-se em critérios equânimes. O Direito, portanto, não se satisfaz com a simples coexistência social. Visa a estabilidade e a paz social como meio propiciador de desenvolvimento do ser humano. O homem é sempre o protagonista principal do Direito e seu aperfeiçoamento é sua finalidade principal.

Eis a noção de Direito fornecida pelo professor Vicente Ráo: “é o direito um sistema de disciplina social fundado na natureza humana que, estabelecendo nas relações entre os homens uma proporção de reciprocidade nos poderes e deveres que lhe atribui, regula as condições existenciais dos indivíduos e dos grupos sociais e, em conseqüência, da sociedade, mediante normas coercitivamente impostas pelo poder público”.

Princípio da igualdade e as normas legais.

Para o Direito, a lei é uma regra geral que, emanada de autoridade competente, é imposta, coativamente, à obediência de todos (Clóvis Beviláqua). Preceito comum, norma geral, a lei refere-se a todos indistintamente sem excluir ninguém. A lei alberga a noção de isonomia, pois seus comandos dirigem-se a todos os súditos.

A lei, principal instrumento normativo do Direito, deve tratar a todos com igualdade, seja homem ou mulher, seja idoso ou jovem, seja criminoso encarcerado ou cidadão liberto, quando não houver legítima razão de diferenciação – princípio da isonomia. Este o norte indicado na Carta Magna e adotado por tratados internacionais, vigentes como norma interna nacional, com “status” constitucional, por força do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição da República.

Constituição da República Federativa do Brasil.

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

……………………………………………………………………………………………….

§ 1.º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2.º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Artigo 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra qualquer natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

Artigo 24. Igualdade perante a lei – Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.

Mas o douto Celso Antônio Bandeira de Mello lembra ser a lei instrumento de discriminação, pois ao estabelecer situações jurídicas variadas confere regramentos distintos às pessoas. Todavia, há critérios científicos a observar:

“Então, no que atina ao ponto central da matéria abordada procede afirmar: é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto.”


“Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles; todavia, necessita, inarredavelmente, guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta. Em outras palavras: a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impende que exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado construído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a disparidade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida afronta o princípio da isonomia” (“Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, autor citado, 3ª edição, São Paulo, Editora Malheiros, 1995, item 32).

Ressalta-se neste âmbito, não ser apenas o legislador ao criar a norma legal o único representante estatal obrigado a observar o mencionado princípio. O Estado-juiz e o Estado-administrador, ao evocarem o mandamento legal em suas atuações específicas, necessariamente estarão limitados ao princípio jurídico da igualdade.

Permissão de porte, consumo e comercialização de álcool e cigarro.

Jesus, segundo o relato bíblico, transformou água em vinho, propiciando a continuidade de uma animada festa durante dias. Antes, os gregos já consumiam largamente o vinho para empolgar os eventos sociais. Tribos e coletividades primitivas consumiam produtos estupefacientes desde priscas eras.

Tradicionalmente se consome álcool e fumígeros, sendo condutas aceitas pelos padrões éticos e morais da nossa sociedade, desde que moderadamente. O Estado, também por isso, não proíbe o porte, consumo e comercialização destes, todavia, modernamente envida esforços na implantação de restrições legais.

Em decorrência dos elevados números de internações no sistema de saúde público e da debilitação da capacidade laborativa dos consumidores, sobrelevando as despesas com o consumo das substâncias referidas, legitimou-se o aumento exacerbado das alíquotas dos impostos incidentes na produção e comercialização destes produtos.

Como conseqüência elaborou-se nos últimos anos um longo elenco de normas restritivas, todavia, respeitando-se a autonomia do indivíduo, não se proibiu o porte, consumo e comercialização de álcool e fumígeros.

Proibiu o legislador, seguindo a moderna tendência, no artigo 2º da Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou de qualquer outro produto fumígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo, privado ou público, salvo em área destinada exclusivamente a esse fim, devidamente isolada e com arejamento conveniente, pois o efeito deletério do cigarro atinge pessoas próximas do usuário.

O Estado orienta, segundo os ditames da norma legal uso referido, o usuário de produtos fumígenos e o consumidor de produtos alcóolicos sobre os malefícios do consumo em constantes campanhas publicitárias, e compeliu as empresas envolvidas na fabricação e comercialização destes produtos a restrição da publicidade, quanto ao horário de veiculação de comerciais e conteúdo das mensagens, que não podiam estar associadas às atividades olímpicas, ao aumento de virilidade ou feminilidade, dentre outros obstáculos normativos.

Impeliu, ainda, a introdução na publicidade mensagens elucidativas dos efeitos danosos destes produtos, tais como, “o cigarro mata”, “o cigarro causa câncer”, “consuma com moderação”, “produto causa dependência” etc..

A Lei nº 10.167, de 27 de dezembro de 2000, dentre outras medidas, proibiu taxativamente a publicidade das substâncias em comento, salvante a publicidade interna e restrita à afixação de cartazes nos estabelecimentos comerciais, modificando a norma suso citada, restringindo ainda mais a atuação dos fabricantes e comerciantes.

Preocupa o legislador, dentre outras condutas, o consumo de álcool concomitante com a direção de veículos automotores, que ocasiona diuturnamente prejuízos imensuráveis ao país.

As campanhas de educação de condutores de automóveis elucidam a impropriedade do simultâneo consumo de álcool e condução de veículo, ensejando responsabilidade administrativa, civil e criminal do motorista embriagado.

O Código de Trânsito Brasileiro em seu artigo 165 estabelece multa e medida administrativa para aquele que dirigir sob a influência de álcool, tipificando crime no artigo 306 para a mesma conduta, conquanto que o agente exponha outrem a perigo de dano.

O legislador novamente preocupa-se com o embriagado no Código Penal em seu artigo 28, estipulando a imputabilidade penal do agente acometido por embriaguez, voluntária ou culposa, salvante a embriaguez decorrente de caso fortuito ou força maior, para isentar ou reduzir a pena do agente.


Admite-se a interdição do ébrio, acometido pelo alcoolismo, reduzindo ou ceifando sua capacidade para conduzir seus próprios interesses na órbita da vida civil. Portanto, aquele indivíduo desprovido de discernimento para suportar os clamores do vício dominador, estará sujeito à interdição, sujeitando-se a assistência ou a representação de um curador.

Importante citar que a embriaguez mencionada nas normas acima referidas decorre do consumo do álcool, de drogas proscritas ou de ambos, concomitantemente.

Em vários outros dispositivos legais o legislador preocupa-se com os danos provenientes do consumo dos malsinados produtos, mas, como dito, conserva intocável a autonomia dos indivíduos quanto à escolha de utilizá-los ou não.

Proibição do porte, consumo e comercialização de drogas proscritas.

O Direito Penal é o ramo do direito público de tutela e garantia dos valores máximos da sociedade, atribuindo ao ilícito criminal a sanção mais grave, pena ou medida de segurança.

A lei penal garante o mínimo ético social, devendo cautela maior na distribuição entre os súditos dos deveres e direitos usos referidos. Foi-se o tempo em que os nobres mereciam penas diversas daquelas cominadas aos plebeus!

Portanto, injusta e injurídica a discriminação realizada pelo Estado ao imputar pena criminal a condutas de porte, consumo e comercialização de algumas drogas, dentre elas a denominada vulgarmente como maconha, e permitir o uso e comercialização de outras, com as quais aufere receitas gigantescas.

O consumo do álcool e do cigarro, cientificamente considerados drogas tóxicas, com potencialidade lesiva à saúde pública, causadores de dependência física, vício, e danos dos mais variados, começam a receber algumas restrições legais. Todavia, não há interesse estatal na proibição do consumo, embora os considere droga tóxica publicamente, especialmente em campanhas publicitárias.

Nesta seara o Estado não se intromete na órbita individual, adotando a lição filosófica do alemão Schopenhauer, na qual o homem pode ir da terra ao inferno, contanto que não arraste seu semelhante, causando-lhe mal.

O THC, tetrahidrocanabinol, seus isômeros e suas variantes esteroquímicas, princípio ativo da maconha, v. g., por ocasionar dependência psicológica, foi proscrito ao ser incluído no item 43, do anexo 1, lista “F”, da Portaria nº 344/98 da Secretária de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, reafirmando-se o contido na Portaria nº 28/86, item 29 da Lista de Substâncias Entorpecentes, e Psicotrópicas de Uso Proscrito no Brasil, e Decreto 79.388, de 14 de março de 1977, que promulgou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, na Lista de Substâncias Psicotrópicas, Complementares à Convenção, item 10.

O álcool, embora não seja proibido, também ocasiona vício e sujeita o usuário, nos casos extremos, à absoluta incapacidade, solapando o seu consumo os mesmos interesses protegidos com a proibição do consumo da substância maconha, exemplificativamente. O mesmo sustenta-se sobre a nicotina, princípio ativo do cigarro… Todavia, não o incluiu o Estado ao elaborar a norma regulamentadora da norma penal em branco tipificadora.

Tecnicamente a lei não proíbe diretamente o consumo de drogas, mas tão somente o porte e o tráfico destas substâncias. Entretanto, não haveria consumo sem o porte, o que representa faticamente a mesma situação jurídica!

Qual a razão jurídica da discriminação? Seria válido proibir o consumo de uma droga e permitir o consumo de outra similar? Ainda, a autoridade competente para editar a norma penal suplementar à Lei de Tóxicos poderia arbitrariamente proibir o consumo de determinadas drogas, permitindo de outras, tão lesivas quanto aquelas? O consumo individual destas substâncias pode ser impedido diante dos princípios orientadores do Estado Democrático de Direito?

Conclusão.

Qual a razão jurídica para considerar pessoas em situações iguais diferentemente?! As grandes empresas produtoras de bebidas alcoólicas e de produtos derivados do tabaco recebem tratamento diferenciado, embora agridam cotidianamente os idênticos interesses guarnecidos pela Lei nº 6.368/76.

Os tabagistas e alcoólatras, isentos das reprimendas penais, investem livremente na atividade deletéria cotidianamente, todavia, inconcebível repressão criminal de conduta tão enraizada em nossos costumes e cultura. Mas, de outra banda, o liberalismo estatal evita o domínio do tráfico, e, conseqüentemente, da violência do crime organizado, permitindo a morte pacífica dos viciados…

Incabível, ademais, a extensão do preceito incriminador aos comerciantes e usuários de álcool e cigarros, diante do princípio da reserva legal penal, estabelecido expressamente no seio do arcabouço constitucional de direitos fundamentais (artigo 5º, XXXIX, da CF) e no Código Penal (artigo 2º).


Todavia, a aplicação da norma penal apenas em algumas situações jurídicas ilicitamente estabelecidas, afronta o princípio constitucional da igualdade e as normas convencionais apontadas, pois o descrimina não sobreleva fundamento razoável de distinção. Destoa referida norma do princípio constitucional da isonomia, e dos artigos da Lei Maior e Tratados Internacionais indicados.

A discriminação normativa imposta ilicitamente malfere igualmente o fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, pois o indivíduo considerado sujeito de direito não pode optar pessoalmente, autonomamente, sobre seu interesse em consumir droga ou não. O mesmo indivíduo, sujeito de direito em todos os momentos da vida civil, sofre uma diminuição de sua capacidade quando o assunto é o preconceituoso tema das drogas.

Por ser o conceito de sujeito de direito imagem parcial da descrição de sujeito para a filosofia moderna, cito lição pertinente do filósofo Paulo Guiraldelli Jr., invocando Marilena Chauí.

“O eu é a identidade, formada das vivências psíquicas; é a forma de consciência mais singular, pois as vivências psíquicas são o que o sujeito menos compartilha com os seus pares. Digamos que ele é a peça mais individualizada da subjetividade. A pessoa é a consciência moral; é o sujeito enquanto juiz do certo e do errado, do bem e do mal. O cidadão é a consciência política; o sujeito enquanto juiz dos direitos e deveres da vida da cidade. O sujeito epistemológico é a consciência intelectual; o sujeito enquanto juiz do verdadeiro e do falso; o detentor da linguagem e do pensamento conceitual; trata-se da forma de consciência mais universal (cf. Chauí, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994, pp. 117-19).” (in Curso de Extensão da Universidade de Brasília “Introdução à Filosofia – Neopragmatismo”, ministrado pelo professor citado via internet, http://www.filosofia.pro.br/curso-filosofia ).

Num instante, o cidadão, exercendo seu direito positivo eleitoral de voto, conforma toda a estrutura de poder conferida ao ente estatal, decide sobre seus interesses mais delicados, exercendo conscientemente seu direito de optar entre várias condutas que repercutirão na órbita jurídica alheia, noutro instante, defenestrada sua consciência pelo órgão estatal, não pode optar em portar drogas para consumo próprio, exercendo pessoalmente suas opções de vida.

O Estado Democrático de Direito, por ser democrático, o que pressupõe o máximo de liberdade de escolha consciente entre várias condutas, jamais tolherá do indivíduo tais opções de forma desarrazoada. O sujeito dotado de capacidade plena pode consumir alimentos e bebidas pouco saudáveis, pode ingerir detergente ácido “coca-cola” ou litros de bebidas alcoólicas, pode fumar cigarros, com alto teor de nicotina, pode permanecer sentado diante da televisão o dia todo, ensejando prejuízos enormes à saúde física e mental. Em tese, pode findar aos poucos sua existência terrena, livremente…

O indivíduo dotado de consciência pode escolher entre várias condutas, e arcar com as conseqüências danosas, desde que não prejudique seu semelhante. As escolhas são do sujeito, e o Estado apenas serve aos seus interesses, garantindo a máxima liberdade no convívio social.

Ao final, o sujeito, como um ser dotado de consciência, ocupa determinado espaço em exíguo tempo, caminhando temerosamente em direção às incertezas do futuro, motivado pela esperança e pela liberdade. Nessa peregrinação solitária só nós mesmos podemos optar entre os vários caminhos a percorrer.

Cremos vislumbrar posicionamento juridicamente sustentável, talvez diferenciado, heterodoxo, mas ao responder as questões acima apontadas não pretendemos lançar uma verdade inquestionável, somente nova perspectiva cognitiva da situação jurídica em comento. Propiciar uma análise longe de preconceitos bastou como inspiração (se existiu alguma) das modestas linhas, restando a pretensão de suscitar uma discussão sobre o tema.

*O presente artigo decorre de fundamentação de defesa criminal elaborada pelo autor na atividade de Procurador do Estado, no mister de defensor público.

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