A Volta do Planeta dos Macacos

Desembargador Luiz Fux defende liminares como instrumento da Justiça

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1 de outubro de 2000, 13h42

Em recente evento cultural jurídico, festejado doutrinador processual manifestou-se contrário à inserção de formalidades no procedimento simplificado dos Juizados Especiais, justificando a sua posição de forma pouco tradicional, trazendo à baila espirituosa fábula.

O talentoso expositor afirmou perante a platéia que a criação de ritualismos nos Juizados Especiais, representaria um retorno à estaca zero, relembrando a “volta do planeta dos macacos”. Conta-se, segundo ele, que o “mundo acabou” e não restara mais nenhum habitante sobre a superfície terrestre, a não ser um “macaco”, que caminhava léguas e léguas a contemplar sozinho aquilo que fora terra de muitos.

Num determinado dia, ao final de sua caminhada, avistou uma “caverna” intrometendo-se na mesma. Vagando pelo seu interior com a felicidade de “dono do mundo”, vislumbrou dois pontos brilhosos que se destacavam naquela escuridão. A cada aproximação, podia ouvir ruídos semelhantes aos sons que produzia quando em estado de euforia. Qual não foi a sua surpresa, quando ao aproximar-se mais amiúde, deparou-se com uma fêmea de sua espécie e, então, envolvido pela linguagem do amor e da procriação expressou: Pronto vai começar tudo de novo!

Com essa imagem o notável processualista procurou fazer ver que a introdução de novas formalidades no rito simplificado dos Juizados Especiais representaria um retrocesso às formas antigas de prestação jurisdicional, das quais procurou-se escapar com a criação deste novel segmento judicial.

A preocupação volta à cena em face das vozes que se levantam contra as denominadas “liminares”.

Ressoa uníssono na comunidade dos cientistas do processo que a concessão de poder à justiça institucionalizada para conferir liminares, representou notável avanço da legislação brasileira na efetivação do postulado do “acesso à justiça”.

Forçoso convir que as formas tradicionais de prestação da justiça não mais correspondiam às expectativas modernas de “celeridade”, reclamada diuturnamente pelos consumidores dos serviços judiciários.

Resta evidente que a justiça tardia transforma a garantia constitucional da “inafastabilidade da jurisdição” numa vã promessa, sedutora enquanto letra morta no papel. Aliás, a ineficiência das formas usuais de resposta judicial é responsável pelo desprestígio alcançado pelo Poder judiciário aqui e alhures.

O insigne jurista Mauro Cappelletti no seu famoso “Projeto de Florença”, em co-autoria com o Professor Bryan Garth da Universidade de Stanford, dedicado ao estudo “universal” das causas obstativas do efetivo acesso à justiça, aponta a morosidade judicial, em minúcias, notadamente nos diversos países, à luz de cujo quadro nós, brasileiros, não temos do que nos envergonhar.

A afinidade de problemas decorre da identidade do tronco. Os sistemas processuais europeus, assim como o nosso, de família romano-germânica foram substancialmente construídos sob a égide dos princípios iluministas, segundo os quais, o Poder Judiciário representava uma parcela do estado absolutista e, portanto deveria ser “controlado” através de formalidades consubstanciando supostas garantias para as partes.

Essa tortuosa concepção apregoada por teóricos das luzes como Rousseau; segundo o qual o juiz era um ‘ditador’ ou Montesquieu, que conferia ao magistrado tão somente o poder de declarar as palavras da lei – la bouche de la loi -, foi responsável pela excessiva demora dos processos até os dias de hoje, em razão das inúmeras etapas e solenidades que antecedem a resposta judicial.

O legislador, diante dos níveis alarmantes de insatisfação decorrentes da morosidade da justiça, notadamente após a Constituição Federal de 1988, fez introduzir no cenário processual brasileiro uma série de instrumentos capazes de viabilizar a tão decantada “justiça rápida”. Dentre as técnicas utilizadas consagrou a das “liminares”, estendendo a possibilidade de sua concessão em todo o processo e procedimento em que se constatasse a suma injustiça representada pela demora da resposta judicial.

Assim, tornou-se lícito ao juiz conceder liminar acaso o direito da parte reclame providência imediata em razão da urgência que o caso requer ou diante de um direito líquido e certo. No primeiro caso o jurisdicionado não pode aguardar sob pena de perecimento de seu direito, como por exemplo, os alimentos vitais a uma pessoa humana cuja concessão não pode aguardar o desfecho natural do processo. No segundo caso, o direito é tão evidente que não há necessidade de o juiz especular, por isso que a parte faz jus a um pronunciamento imediato.

Em ambos os casos, o juiz não provê segundo o subjetivismo de sua consciência. Absolutamente não. A lei exige que a prestação judicial imediata seja fundada em “prova inequívoca” que é algo que propende para a certeza e é, sem dúvida, o melhor elemento de convicção que se pode produzir, partindo-se da premissa de que a certeza e a verdade são “quimeras”, posto que a indagação a esse nível tornaria os processos infindáveis.

Como se pode inferir a concessão de liminares não é fruto de uma alforria irresponsável dos juízes, mas providência necessária fundada na lei e na prova plena.

O fundamento das liminares está na Constituição Federal que através das garantias pétreas assegura o “acesso a uma ordem jurídica justa”, “a igualdade de todos perante a lei” e o “devido processo legal”.

Ora, a justiça que não se desincumbe “liminarmente” (daí liminar) diante de uma situação de periclitação do direito da parte, não cumpre a promessa do acesso à justiça, porque o Estado-juiz ou provê de imediato ou estará denegando justiça pela sua inutilidade posterior.

Por outro lado, se o cidadão exibe em juízo um direito líquido e certo, também não é justo retardar o atendimento de seu pedido a pretexto de favorecer o réu que não tem razão, máxime à luz das provas produzidas e da igualdade das partes no processo ou fora dele.

Percebe-se, portanto, que as liminares são instrumentos de agilização da prestação judicial reclamados pelo anseio popular exteriorizado pelo constituinte de 1988.

Francesco Carnelutti afirmava travar o juiz no processo uma luta incansável contra o seu maior inimigo que é o tempo.

As declarações fundamentais dos direitos do homem, assim considerada a originária promulgada pelas Nações Unidas bem como as mais recentes, como a Européia, a Africana e o Pacto de São José da Costa Rica, preconizam que um país que não se desincumbe da prestação da justiça em prazo razoável oferece uma “justiça inacessível”.

Pois bem: as atacadas liminares são os únicos instrumentos capazes de viabilizar a promessa constitucional e atender aos postulados fundamentais.

Destarte, representam um notável crédito de confiança conferido pelo Poder legislativo ao Poder Judiciário como consectário da harmonia constitucional.

Essa justificativa jus-filosófica das liminares impõe-nos severas apreensões diante do movimento que irrompe contra a sua consagração na ordem jurídica.

Não há a menor dúvida de que a abolição das liminares representará um novo e lamentável “recomeçar” da estaca “zero”, tal como se referiu o nosso doutrinador de inspiração:

“A volta ao planeta dos macacos”

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