Direito Autoral

Desembargador faz considerações sobre o direito autoral

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29 de novembro de 2000, 10h55

Um grupo de sábios, de acordo com antiga lenda oriental, teria se reunido no Castelo de Akbar para discutir a obra da criação. Um dos temas em debate era saber por que o homem, obra prima da criação, foi criado por último, somente no sexto dia, depois que tudo já estava criado.

Alguns sábios sustentaram que foi porque o Supremo Criador, antes de trazer o homem à existência, tratou de providenciar tudo aquilo que ele haveria de necessitar. O homem precisa de água e a encontra na natureza; necessita de ar, alimento, luz, energia, e tudo isso já havia sido providenciado.

Outro grupo entendeu que a questão era de ordem ética e moral. O homem foi criado por último, quando tudo já tinha sido criado, para que não se arvorasse o criador de tudo, para que soubesse que não criou nada.

Sem entrar no mérito da discussão, creio, todavia, ser forçoso reconhecer que o homem também cria, e é justamente isso que o torna semelhante ao Criador. Nesse ponto residem também a superioridade e a nobreza do direito autoral.

Com efeito, a obra intelectual é uma criação do espírito, fruto do talento, da inteligência, da imaginação, daquela centelha divina outorgada pelo Criador. Autor é quem cria, quem consegue transformar uma tela branca em um quadro de indescritível beleza, um papel pautado em uma música arrebatadora, uma folha de papel em um texto comovedor, enfim, um bloco amorfo de mármore em uma estátua que só falta falar.

Tenho afirmado que o direito autoral é o único realmente originário porquanto a sua existência depende da ação criadora do seu titular. A propriedade se adquire ou dela se apodera o homem quando a coisa é de ninguém.

Os direitos da personalidade são atributos da lei para todo o ser humano que nasce com vida, de sorte que todos os recebem indistintivamente. Os direitos autorais, todavia, só os tem quem cria, quem concebe uma obra em seu espírito e a traz à existência.

Trata-se também do único direito perpétuo porque nem a morte separa a obra do seu autor. A Divina Comédia, por exemplo, será sempre uma obra de Dante, não importam os séculos decorridos da sua morte; Mozart será o compositor de suas músicas divinas até o juízo final; as estátuas de Miquel’Angelo eternizaram o seu nome.

II. O duplo aspecto do direito autoral

Cumpre ressaltar que o direito positivo brasileiro, na mesma linha de entendimento do direito de outros países, reconhece duplo aspecto ao direito autoral: um de natureza moral e o outro de conteúdo patrimonial ou econômico.

Quanto ao primeiro – direito moral do autor – o nome foi usado pela primeira vez por André Morillot em 1872, para indicar as prerrogativas que tem a personalidade do autor sobre sua criação intelectual (Código de Direitos Autorais, Eduardo Pimenta, Lejus, 1998, p.28). Alguns autores preferem chamá-lo, com razão, de direito imaterial do autor, ou direito pessoal, em face do sentido restrito que o termo moral tem em nosso direito. A terminologia – Direito Moral do Autor -, todavia, está consagrada universalmente, de modo a desestimular qualquer tentativa de mudança.

Basta que tenhamos em mente que o termo moral não é aqui utilizado no tradicional sentido do dano moral, vinculado a sentimento de tristeza, dor, vexame, sofrimento e humilhação. Não, quando a lei fala em direito moral do autor está se referindo àquele direito que decorre da manifestação da sua personalidade, emanação do seu espírito criativo, sem levar em conta qualquer conteúdo econômico.

É a esse direito, penso eu, que se refere a Constituição Federal no seu artigo 5º, XXVIII, ao dispor: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras.”

A Lei de Direitos Autorais, por sua vez (Lei 9.610/98), em seu artigo 24 especifica esses direitos morais do autor, merecendo destaque os que seguem: “o de reinvidicar a autoria da obra a qualquer tempo; o de ter o seu nome indicado ou anunciado na utilização da obra; o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações; o de modificar a obra e o de retirá-la de circulação”.

Depreende-se desse elenco que os direitos morais do autor consubstanciam-se, basicamente, na paternidade da obra e na sua integralidade, e têm por principais características a pessoalidade e a perpetualidade, pois a lei diz que são direitos inalienáveis e irrenunciáveis (art.27).

Só a pessoa física pode ser titular do direito moral de autor porque só o ser humano é capaz de criar uma obra intelectual. A Lei Autoral, em seu artigo 11, ao dizer que “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”, afastou definitivamente a discussão ensejada pelo parágrafo único do artigo 15 da Lei anterior sobre a possibilidade de ser a pessoa jurídica considerada autora.

Pode ser ela titular de direito patrimonial do autor, mas do direito moral nunca, simplesmente porque a pessoa jurídica não é capaz de criar nada; não tem talento, não tem espírito, não tem imaginação.


O direito patrimonial do autor tem por conteúdo o aproveitamento econômico da obra, que se opera através de sua reprodução, publicação, apresentação ou utilização remunerada. Esse direito, embora a lei o atribua com exclusividade ao autor (art.28), pode ser por ele transferido a terceiros, total ou parcialmente, temporária ou definitivamente, por meio de autorização, concessão, cessão e outros meios jurídicos (arts.49 e 50). Cede-se a obra, ou a sua exploração econômica, mas a autoria nunca.

II. Reparação do dano moral

Feitas estas colocações, vejamos agora onde se enquadra a responsabilidade civil no direito autoral. Haverá o dever de indenizar sempre que for violado o direito do autor em qualquer dos seus aspectos.

Indenização por dano material se o causador do dano obtiver proveito econômico com a obra do autor sem a sua autorização ou participação; indenização por dano moral se a agressão for contra os direitos morais do autor; indenização por danos morais e patrimoniais se ambos os direitos forem violados.

Já se firmou a jurisprudência, como não poderia deixar de ser, no sentido de cumularem-se as indenizações por dano material e moral ocorrendo ofensa a ambos os direitos do autor.

Quanto ao dano moral, entendo ser ele presumido, isto é, decorre da simples violação de qualquer um daqueles direitos morais do autor enunciados no artigo 24 da lei autoral, ainda que a violação não exponha o autor a nenhum sentimento de dor, vexame, sofrimento ou humilhação.

O artigo 108 da Lei Autoral serve de suporte legal para essa conclusão ao dispor: “Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, o pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade da seguinte forma:

I– Tratando de empresa de radiodifusão, no mesmo horário em que tiver ocorrido a infração, por três dias consecutivos;

I– Tratando-se de publicação gráfica ou fonográfica, mediante inclusão de errata nos exemplares ainda não distribuídos, sem prejuízo de comunicação, com destaque, por três vezes consecutivas em jornal de grande circulação, dos domicílios do autor, do intérprete e do editor ou produtor;

I– Tratando-se de outra forma de utilização, por intermédio da imprensa, na forma a que se refere o inciso anterior.

Como podemos ver, além da indenização pelo dano moral pelo só fato de ter sido omitido o nome do autor da obra, a lei ainda impõe sanções acessórias ao ofensor destinados à total reparação do direito do autor.

A indicação do nome do autor é indispensável ainda que a obra tenha sido cedida ao editor ou expositor, porque, como já enfatizado, cede-se a obra, cede-se o seu aproveitamento econômico, mas não a sua autoria. A jurisprudência é todo no sentido de proteger a paternidade da obra.

DIREITO AUTORAL. DANO MORAL. Faz jus a indenização por dano moral a autora de programa de televisão que teve seu nome não divulgado quando da reprise da série. Não beneficia a empresa a circunstância de haver se tornado cessionária do direito, fato que não a desobriga de identificar a autoria da obra.(2ª Câmara Cível, TJRJ, Des. Thiago Ribas Filho).

Trago, ainda, à colação dois ou três acórdãos que protegem não só a paternidade da obra mas também a sua integridade, conteúdo básico dos direitos morais do autor.

DIREITO AUTORAL. Fotografia. Modificação da obra e omissão do nome do autor.

Nos termos do art.126, da Lei nº 5.988/73, o autor tem direito a ser indenizado por danos morais e a ver divulgada sua identidade, independentemente da prova tópica de haver sofrido prejuízo econômico (2ª T. STF, Min. Francisco Rezek).

DIREITO DE AUTOR. Texto Literário. Reprodução. Modificação.

Há ofensa ao direito do autor na reprodução não autorizada – ainda que em obra didática, com a indicação da origem e do nome do autor – quando feita com cortes, nova disposição e montagens do original, prejudicando a criação literária. (Rec.Esp. nº 103297-MG, STJ, Min. Ruy Rosado).

No que tange ao valor da indenização pelo dano moral, vamos encontrar também aqui a mesma problemática existente para o dano moral em geral. Terá que ser arbitrada pelo juiz, com prudência e bom senso, atento aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da exemplaridade, etc.

I. O duplo caráter – reparatório e repressivo – da indenização patrimonial.

Tal qual o dano moral, também o dano patrimonial decorre da simples violação da lei. Com efeito, se a utilização econômica da obra depende de prévia e expressa autorização do autor, consoante artigo 29 da Lei Autoral, então o ato ilícito se configura pela mera violação desse dispositivo.


Temos aqui a culpa contra a legalidade, culpa in re ipsa, que só pode ser afastada mediante prova em sentido contrário. Os meios mais comuns de ofensa ao direito patrimonial do autor são a edição, reprodução ou exposição da obra sem a sua autorização ou participação; a falsificação e a pirataria em geral, da qual o plágio é uma das suas modalidades.

A Lei Autoral, em seu artigo 103, tem norma expressa sobre o valor da indenização. “Quem editar obra literária, artística ou científica, sem autorização do titular, perderá para este os exemplares que se apreenderem e pagar-lhe-á o preço dos que tiver vendido. Não se conhecendo o número de exemplares que constituem a edição fraudulenta, diz o parágrafo único, pagará o transgressor o valor de três mil exemplares, além dos apreendidos.”

O valor da indenização, portanto, não será simplesmente o que o autor lucraria se a edição não fosse lícita, tampouco o lucro que o transgressor obteria com o seu ato ilícito, mas sim a perda de toda a edição, presumindo a lei que esta seria de três mil exemplares caso esse número não seja conhecido.

O art. 103 da Lei 9.610/98 corresponde ao art.122 da Lei anterior (5.988/73) e este, por sua vez, ao artigo 669 do Código Civil. Só que o Código Civil falava em 1.000 exemplares, a lei anterior em 2.000 e a lei atual elevou esse número para três mil exemplares.

Esse artigo confere à indenização pelo dano material ao autor não só um caráter reparatório, mas também punitivo. Visa reprimir a fraude. Com efeito, se o transgressor, apanhado na fraude, tivesse que indenizar ao autor apenas o que este lucraria se a edição fosse legítima, então a fraude passaria a ser um estímulo. Ninguém mais respeitaria a vontade do autor; com ou sem o seu consentimento faria a edição porquanto as conseqüências seriam as mesmas.

Em voto paradigma, publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência nº 38/267, o saudoso Ministro Victor Nunes Leal, um dos maiores talentos jurídicos que passaram pela nossa Suprema Corte, enfrentou essa questão com maestria, quando a matéria ainda era disciplinada pelo artigo 669 do Código Civil.

Dizia aquele grande Juiz: “a indenização do artigo 669 não tem caráter apenas reparatório do direito autoral, que o autor receberia, se houvesse autorizado, regularmente, a impressão. Essa indenização também visa a punir o “transgressor”, isto é, o autor do ato ilícito, que a lei qualifica de fraude.

Não há, pois, necessária correspondência legal entre o prejuízo econômico do autor e a indenização do art.669. Se assim fosse, a lei mencionaria perdas e danos. Mas ela fixa a indenização no “valor de toda a edição”, com sentido punitivo, tendo em vista que ao autor cabe o “direito exclusivo” de reproduzir a obra, o direito de modificá-la, mesmo em caso de cessão de direito autoral, e o direito de impedir, mediante apreensão, que a obra circule. São emanações do direito do autor, que não é apenas material, mas também moral.

Ficaria abalado esse sistema legal, se a reprodução fraudulenta ou ilícita desse lugar apenas a uma reparação pecuniária equivalente ao que ele receberia, se houvesse concordado com a reprodução. A consequência do ato vedado não pode ser a mesma do ato permitido, sobretudo quando há implicações de ordem moral.

Por isso, a lei dá ao autor o direito de apreender os exemplares existentes e de receber uma indenização equivalente ao valor de toda a edição, à base do preço que teriam os exemplares genuínos, isto é, os autorizados regularmanente, deduzindo-se o valor dos que tenham sido apreendidos.”

No mesmo sentido, mais recentemente, pronunciou-se o Superior Tribunal de Justiça em voto magistral do Min. Eduardo Ribeiro, no Resp. nº 150.467-RJ.

Direitos Autorais. Utilização, não autorizada, de trabalho científico na divulgação de produto. Indenização. Arbitramento.

O ressarcimento devido ao autor haverá de superar o que seria normalmente cobrado pela publicação consentida. A ser de modo diverso, sua aquiescência seria, na prática, dispensável. Cumpre, ao contrário, desestimular o comportamento reprovável de quem se apropria indevidamente da obra alheia (RSTJ 111/203).

I– Exclusão de responsabilidade.

Embora raras, podem ocorrer situações que excluem o dever de indenizar. O artigo 46 da Lei 9.610/98 prevê hipóteses que não constituem ofensa aos direitos autorais, entre as quais estão a citação em livros e artigos de passagens de qualquer obra, e a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes (inc.III e VII).

Os limites entre a citação e o plágio, entretanto, nem sempre são bem delineados, ensejando inúmeras demandas. Os casos mais comuns de exclusão do dever de indenizar são de erro provocado por terceiro, como, por exemplo, o editor que publica uma obra plagiada confiando naquele que se apresentou como autor.

Nem sempre terá o editor, por mais cauteloso que seja, condições de constatar a fraude, a adulteração, o plágio antes de a obra ser publicada. Enfrentando essa situação, o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu:

Direito Autoral. Reprodução Fraudulenta. Solidariedade do Vendedor. A solidariedade do que vende ou expõe à venda obra reproduzida com fraude não prescinde da comprovação da culpa. (3ª Turma, STJ, Rel.Min. Dias Trindade – RE 6.087-MG).

Em outro julgado, em que o editor recusou-se a cumprir o contrato de edição ao constatar que a obra era plagiada, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu: “Verificada a presença de plágio em obra literária, não pode a editora editá-la, em respeito ao direito de propriedade intelectual e sob pena de conivência e co-responsabilização” (TJSP-8ª C., Rel. Des. Villa da Costa).

IA defesa do direito autoral.

Diria para encerrar que, como não há cofre, nem bancos para guardar idéias, sons, imagens e outras criações do espírito, o direito autoral é o mais vulnerável, o mais difícil de ser protegido. Por isso é tão fácil furtar idéias alheias, composições e criações do espírito em geral. A pirataria dos direitos autorais é assombrosa no mundo todo.

A lei confere ao autor, cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, alguns instrumentos severos e eficazes na proteção dos seus direitos. Com base no art.102 da Lei 9.610/98 poderá se valer de ação cautelar destinada a apreender todos os exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível. Na sentença condenatória, diz o art. 106, poderá o juiz determinar a destruição de todos os exemplares ilícitos, bem como das matrizes, moldes, negativos e demais elementos utilizados para praticar o ato ilícito civil, assim como a perda de máquinas, equipamentos e insumos destinados a tal fim.

Se a obra foi feita em co-autoria, cada co-autor, individualmente, sem aquisciência dos outros, pode defender os próprios direitos contra terceiros (art.32, § 3º). A inércia do editor na defesa do direito autoral violado não inibe o autor de defender a sua obra pessoalmente, quer no plano moral, quer patrimonial.

Lembro, por derradeiro, que tanto a doutrina como a jurisprudência não admitem a via possessória para a defesa do direito autoral. A posse pressupõe a existência de coisa corpórea, o que não se coaduna com direitos de natureza incorpórea.

“Constituindo os direitos autorais propriedade intelectual, não podem ser objeto de proteção por meio de interdito proibitório, dada a impossibilidade do exercício da posse sobre coisas incorpóreas, podendo o autor da obra, indevidamente reproduzida, valer-se das medidas autorizadas na lei autoral (RJTAMG 56/57, p.267, Rel. Juiz Geraldo Augusto).

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