Dinheiro curto

Artigo - O dinheiro está curto: você paga a pensão ou o cartão?

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13 de março de 2000, 0h00

A pergunta acima parece não ter sentido, mas lamentavelmente tem. Digo isso porque, em nosso direito, é possível que sejam impostas sanções mais eficientes a quem deixa de pagar o cartão de crédito do que a quem não paga a pensão alimentícia.

É claro que o não pagamento da pensão pode ensejar até a mesmo a prisão do devedor (art. 733, §1º, CPC), o que é uma pena grave. Porém, do que adianta uma pena tão grave, se na prática é muito demorada e incerta a sua aplicação? Veja o raciocínio abaixo.

Se ocorre uma greve dos correios e a fatura não chega a tempo de o devedor fazer o pagamento no dia certo, deve ele tomar a iniciativa de saber seu saldo, procurar o banco e fazer um pagamento avulso, pois o não pagamento faz com que imediatamente incidam pesados encargos, juros, multas, etc. Mais ainda. Persistindo o atraso por alguns poucos meses, o crédito é cortado, o nome do devedor é mandado para o SPC, é incluído no Serasa, seu nome é protestado, enfim, a vida da pessoa é muito afetada.

E se a pensão não é paga? O devedor pode relaxar porque a “temida” prisão é algo ainda muito distante. E os encargos? São infinitamente menores do que os do cartão de crédito e não haverá protesto, nome sujo no SPC, etc. Quando ocorre falta de pagamento da pensão quem fica preocupado não é quem deve (ao contrário do caso do cartão de crédito), mas quem precisa da pensão para as suas necessidades básicas.

Quem não recebe a pensão que lhe é devida começa a sofrer privações, humilhações e têm que ir de madrugada para uma fila – porque normalmente não tem advogado particular – a fim de conseguir uma senha para ser atendido pela procuradoria de assistência judiciária ou por escritório experimental de uma faculdade de direito. Faz-se, então, o pedido de desarquivamento dos autos do processo que originou a pensão, e tem início um novo processo (de execução).

Até aí, normalmente 2 ou 3 meses já se passaram sem que a pensão tenha sido paga, na melhor das hipóteses, e muito freqüentemente os autos são remetidos ao contador do fórum para o cálculo da dívida (e mais tempo se passa) até que finalmente é dada uma ordem para que o devedor seja citado para pagar em 3 dias ou se justificar, sob pena de prisão. O prazo é curto, mas ele só começa a ser contado depois que ocorre a citação pessoal, o que pode demorar dias ou meses.

Quando ocorre a citação, é comum o devedor procurar um advogado ou os órgãos de assistência judiciária gratuita, que apresentam uma justificativa, por vezes padronizada. Feito isso, a prisão normalmente não é decretada desde logo e costuma-se marcar uma audiência de tentativa de conciliação, de acordo com a pauta disponível, o que pode chegar a vários meses de espera. Todo esse tempo somado faz com que não raramente se acumule até mais de um ano de pensão alimentícia não paga sem que haja a prisão.

E a evolução da dívida nesse período? Normalmente recebe atualização semelhante à de uma caderneta de poupança, que é um dos piores investimentos em rentabilidade!

Ainda que, na prática, não tenha visto acontecer, a um devedor atrevido e com sorte é possível, em tese, ao invés de pagar a pensão, aplicar o seu valor no mercado financeiro, para, após o resgate, obter um valor que dê para pagar a dívida e ainda conseguir lucro. E tudo isto sem que até então ocorra a “temida” prisão!

Pois bem, chegado o dia da audiência, normalmente é feito um acordo que, em termos estritamente financeiros, costuma ser lesivo para o credor, já que freqüentemente há um aumento no prazo de pagamento ou um perdão de parte da dívida, quando não ocorrem as duas coisas, pois o desespero da necessidade e a angústia da demora processual fazem com que as pessoas aceitem receber menos do que lhes é devido, o que é uma grande injustiça. Mas não é só. Há muitos casos em que nem mesmo esse lesivo acordo é plenamente cumprido e o sofrimento recomeça para os desesperados e injustiçados credores.

É por isso que há credores que relutam em aceitar alguns acordos, menos por não concordarem com os seus termos do que por não acreditarem que ele será cumprido. Como pode alguém, diante de um juiz, dizer que não acredita que um acordo celebrado diante daquela autoridade, e por ela homologado, com pena de prisão prevista, não será cumprido? Porque o decreto de prisão é muito demorado e burocrático!

As prisões acontecem, mas em poucos casos, o que faz com que a justiça não seja respeitada ou temida. O resultado é que a inadimplência aumenta cada vez mais, num círculo vicioso. Quando ocorre a efetiva prisão, normalmente aparece o dinheiro (depois de muito tempo) e a pessoa é imediatamente solta, como determina a lei. Em alguns casos há soltura mediante pagamento parcial ou algum tipo de renegociação. Raros são os casos em que alguém fica preso até o final de sua “pena”, que é usualmente de apenas 30 ou 60 dias.


Tudo isso é vergonhoso para a justiça e uma grande humilhação para os credores, cujos créditos são representados por valores normalmente baixos, mas cuja falta acarreta percalços indescritíveis para quem deles tanto precisa.

Apesar de existir a pena de prisão para quem não paga alimentos, é tão demorada a sua aplicação, que alguns devedores chegam a debochar dos desesperados credores, a quem dizem: Não vou pagar! Quero ver você me prender! Vá procurar a justiça!

A situação aqui descrita sempre me deixou frustrado e até com certa descrença na justiça. Alguns dizem que isso ocorre pelas dificuldades de emprego. O desemprego existe, sempre existiu e sempre vai existir. A pobreza também não é uma novidade. Não creio que essas sejam as principais razões da inadimplência tão grande, pois os valores das pensões levam em conta a pobreza e por vezes até mesmo o desemprego. Se o devedor é pobre, a pensão é baixa e pode ser paga. Na verdade, a inadimplência é tão grande e os processos nunca terminam porque o rito do processo de execução é lento demais.

Visando a agilizar o andamento processual, após ter e conversado vários operadores do direito, nos acordos que tenho homologado passei a utilizar uma redação que faz com que a iniciativa em procurar a justiça, em caso de não pagamento da pensão, não seja mais do credor, mas sim do devedor.

Segue abaixo um texto padronizado com a redação referida. Essas cláusulas são lidas e explicadas pausadamente para as partes na audiência.

…” Proposta a conciliação, foi ela aceita pelas partes, nos seguintes termos: …(escrever normalmente os termos do acordo) … A seguir, antes de homologar o acordo, pelo juiz foi esclarecido que:

a) Caso a pensão não seja paga de forma pontual e integral, caberá ao alimentante, no prazo de 15 dias contados da inadimplência, justificar perante este juízo as razões do não pagamento.

b) Depois de decorrido o prazo de justificação sem que ela seja feita, e se o credor comprovar, mediante extrato bancário, que o pagamento realmente não foi feito, será de imediato decretada a prisão civil do devedor, sem novas intimações.

c) Fica o devedor esclarecido de que cabe a ele a iniciativa de procurar a justiça, caso não seja feito o correto pagamento da pensão, sendo que neste ato lhe é entregue uma cópia deste termo, para que não se alegue desconhecimento.

d) São advertidas as partes, em especial o devedor, que as pensões devem ser pagas exclusivamente por meio de depósito bancário, para melhor controle dos pagamentos.

Pelo juiz então foi dito que homologava, nas condições acima, o acordo celebrado entre as partes e julgava extinto o processo….

Pelos acordos celebrados da forma acima, é o devedor quem tem que se preocupar pelo não pagamento da pensão. Isto porque, imediatamente após o não pagamento da pensão, passa a fluir o prazo de 15 dias para que seja justificada a inadimplência. Se ele se omitir, basta uma simples comunicação do credor para que a prisão seja imediatamente decretada, sem nenhuma outra formalidade além da comprovação, por meio de extrato bancário, de que o pagamento não foi mesmo feito. Com isso consegue-se uma agilidade tão grande que é possível a prisão ser decretada em menos de 30 dias depois da primeira falta de pagamento.

A rapidez da resposta da justiça com que ela seja mais efetiva, seja mais eficaz, pois o devedor sabe que, se não pagar ou não se justificar rapidamente, corre um risco concreto de ser preso. Essa certeza da decretação rápida da prisão faz com que o devedor sinta a existência de uma real punição para quem não paga.

A lógica é muito simples: quando não se tem dinheiro suficiente para todas as dívidas, o devedor tem que escolher quais pagará e quais deixará de pagar. E um dos critérios utilizados para fazer essa opção é avaliar as conseqüências que o não pagamento de cada dívida acarreta.

Ora, pelo método previsto na lei atual, não pagar a pensão não gera um grande problema para o devedor, ao menos rapidamente não. Então a pensão é deixada de lado. É triste dizer, mas hoje é preferível pagar antes a fatura do cartão de crédito do que a pensão alimentícia.

Quando se faz o acordo com a redação proposta, ocorre um “salto de prioridade” e a pensão começa a ser paga antes das dívidas que não acarretam prisão. O segredo não está no tamanho da sanção, mas na certeza de sua aplicação. Se houver a possibilidade de prisão, mas ela for distante e demorada, a obrigação não é cumprida. O grande número das execuções de alimentos mostram isso.

Deveria haver uma mudança de rito no processo de execução de alimentos para tornar a sanção da prisão, já prevista na lei, de aplicação muito mais rápida e efetiva. Basta que se antecipe o momento de apresentação da justificativa por meio da incumbência ao devedor da iniciativa de fazer isso. Ele sabe que devia e que não pagou, de modo que não precisa ser citado ou informado sobre o não cumprimento de sua obrigação. O devedor sabe que deve paga a pensão todos os meses, então ele que se explique porque cessou os pagamentos.


Neste caso, a falta da citação não é algo que viole qualquer princípio processual porque na execução de títulos judiciais dos juizados especiais cíveis já não há necessidade de citação (art. 52, IV, Lei 9.099/95).

Segundo a proposta feita, que defendo se transforme em texto de lei, o prazo para justificativa ficaria cinco vezes maior, ampliando o direito de defesa, passando dos 3 dias hoje previstos na lei (art. 733 CPC). Em compensação, o devedor não mais precisaria ser encontrado para que o prazo começasse a ser contado; a contagem seria automática, com vantagens para o credor e para a justiça, que ficaria livre de vários atos como expedição de mandados e diligências de oficiais de justiça. Se o devedor se justificar, a prisão não é decretada automaticamente, mas designa-se audiência para tentativa de conciliação. Se não há acordo, nela se decide se a justificação é aceita ou a prisão é decretada.

Essa proposta já está sendo colocada em prática na 1ª Vara de Família de Itaquera com excelentes resultados, pois, ao contrário do que se possa imaginar, o número de decretos de prisão é menor agora do que antes. Está havendo uma queda na inadimplência, uma redução no número de processos, mês a mês, e uma satisfação maior dos credores, que passam a acreditar mais na justiça. Todavia, como a experiência é recente, ainda não há dados estatísticos.

Há quem já coloque faz tempo “prisão automática” quando se trata de acordo em execução. Porém, se isso é possível no processo de execução, por que não constar desde logo no acordo feito no processo de conhecimento, exatamente para evitar que a execução forçada seja necessária? Defendo que não se deve tolerar um primeiro descumprimento, para impor a prisão somente em caso de reincidência.

Essas cláusulas acredito sejam justas porque estimulam um resultado querido pelo direito: o cumprimento da obrigação. Poderão algumas pessoas dizer que essa proposta é de duvidosa legalidade ou constitucionalidade. Porém, inúmeros casos legais de duvidosa constitucionalidade:

– do Decreto-Lei 911/69, que dá inacreditáveis direitos ao Bancos, que podem conseguir a prisão do devedor, o qual mal pode se defender; ao juiz é quase impossível indeferir a liminar. Mesmo assim, diariamente esse Decreto-Lei é aplicado;

– de algumas execuções especiais conferidas aos agentes do sistema financeiro, que podem até mesmo vender, sem intervenção judicial ou leilão, bens dados em garantia de dívidas. Isso tem sido aceito;

– da prisão civil, por dívidas, de depositários em casos nos quais existe mais uma garantia do que um autêntico depósito (alienação fiduciária). E todos os dias essas prisões são decretadas;

– da exclusão da apreciação, pelo Poder Judiciário, da falência dos Bancos. Se um Banco quebra, o que raramente acontece, ele sofre liquidação extrajudicial. Não é assunto para a justiça. Por quê?

Se o direito permite tudo isso em favor de Bancos, com maior razão deve ser dado o mesmo tratamento aos carentes que precisam de pensão para sobreviver com dignidade. Sem pensão as pessoas vivem, mas de forma indigna e desumana. O direito não existe para aviltar a dignidade humana, mas para nos fazer cidadãos.

Por vezes é mais fácil e rápido cobrar um condomínio atrasado, retomar um carro financiado ou mesmo conseguir despejar um inquilino que não paga o aluguel do que prender quem deve alimentos. Há uma vergonhosa inversão de valores feita por meio da concessão de ritos especiais (de fato privilegiados) em favor daqueles que têm poder econômico e força política, ao passo que aos desvalidos, que mais precisam da força da justiça, é concedido um rito aquém de suas necessidades. A execução de alimentos tem um rito especial, mas ainda incapaz de prestar uma tutela rápida e eficaz. O poder econômico não pode ser colocado acima dos mais básicos valores humanos.

Cada vez que se é complacente com o devedor de alimentos, comete-se profunda injustiça com o credor da prestação mais preciosa que existe no mundo. Como alguém pode ficar vários meses seguidos sem receber? A fome é má conselheira, diz velho ditado.

Cada vez que se evita decretar a prisão do devedor que pode pagar e não paga, se está dando ao filho desta pessoa a triste lição de que vale a pena ser desonesto, esperto e malandro, pois sofre mais quem não recebe do que quem não paga.

Cada prisão negada hoje ao devedor de alimentos é um estímulo à paternidade irresponsável, a que os filhos passem necessidades, que deixem de estudar, que não se qualifiquem profissionalmente, que continuem miseráveis, que não tenham perspectivas, que não tenham o direito de sonhar ou estudar, que busquem ilusão nas drogas, que procurem dinheiro no tráfico, que sejam atraídos pela marginalidade, e, quem sabe, que venham a praticar crimes que os façam conhecer a prisão. A mesma prisão que o pai inadimplente e irresponsável talvez jamais tenha conhecido.

Isso é muito injusto, e nós, juízes, temos responsabilidade direta nessa questão. Não somos culpados por todas as mazelas do mundo, mas não podemos nos omitir nessa questão, pois de nós muito se espera. Somos a última esperança de muita gente, em especial dos desvalidos e miseráveis. Enquanto a lei não muda, devemos nós mesmos fazer as mudanças urgentes. Apelo aos meus colegas juízes que experimentem essas mudanças, pois não se arrependerão e sentirão o doce sabor da justiça e leveza da consciência de quem fez um pouco a mais do que o simples cumprimento do dever.

Revista Consultor Jurídico, 13 de março de 2000.

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