Juízes vistos por um advogado

Artigo: Eles, os juízes, vistos por um advogado.

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9 de março de 2000, 0h00

Sob o título acima, Piero Calamandrei escreveu um belíssimo livro sobre suas experiências como advogado na Itália da primeira metade do século, relatando não os casos em que atuou e as decisões proferidas, mas suas impressões sobre o comportamento e a idiossincrasia dos juízes que conheceu.

Ao ler as notícias sobre a ameaça de greve do Judiciário Federal por conta de um aumento salarial que lhes é negado – assim como a todos os demais servidores públicos – não pude deixar de imaginar como Calamandrei comentaria tão inusitada situação: aqueles a quem a sociedade concedeu o monopólio de “dizer a lei” o ius dicere que originou o termo “jurisdição”, utilizando-se de um instrumento já reiteramente declarado ilegal pelo Supremo Tribunal Federal.

Se conseguisse refazer do susto Calamandrei ficaria ainda mais espantado se soubesse que um Ministro da própria Suprema Corte conceder uma liminar que resultou numa resolução do impasse através de esperto artifício: deu-se um mal disfarçado “pourboire” sob o pomposo título de “auxílio-moradia”.

Com tal esperteza resolvem-se vários problemas: os aguerridos grevistas voltam à atividade, com seus contracheques repentinamente engordados em três mil reais, e o país não “paga o mico” internacional de ter um Poder em greve, fato que faria Montesquieu revirar-se na tumba e os investidores internacionais pensarem seriamente se a capital do Brasil é Brasília ou Sucupira, terra fictícia embora mais apropriada para a ocorrência desses descalabros.

No entanto, se aparentemente resolve um problema, a concessão de um substancial adjutório a título de “auxílio-moradia” a quem trabalha na mesma cidade onde reside abrirá um perigoso precedente.

Se a um juiz que reside em sua própria Comarca – como, aliás, todos fazem por determinação constitucional – é legal receber um “auxílio-moradia” de tamanho valor, por que não o seria quando o mesmo benefício fosse aplicado aos vereadores que residem em seus municípios, deputados estaduais que moram nas capitais, diretores de empresas públicas, sociedades de economia mista e que tais?

Amanhã, quando a sociedade brasileira tomar conhecimento da inusitada solução, teremos um sem número de “Poderes” se autoconcedendo tão irrazoável benefício, um auxílio-moradia capaz de bancar o aluguel de um apartamento na Vieira Souto ou nos Jardins, enquanto os demais servidores amargam mais um aniversário de seus vencimentos congelados.

Mais uma vez, volto ao velho Calamandrei: grave defeito no juiz é a soberba; mas talvez seja uma doença profissional.

Revista Consultor Jurídico, 9 de março de 2000.

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