Direitos Sociais

Flávia Piovesan critica investidas contra os direitos do trabalhador

Autor

  • Flávia Piovesan

    é vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2 de junho de 2000, 0h00

NÃO À DESCONSTITUCIONALIZAÇÀO DOS DIREITOS SOCIAIS

No último mês de maio, nada houve a comemorar na data simbólica do dia do trabalho. Na América Latina, o 1º de maio foi marcado por paralisações e manifestações de centrais sindicais contra o elevado índice de desemprego e contra propostas de flexibilização das relações trabalhistas.

Em um cenário de crescente exclusão social, os páises latino-americanos objetivam reformar a legislação trabalhista, sob o falacioso argumento de que normas de trabalho mais flexíveis implicariam menores custos e aumento do emprego.

No Brasil, está pendente na Câmara dos Deputados proposta de emenda à Constituição com o propósito de alterar o artigo 7º da Constituição de 1988, que assegura a todos os trabalhadores urbanos e rurais direitos básicos na esfera trabalhista, como o salário mínimo, férias, 13º salário, licença à gestante, limitação da jornada de trabalho…

Considerando que a relação entre trabalhador e empregador é sempre desigual e assimétrica, a Constituição consagra parâmetros protetivos fundamentais para compensar esta assimetria. Ora, o que se pretende com a aludida proposta de emenda é tão-somente “flexibilizar” todos os direitos trabalhistas previstos na Constituição, que ficariam condicionados a “contrato, convenção, acordo ou negociação coletiva”. Isto é, a depender dos termos de um contrato de trabalho e da “autonomia da vontade das partes”, mediante a livre negociação, poderia ser suprimido o direito a férias, ao 13º salário, à licença gestante e, (por que não?) ao próprio salário mínimo.

A liberdade, tão amplamente prevista, poderia conduzir a uma perversa escravidão contemporânea, com a aniquilação de parâmetros normativos capazes de assegurar uma relação minimamente justa e digna de trabalho. Esta proposta há de ser compreendida à luz da gravidade do cenário brasileiro, que embora apresente a quinta população economicamente ativa do mundo, deteve, em 1999, a terceira maior quantidade de desempregados em 141 países pesquisados (vide estudo “O desemprego na economia global”, citado por Márcio Pochamnn, Folha de S. Paulo, 8.03.2000).

Neste contexto, qualquer poder de negociação vê-se ameaçado, na medida em que um exército de excluídos se renderia à precariedade de qualquer condição de trabalho, fomentando a própria lógica da era da globalização econômica, marcada pela produção de baixo custo, com amplo grau de competitividade internacional.

A esta proposta some-se o debate a respeito da revisão da Convenção 103 da OIT, que dispõe sobre a proteção social à maternidade, sendo a posição predominante a defesa de 12 semanas para a licença-gestante – o que, uma vez mais, vem a dilapidar o direito constitucional de licença à gestante com a duração de 120 dias (art.7º, XVIII da Constituição Federal).

O movimento de esfacelamento de direitos sociais simboliza uma flagrante violação à ordem constitucional, que inclui dentre suas cláusulas pétreas os direitos e garantias individuais. Na qualidade de direitos constitucionais fundamentais, os direitos sociais são direitos intangíveis e irredutíveis, sendo providos da garantia da suprema rigidez, o que torna inconstitucional qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los.

A desconstitucionalização dos direitos sociais viola ainda tratados internacionais subscritos pelo Brasil, em matéria de direitos sociais, econômicos e culturais, que exigem a aplicação progressiva de tais direitos. Desta progressividade resulta a cláusula de proibição de retrocesso social, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, traduzam na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação desses direitos.

Além disso, na medida em que os direitos humanos são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados, a violação a direitos sociais implica, consequentemente, a violação a direitos civis e políticos.

Não há verdadeira liberdade, sem igualdade e nem tampouco verdadeira igualdade, sem liberdade. Fica, por fim, o alerta de Jack Donnelly: “se os direitos civis e políticos mantêm a democracia dentro de parâmetros razoáveis, os direitos econômicos e sociais estabelecem limites adequados aos mercados. Mercados e eleições, por si só, não são suficientes para assegurar direitos humanos para todos”. Por isto, ao imperativo da eficácia econômica deve ser conjugada a exigência ética de justiça social, inspirada em uma ordem democrática que garanta o exercício de direitos e liberdades fundamentais.

Autores

  • é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).

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