Responsabilidade Civil

Evolução da Responsabilidade Civil e seus problemas modernos

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9 de fevereiro de 2000, 23h00

“A casa do Direito, como a casa de Deus, tem muitas moradas. Mas não há lugar, em nenhuma delas, para os medíocres de vontade e fracos de coração”

A história comparada mostra-nos que todos os sistemas sofreram uma evolução idêntica. Nos primórdios das instituições jurídicas da generalidade dos povos, o direito de vingança que a consciência coletiva reconhecia à vítima constituía o modo por que se operavam ao mesmo tempo, a reparação do dano e a punição do seu autor. Tratava-se de uma reação quase instintiva contra o mal sofrido, mais baseada na causalidade material, entre a ação humana violadora da ordem jurídica e o dano, do que na intenção do agente. E, nesses direitos primitivos, a solidariedade familiar, dos vizinhos ou de entidades protetoras – tanto da parte da vítima como da parte do agressor – desempenhavam um papel de relevo. Era, em resumo, uma responsabilidade predominantemente objetiva e coletiva, sobretudo de índole penal.

Cedo, porém, se admitiu que o autor do prejuízo pudesse escapar ao direito de reivindicar do ofendido, entregando-lhe uma soma de dinheiro, que continuava a ter o simultâneo alcance de reparação e de punição.

Entretanto verifica-se a intervenção da autoridade pública, a fim de evitar as desordens e lutas produzidas pela vingança privada. Essa intervenção operou-se de duas formas: por um lado, os poderes públicos fixaram o montante das várias indenizações pecuniárias e obrigaram os ofendidos a aceitá-las; por outro lado, passaram a punir certos fatos que, em virtude de não afetarem diretamente os particulares, ficavam desprovidos de sanção. Dando-se depois um passo em frente, os poderes públicos passaram também a punir os autores de certos prejuízos que, não obstante atingirem interesses particulares, faziam especialmente perigar a ordem social.

Apuramos, assim, que a responsabilidade civil e a responsabilidade penal (reparação e punição), embora confundidas no começo, se foram a pouco separando. O que eqüivaleu a cindir-se a reação contra o autor do fato ilícito: a vítima obtém dele uma reparação (ação privada) e autoridade pública pune-o (ação pública).

No direito romano, costuma-se apontar a Lei da XII Tábuas (meados do século V a. C) como o ponto de transição da fase da composição obrigatória: em certos casos a vítima era já obrigada a aceitar a composição e a renunciar à vingança privada. Mas, segundo parece, só com os juristas bizantinos da época pós-clássica surgiram verdadeiras preocupações e esforços doutrinais de análise psicológica da culpa.

Desde cedo se começou a distinguir, mais ou menos nitidamente, a responsabilidade civil da responsabilidade penal. Ao mesmo tempo que, superando-se a concepção arcaica de responsabilidade objetiva e coletiva, se caminhou para uma responsabilidade subjetiva e individual.

Os estudos sobre a matéria, após alguma possível letargia, tendem de novo a ocupar um plano cimeiro nas preocupações dos civilistas. Ao fato não será de todo estranho o estímulo resultante da profunda análise a que os penalistas e os filósofos do direito submeteram a responsabilidade criminal. Quer dizer: a civilística como que deseja conservar ou retomar a posição condutora e paradigmática que lhe tem pertencido ao longo dos tempos na investigação da generalidade dos temas comuns aos vários ramos do direito.

Todavia, mais do que em motivações dessa ordem, o interesse ultimamente despertado pela responsabilidade civil muito se radica na conveniência ou até urgência de reformulação de alguns aspectos básicos. Verifica-se que a responsabilidade se encontra em nossos dias sob a influência de dois parâmetros irrecusáveis: por outro lado, sofre a concorrência de sistemas reparação coletiva, tais como o seguro e a segurança social, que lhe retiram uma parte da razão de ser e modificam o seu alcance. Conseqüentemente, determinados fundamentos a que se prendia a construção clássica do instituto foram ruindo ou colocado em pauta.

O direito moderno, na verdade, mercê da relevância sempre crescente atribuída ao interesse coletivo, tem superado os tradicionais dogmas individualistas e voluntaristas. O fenômeno revela-se particularmente nítido em matéria de responsabilidade civil. Desde logo, esta desviou-se do subjetivismo para as concepções objetivas: ou admitindo que pessoas isentas de culpa respondam por danos causados, ou como decorrência de uma evolução registrada no próprio conceito de culpa.

Segundo a perspectiva clássica, a noção da responsabilidade constitui um corolário do princípio de que o homem, sendo livre, deve responder pelos seus atos. Portanto, a condição essencial da responsabilidade civil, nesta óptica, incide na culpa, que pode traduzir-se num fato intencional, ou em simples imprudência ou negligência.

Contudo, no mundo contemporâneo, fortemente tecnológico e industrializado, o desenvolvimento das possibilidades e dos modos de atuação humana multiplicou também os riscos. Cada nova conquista pelo homem das forças da natureza não exclui que um tal domínio lhe possa escapar e que essas forças retomem os seus movimentos naturais. É o risco que acompanha a atividade humana.

Acresce que os fatos causadores de prejuízos se apresentam freqüentemente imputáveis não a indivíduos isolados, mas a conjunto de homens. E quanto mais complexa e numerosa seja a composição desses grupos humanos, tanto mais tende a ficar no anonimato o exato culpado. Qual foi, por exemplo, o engenheiro, o desenhista ou o operário que pela sua atuação ocasionou as deficiências de uma peça essencial à segurança de uma viatura?

Toda esta mudança de condicionalismos levou a encarar a responsabilidade civil de novos ângulos. A vida moderna, fazendo avultar a categoria dos danos resultantes de acidentes, suscitou o problema paralelo da sua indenização mais adequada, a que não satisfazem os esquemas tradicionais.

É manifesto que a concepção clássica da responsabilidade do culpado continua a ter um vasto papel. Mas, ao lado do princípio da responsabilidade baseada na culpa – responsabilidade subjetiva – acolhe-se a idéia, posto que em casos excepcionais, de uma responsabilidade independentemente de culpa – responsabilidade objetiva e responsabilidade pelo risco. Os acidentes de circulação terrestre e os acidentes de trabalho representam o ponto de partida, visando-lhes a juntar depois outras situações expressivas.

A evolução chegou ainda mais longe. Admitiu-se, também excepcionalmente, sem dúvida, que a obrigação de indenização pudesse resultar de uma conduta lícita do agente causadora de danos. Trata-se do campo da responsabilidade por intervenções lícitas.

Deve observar-se que os referidos caminhos da responsabilidade civil não estancam no reconhecimento e alargamento da hipóteses de responsabilidade isenta de culpa, em especial pelo que respeita aos utentes de coisa perigosas. Procura-se ir adiante, num sentido que traduz uma socialização do risco do dano.

Com efeito, assiste-se a um claro movimento de segurança social, que procura garantir a reparação de todo e qualquer dano ao lesado, independentemente do caráter culposo ou ilícito do ato que o produziu. O sistema encontra a sua expressão mais avançada nos países escandinavos a respeito dos danos pessoais.

A questão põe-se, sobretudo, com os acidentes de trabalho. Mas também quanto aos acidentes de viação, alguns autores e projetos legislativos modernos preconizam que o Estado garanta sempre, em princípio, a indenização devida ao lesado, quer o acidente resulte de circunstâncias de força maior estranhas ao funcionamento do veículo, quer se desconheça o efetivo responsável ou este não disponha de meios para cobrir a indenização; embora se atribua ao Estado um direito de regresso.

A uma tal propensão para subtrair à responsabilidade civil certos domínios de reparação de danos se junta, mesmo no âmbito desta, um outro aspecto relevante. Referimo-nos à generalização voluntária do seguro da responsabilidade, que é um fenômeno radicado e característico do espírito do nosso tempo, não só nos países ocidentais, mas também no comum dos países socialistas, cujos sistemas se encontram, de qualquer modo, mais ligados ao conceito de responsabilidade fundada na culpa. Assiste-se até a uma crescente tendência que propugna pela consagração do seguro obrigatório, para além das áreas da circulação rodoviária e dos acidentes de trabalho, em determinados domínios, como os das profissões liberais. E, inclusive, os seguros pessoais, tão difundidos, proporcionam à vítima uma reparação dos danos resultantes da sua própria culpa.

Um elemento novo se introduz, por esta via, na querela sobre a função da responsabilidade civil, que o consenso predominante, ainda sob inspiração do positivismo do século XIX, entende apenas reparadora do dano ou indenizatória. Não é inédito uma função sancionatória ou punitiva ao ilícito civil. Só que a difusão do seguro da responsabilidade diminui a força deste aspecto, mormente a sua eficácia preventiva. Daí o problema da maneira de atenuar a natural modificação que se opera na mentalidade do segurado, propicia à eliminação do efeito pedagógico-educativo ligado ao suporte da indenização.

Apontemos ainda circunstância de se vir assistindo ao desenvolvimento da responsabilidade civil em direções novas. A medida que a vida moderna tem alcançado determinados êxitos científicos e tecnológicos ou posto em destaque certas atividades ou profissões, suscetíveis de causar danos a terceiros, colocam-se aos juristas problemas de responsabilidade civil, muitas vezes contemplados insatisfatoriamente na lei. Assim, por exemplo, a reparação dos danos devidos à utilização de algumas formas de energia, como a nuclear e a elétrica, ou resultantes da poluição industrial. Questão que concita largo interesse na doutrina dos sistemas mais representativos é a da responsabilidade do fabricante, intimamente ligada ao comércio e consumo de massas que caracteriza a sociedade contemporânea. O tema encontra-se melhor teorizado a respeito dos bens de consumo, mas não se descura, também, quanto ao bens de equipamento.

Por outro lado, como antes se salientou, a responsabilidade civil implantou-se com grande vigor no domínio profissional, particularmente em relação às chamadas artes ou profissões liberais. E sempre se organizando um respectivo sistema de seguro.

Assim acreditamos que o que se salientou parece bastante para mostrar os motivos por que a responsabilidade civil constitui uma das áreas que mais vêm solicitando as atenções e a imaginação dos juristas e dos legisladores.

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