Medida Provisória

MP: aspectos da alteração pelo parlamento e a conversão em lei

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6 de fevereiro de 2000, 23h00

Certamente um dos pontos mais controvertidos da nova ordem constitucional brasileira advinda da Constituição de 1988, é a relativa à utilização da medida provisória. Inspirada no direito italiano, e segundo afirma-se, concebida como instrumento típico de um regime parlamentarista que estaria porvir, a previsão do art. 62 da Constituição vem se transformando pela prática, em fonte de alguns problemas aos quais ainda não respondeu adequadamente a doutrina.

Estabelece o art. 62 da Constituição:

“Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

Parágrafo único . As medidas provisórias perderão a eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes.”

O debate pioneiro acerca da matéria se deu relativamente da aferição dos critérios de urgência e relevância da matéria objeto da medida, concluindo – pelo menos até o tempo presente – de conteúdo político, que se insere, de certo modo, no âmbito do poder discricionário dos poderes Executivo e Legislativo.

O problema que se procura enfrentar neste trabalho, entretanto, não diz respeito exatamente a este tema – que de resto a doutrina tem sido copiosa, havendo numerosos escritos a sustentar ambas as posições.

O que propomos, rigorosamente, é o exame de algumas situações peculiares do instituto da medida provisória, e que encontram um tímido enfrentamento por parte da doutrina. Para tanto, propomos duas hipóteses de trabalho. A primeira hipótese, da aprovação, pelo Congresso Nacional, de projeto de lei de conversão da medida provisória em lei, todavia com alteração substancial em relação ao ato editado pelo Presidente da República, analisando aí, das possibilidades de sanção e veto. A segunda hipótese diz respeito a regulação da matéria objeto do ato, no caso de veto parcial do Presidente da República, e as respectivas implicações jurídicas que demandam as soluções possíveis.

Da natureza jurídica da medida provisória.

A primeira questão a ser observada diz respeito a natureza jurídica da medida provisória. Insere-se o instituto no âmbito do art. 59 da Constituição, como ato de elaboração pertinente ao processo legislativo. Em verdade, embora a disposição no texto constitucional permitisse fosse a medida provisória confundida com as demais espécies de atos normativos previstos na Constituição, sua disciplina está muito mais a aproximá-la do instituto da lei delegada e a afastá-la dos demais.

Esta proximidade entre a medida provisória e a lei delegada se provam sob diferentes aspectos. O primeiro deles é quanto a exceção que representam à cláusula da indelegabilidade, a qual ANNA CÂNDIDA DA CUNHA FERRAZ inclui como uma das cláusulas parâmetro da Constituição, e que de sua vez é pertinente ao princípio da separação dos poderes. Todavia observa-se destes princípios uma sensível flexibilização, tendendo francamente a doutrina e as modernas disciplinas constitucionais em suavizá-los o bastante para permitir, como observa CLÁUDIO PACHECO, a inevitável coordenação dos diversos ramos, pela colaboração e entrelaçamento de seu exercício, que não se pauta por atribuições rigorosamente distintas ou obrigatoriamente específicas.

Neste sentido, se tem permitido espécie de permeabilidade seletiva entre os poderes, concedendo-se a cada um deles, conteúdos pertinentes às atribuições típicas dos demais, sem que isto desnature a idéia de separação e equilíbrio, mas como uma contribuição da realidade prática à formulação teórica. A Constituição brasileira é fértil em instrumentos desta natureza, como por exemplo a do art. 49, IX e X, que confere ao Congresso Nacional a competência para apreciar as contas apresentadas pelo Presidente da República e para fiscalizar e controlar os atos do Poder Executivo.

E é neste contexto de flexibilização da cláusula da indelegabilidade (como projeção do princípio da separação dos poderes) que encontramos um ponto significativo de contato entre a medida provisória e a lei delegada. Ambas seriam sustentadas pela flexibilização do princípio da separação dos poderes ao serem dispostas como atos cuja prerrogativa é do Presidente da República, que para exercê-lo cumpriria atribuição típica do Poder Legislativo, exatamente o poder de legislar.

Neste aspecto, todavia, referimo-nos a regras constitucionais específicas, o que incumbe não tratemos de mera delegação legislativa, mas de algo mais contundente, de âmbito constitucional, o que permite observe-se sob o prisma deste ponto de contato entre a medida provisória e a lei delegada, como espécies de delegação constitucional do poder de legislar, pela qual a Constituição outorga, sob observação de determinados padrões, o poder de editar atos normativos.


A Sanção e o Veto Presidencial

Estabelecida a medida provisória como delegação constitucional do poder de legislar, possui a eficácia de lei que lhe determina o art. 62 da Constituição. Esta eficácia esta sujeita a sua conversão em lei no prazo de 30 dias – admitindo a jurisprudência dominante do STF a possibilidade de reedição.

Todavia, observando-se a medida provisória como ato legislativo delegado ao Presidente da República, um problema se apresenta quando na sua conversão em lei, há modificação substancial do texto original pelo Congresso, de maneira mesmo a perder a ratio com que a concebeu o Chefe do Poder Executivo. Neste sentido, surge o questionamento quanto a possibilidade de veto por parte do Presidente da República, e este existindo, se estaria ou não restrito a parte modificada.

As possibilidades aí são algumas.

Tão logo surgiu esta problemática referente às medidas provisórias, emitiu o Sr. Consultor Geral da República, parecer em que sustentou a tese de que a conversão da medida provisória em lei tem no projeto de lei seu instrumento de realização, havendo possibilidade mesmo de, em caso de extrema urgência, do Congresso decidir pela ratificação direta da medida provisória. Se emendado, todavia, o projeto deveria ser encaminhado ao Presidente para sanção ou veto – inclusive parcial, conforme dispõe o art. 66 da Carta Magna.

Passou o Congresso Nacional a adotar este procedimento, restando o entendimento pacífico de que, aprovado na íntegra pelo Congresso, o projeto de lei de conversão é encaminhado ao Presidente do Senado Federal para promulgação.

Todavia, deve-se observar que, embora norma regimental do Congresso Nacional oriente neste sentido, a mesma em verdade colide com o que determina a própria Constituição em relação ao processo legislativo, que inequivocamente abrange os procedimentos de apreciação da medida provisória. Ou seja, a própria Constituição determina a remessa do projeto – aprovado – para sanção ou veto do Presidente da República, não fazendo a este respeito qualquer ressalva em relação à medida provisória, seja no art. 62, seja em qualquer outro dispositivo. Assim, presunção lógica e inafastável de que trilha o mesmo caminho dos demais atos legislativos, devendo-se inclusive observar-se o que dispõe sobre o procedimento em caso de veto, o art. 66.

A resolução do Congresso Nacional, neste aspecto, vai no caminho que a Lei Fundamental não autoriza. As disposições constitucionais são expressas ao atribuir ao Presidente da República as prerrogativas de sanção ou veto, que – à falta de norma de mesma hierarquia que excepcione o procedimento – deve ser observado pela medida provisória.

Os que defendem posição contrária deverão questionar, então, da aparente incongruência da motivação inicial do Presidente da República – que sustentou a edição do ato legislativo – e o posterior oferecimento de veto a texto próprio da medida. Ora, tratamos por aparente dita incongruência porque disto é que se trata. Ou seja, observados os critérios discricionários da relevância e urgência, e a reconhecida dinâmica do processo político, é perfeitamente aceitável que o período que media a edição da medida provisória e sua conversão pelo Congresso, assista a alterações substanciais da realidade, que justifiquem a decisão do Presidente da República de optar pela não adoção de dado conteúdo da medida que editara anteriormente. Neste caso, tratando-se da dinâmica do jogo político, o excessivo rigor formal das proposições é o mais das vezes insuficiente para a compreensão do fenômeno.

Ademais, em nenhum momento a Constituição – que estabelece o instituto da medida provisória, delineando-lhe os contornos – ressalva a inoponibilidade de veto presidencial ao texto original do ato convertido, de maneira que a lógica recomenda, à ausência de ressalva expressa, observe-se a regra geral. In casu, a disposição do art. 66 da Constituição assiste ao Presidente da República a possibilidade de veto.

Assim, conclui-se que – sob a perspectiva constitucional – é obrigatória a remessa ao Presidente da República do projeto de lei de conversão devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, para que, a seu respeito, exerça sua prerrogativa constitucional de sanção ou veto, independentemente da alteração do texto original pelo Parlamento. No caso, reiteramos pela inconstitucionalidade da Resolução n° 1/89 do Congresso Nacional, que atribui ao seu Presidente a competência de promulgar o projeto de lei de conversão cujo texto original tenha sido aprovado na íntegra.

Pode, portanto, o Presidente da República vetar total ou parcialmente o projeto de conversão, nos exatos termos do art. 66, § 1o da Constituição Federal – a semelhança dos demais atos legislativos.

Conseqüências do veto parcial ao projeto de conversão


Conforme a prerrogativa de veto do Presidente da República ao texto do projeto de conversão, nos termos do art. 66, § 1º observa-se a possibilidade deste opor-se a sua integralidade ou, de outra forma, parcialmente a determinadas disposições. Neste aspecto, sob a perspectiva das conseqüências jurídicas observadas, por certo que a circunstância do veto parcial responde pelas mais inquietantes possibilidades.

Primeiramente, há de se considerar, em relação a parte vetada pelo Presidente da República, a ocorrência ou não da repristinação de lei anterior revogada pela medida provisória, relativamente à matéria sobre a qual versavam os dispositivos do projeto de conversão objetos do veto.

Conforme preleciona MARTINS, três seriam as possibilidades de regulação da matéria objeto das disposições vetadas: a) o texto original da medida provisória; b) o texto original do projeto de conversão; c) a lei que teve sua vigência suspensa.

Em relação à terceira hipótese, observa-se que o parágrafo único do art. 62 estabelece expressamente a possibilidade de perda da eficácia ex tunc. Todavia, é princípio do direito brasileiro, consagrado – como lembra MARTINS – na disposição constante do art. 2º, §3º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que, salvo disposição em contrário, lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência. Ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro não admite o fenômeno da repristinação, do que se depreende que a pretensão de revigorar a lei suspensa em razão da vigência da medida provisória convertida e vetada não tem como prosperar.

Restam, portanto, duas possibilidades, as quais apresentam os maiores desafios. Analisemos em conjunto.

A opção pela eficácia do texto original da medida provisória afigura-se controversa pela simples razão de que a modificação do seu texto original possui, em verdade, um significado duplo. O Congresso Nacional ao mesmo tempo em que atua como legislador positivo, elaborando as normas pertinentes à matéria constantes do projeto de conversão, atua também como legislador negativo – à medida que a modificação de parte do texto original remetido pelo Presidente da República significa mesmo sua rejeição. Daí, a modificação pelo Congresso dificultar sobremaneira a conclusão de que por fato posterior – o veto – seja restaurada vigência do texto rejeitado.

Já em relação à opção restante, não enfrenta menos problemas. Isto porque a mera aprovação, pelo Congresso Nacional, do projeto de conversão, não é bastante para atribuir-lhe eficácia. In casu, falta-lhe a apreciação pelo Presidente da República – que decidirá pela sanção ou veto – e a providência de publicação. Antes disso, estar-se a falar em projeto, nunca em lei – o que de pronto impede se cogite de sua eficácia.

Reconhecendo os problemas advindos das soluções observadas, MARTINS entende pela manutenção da vigência da parte não convertida até a opção de sanção ou veto pelo Presidente da República. E, optando-se pelo veto, recomenda discipline o Poder Executivo, através de nova medida provisória a matéria pertinente, estabelecendo condição de sua vigência até a apreciação do veto pelo Congresso Nacional.

É solução razoável, com a qual nos solidarizamos. Todavia, trata-se de estratégia jurídica própria a superar o problema, a partir da introdução de outros instrumentos – uma segunda medida provisória para regular o trecho modificado e vetado.

As diferentes soluções que emergem do texto constitucional devem, em verdade, ser observados sob dois prismas: as possibilidades de interpretação da norma constitucional e a conveniência destas ao primado da estabilidade jurídica.

A conclusão a que se chega, deste modo, muito tem de útil ao caso presente. Todavia revela dificuldade advinda do próprio texto constitucional, e que só deverá ser equacionada a partir de alteração do texto que, ou consagre previsão expressa em relação à eficácia da medida no período intermédio, ou ao menos estimule o texto a permitir sua interpretação integradora a soluções adequadas à Constituição, sem a necessidade de recorrer-se a iniciativas estranhas ao próprio procedimento de conversão.

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